Para os que duvidavam da possibilidade de rejuvenescimento de Tintin, Hergé presenteou-os com a história dos Pícaros. É um dos derradeiros trabalhos do artista belga que continua a encontrar fiéis seguidores, como se pode comprovar pela leitura da série Nino.
Quando a “linha clara” inspirada no estilo gráfico de Hergé parece cada vez mais uma coisa do passado, irrompem no mercado obras que levam a duvidar da objectividade dos críticos e divulgadores.
“Viagem à América”, primeiro tomo das aventuras de Nino, um personagem criado pelo desenhador Dirk Stallaert e pelo argumentista Hec Leemans (Edições ASA) entronca directamente nessa linhagem que autores como Swarte, Benoît ou Daniel Torres reivindicam para si: são os órfãos de Hergé e do seu personagem maior, Tintin. O registo desta última obra é de um classicismo total, não cedendo um milímetro na planificação (dir-se-ia feita a compasso e esquadro) que nem o próprio Hergé ousou assumir deste modo. É a história de uma criança que foge de uma infância penosa num orfanato — a memória de Chang até nem está muito longe — e embarca clandestinamente num transatlântico que ruma a América de todas as oportunidades. Também aqui, a viagem de Tintin ao Novo Mundo poderia ser uma referência ao mestre.
Nada do que ficou dito pretende diminuir o capital de simpatia que o lançamento desta série pela editora nortenha possa recolher entre os leitores habituais de banda desenhada. No entanto, este primeiro volume está demasiado próximo do original para não exalar uma sensação de “déjà vu” que, no limite, retira frescura e mérito ao trabalho dos dois autores holandeses.
Em “Tintin e os Pícaros” (que a Difusão Verbo teima em apelidar de Tintim...), Hergé procede a uma renovação de imagem do seu herói. Tintin deixa de usar calças de golfe para passar a vestir uns “jeans” ligeiramente à “boca de sino”, capacete com o símbolo da paz e o capitão Haddock revela-se definitivamente avesso ao seu tão apreciado “whisky”.
A resposta do artista aos seus detractores vai mais longe. Situando de novo a acção numa república de opereta, algures no continente sul-americano, não resiste a denunciar o artificialismo das situações políticas que visam substituir um ditador por outro. Pelo meio, parodia o modo de vida e as motivações dos guerrilheiros que se assemelham surpreendentemente aos revolucionários guevaristas. No final da década de 70, tudo isso não podia deixar de ser, de facto, de um anacronismo que Hergé não deixa passar em claro, numa óbvia alusão à falta de “espessura” ideológica nas motivações de todos os “Alcazares” derrubados.
Ainda assim, Tintin presta-se ao jogo do ambicioso “resistente” para salvar os amigos presos, organizando a tomada do poder num rocambolesco carnaval que não exclui turistas em viagem organizada, salvamentos de última hora e os demais ingredientes que imortalizaram as aventuras de Tintin. Na verdade, entre a denúncia da miséria num país dirigido por Tapioca e o subdesenvolvimento do mesmo país policiado por Alcazar só há uma diferença: a da denúncia que Hergé nunca enjeitou. E isso, para além do legado estético que deixou, dá prova de uma firmeza de convicções que não se manifesta apenas em 1976, mas vem desde o início da sua carreira, num longínquo ano de 1929, quando escreveu e desenhou “Tintin no País dos Sovietes”.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
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