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quinta-feira, 20 de março de 2003

Ano Tintin

Começa hoje o "Ano Tintin" 20 anos após morte de Hergé. Multiplicam-se os estudos sobre o alcance universal da obra de um dos mais famosos desenhadores de todos os tempos. Steven Spielberg deverá adaptar brevemente ao cinema aventuras do repórter.

Nunca escreveu uma linha que fosse, mas é o jornalista mais famoso do planeta. Tintin, imortal criação do desenhador belga Hergé, vê hoje passarem 20 anos sobre o desaparecimento do seu pai criador. "Tintin sou eu. Creio que sou o único a poder animá-lo, no sentido de lhe dar uma alma. Se outros retomassem Tintin, podiam fazê-lo melhor ou pior. Mas fá-lo-iam de outra forma e já não seria Tintin!", declarou Hergé pouco antes da morte.

O falecimento de Hergé, assinalado hoje, dá justamente início às comemorações do "Ano Tintin", com os festejos a estenderem-se até Janeiro de 2004, quando o herói sem idade festejar as bodas de diamante.

Mas como manter viva essa popularidade, 27 após a publicação da última aventura, 17 após a edição, sob forma de esquisso e argumento (incompleto) de "Tintin et L'Alph'Art", o álbum em que Hergé trabalhava à data da sua morte?

A resposta tem sido dada de diversas formas. Por um lado, têm-se multiplicado os estudos, as biografias e as análises ao autor e à obra. As mais marcantes são, sem dúvida, "Le monde d' Hergé", de Benoit Peeters, e "Chronologie d'une oeuvre", de Philippe Goddin. A próxima, anunciada para 17 de Março, é "Tchang! Comment l'amitié deplace les montagnes", sobre a vida de Tchang Tchong-Jen, estudante chinês que o desenhador conheceu nos anos 30 e que lhe despertaria a necessidade de realismo que a sua obra contém, cujoapogeu é conseguido em "Tintin no Tibete".

Mas com o foco mediático a levantar-se novamente sobre Hergé, voltam a circular rumores de uma "novidade": a versão a cores de "Tintin no país dos sovietes", uma versão animada de "Tintin e o lago dos tubarões", ou mesmo uma versão finalizada de "Tintin etl'Alph Art". Acontecimento maior será, indubitavelmente, a concretização de uma nova versão em cinema (Tintin já foi retratado em carne e osso, nos anos 60, por Jean-Pierre Talbot), dirigida por Steven Spielberg . O autor de "ET" comprou os direitos para realizar três filmes livremente baseados nas aventuras do jovem repórter. A onfirmação surgirá num futuro breve.

Cronologia

Hergé confunde-se com Tintin. A sua mais genial criação é um dos símbolos gráficos do século XX. Os seus álbuns estão traduzidos em 50 línguas.

1907

Nasce Georges Remi. Ficará mundialmente conhecido pelo apelido Hergé.

1929

Publica a primeira prancha de "As aventuras de Tintin no país dos sovietes".

1940

A ocupação da Bélgica pelos nazis obriga-o a aprofundar o seu universo. Conhece Edgar P. Jacobs, autor de "Blake e Mortimer".

1946

Nasce a revista "Tintin"

1950

Criação dos Estúdios Hergé. Desenvolve, em três anos, a aventura lunar de Tintin.

1976

Publica "Tintin e os pícaros", última aventura do herói.

1983

Hergé morre de leucemia.

O que havia no seu lápis para lá de Tintin

O desenhador belga mais celebrado de sempre não criou só Tintin. Na bibliografia de Hergé existem outras séries de vida efémera, mas com carácter valioso. A mais conhecida é "Les exploits de Quick e Flupke" ("Aventuras e desventuras de Quim e Filipe" na edição portuguesa da Verbo, 12 miniálbuns de 32 páginas), que narram as diabruras de dois miúdos belgas, "levados da breca" para inventarem sarilhos e confusões, à conta das partidas que gostam de pregar.

Nascidos em Janeiro de 1930, um ano depois de Tintin, duraram quase 11 anos e revelam um Hergé mais espontâneo, irónico e quase desrespeitoso, que "através destes gags de uma ou duas páginas, viveu, enfim, a infância endiabrada que nunca chegou a conhecer", disse Benoit Peeters.

Em 1936, Hergé cria "Les Aventures de Jo, Zette et Jocko" ("As aventuras de Joana, João e do Macaco Simão", edição Verbo), por encomenda do jornal francês "Coeurs Vaillants" que lhe propôs mais ou menos isto: "Sabe, o seu Tintin não está mal, gostamos muito dele. Mas é assim: ele não trabalha, não vai à escola, não tem pais, não come, não dorme... Não é muito lógico. Não pode criar uma personagem cujo pai trabalhe, que tenha uma mãe, um animal de estimação?" Nesta série, apesar da boa vontade, Hergé nunca se terá sentido muito à vontade, devido à multiplicidade de imposições e à artificialidade do conjunto.

Da bibliografia de Hergé constam ainda duas outras obras: "Totor, C.P. des Hannetons" (1926), um ingénuo precursor de Tintin, e "Popol et Virginie chez les Lapinos" (1934), um western animalista, mais curioso do que interessante.

Pedro Cleto, Jornal de Notícias, 03/03/2003


   

sábado, 8 de março de 2003

O século XX, vinte anos depois.

 Magazine Artes, 1 de Março de 2003

O século XX, vinte anos depois. [no 20.º aniversário da morte de Hergé]

João Paulo Cotrim

Duas décadas passaram sobre as manchetes que anunciaram a morte do autor do herói mais popular da linguagem do século. As complexas personagens Hergé e Tintin estão ainda vivas. Para o melhor e o pior.

Muitas páginas. Não, não somos escravos do nosso tempo, mas ele o nosso chão, aquele onde mergulhamos raízes e crescemos. Andei meses, muitos meses com o Tintin na América, versão brasileira. Desconfio que aprendi a ler com ele, que senti vertigens ao acompanhar o herói entre arranha-céus de Chicago, que descobri o valor da cultura indígena, que naquelas páginas comecei a detestar o capitalismo selvagem. Muitos heróis-do-bem depois, reaprendi a ler a amizade em Tintin no Tibete. Gostava de um dia pressentir amigos em perigo e correr para os salvar enquanto descubro misteriosas e longínquas paragens e culturas, nas quais acabo por me render à simpatia do suposto inimigo... Nestas páginas é possível experimentar o gozo de ver o subjectivo nas imagens (quase) objectivas, os múltiplos conteúdos de um quadradinho apenas, a relação entre as páginas, o rigor da planificação e a síntese do desenho. Em As Jóias de Castafiore conhecemos o exacto valor que um pequeno nada pode valer, bola de neve que chegará a ser acção de uma operática arquitectura mental. As personagens hão-de ganhar corpo para além do tique, a casa fazer-se palco, a tecnologia assumir um belo papel secundário, para no fim contar, antes de tudo, a gargalhada.

Uma biografia. Georges Prosper Remi Remi morreu com 76 anos deixando em herança Tintim, personagem popular entre as populares, a liderar um grupo (Milou, Haddock, Dupont e Dupond, etc) que atravessou o século e respectivas obsessões, que definiu uma gramática da linguagem do folhetim gráfico, que tornou o planeta mais pequeno com as suas viagens e exotismos. Mais do que uma obra, Tintin é um fenómeno: dedicaram-lhe ensaios filosóficos, centenas de livros, alguns romances e outras tantas pinturas e esculturas, milhares de páginas de jornais, baptizaram a partir das suas aventuras planetas e doenças e sítios. Pierre Assouline, director da revista Lire, traçou densamente, em Hergé, o retrato de um homem para além do mito, sem esquecer as suas zonas obscuras. Adoptando a divisa «toda a convicção era uma prisão», o belga Hergé, que guardou o seu nome próprio para uma vocação de pintor que acabou sendo apenas a de coleccionador, carregou fantasmas pesados como o desconhecimento da identidade do seu avô paterno, provavelmente um membro da alta aristocracia belga; ou os últimos dias da mãe num hospício; a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as longas e profundas depressões ou o período de colaboracionismo com a imprensa alemã durante a segunda guerra mundial. Para este seu biógrafo, apenas um entre tantos, o “pai” de Tintin foi vaidoso e generoso, mais oportunista que colaboracionista, tão dilacerado quanto obstinado e ambicioso, afinal, um individualista sempre sob influência. «Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintin», diz Assouline. «São ambos produtos típicos da classe média, mas o que os separa também é notável. O repórter mete-se em tudo o que não chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia de gatos.».

Um álbum-biografia. Setenta e tal anos depois do nascimento de Tintin é o seu autor quem se torna personagem de bd, segundo o traço claro de Stanislas e a investigação rigorosa de Bocquet e Fromental. A ideia é boa, o estilo apropriado e o tom, embora de homenagem, está longe da pieguice habitual, pelo que o conjunto resulta interessante. É um retrato íntimo e impressionista, que não esconde os lados obscuros do mestre da “linha clara”. A partir de momentos marcantes, vão-se somando as características que fizeram de Georges Remi o célebre Hergé (da fundadora e duradoira amizade com Tchang ao encontro com Andy Warhol), e de Tintin um fenómeno universal (desde 1930, quando o actor que incarnava o repórter foi recebido em loucura pela cidade de Bruxelas, no simulado regresso de um périplo pelo País dos Sovietes).

Quatro revistas. A actualidade tem revisitado o olhar de Tintin sobre a ciência (Science & Vie especial: «Tintin chez les Savants»), a geografia (número especial da revista Geo, agora reeditado em álbum), a banda desenhada (número especial da revista (A Suivre), agora reeditado pela Casterman) e até do seu reflexo entre nós (revista Quadrado, n.º 1, Vol. 3, Janeiro 2000) – primeiro país de língua não francesa a publicar as aventuras do repórter de popa que não escreveu uma linha, usava calças de golfe e nunca cruzou uma mulher. Excepto a que cantava: “Ah, rio de me ver tão bela neste espelho.”

Tintin na América, 62 pp a cores, Verbo

Tintin no Tibete, 62 pp a cores, Verbo

As Jóias de Castafiore, 62 pp a cores, Verbo

Hergé, Pierre Assouline, 828 pp, Folio, 1998

As Aventuras de Hergé, Bocquet, Fromental, Stanislas, 64 pp a cores, Mais BD, 2003

https://arquivo.pt/wayback/20050701145416/http://www.bedeteca.com/index.php?pageID=recortes&recortesID=729

Copyright: © 2003 Magazine Artes; João Paulo Cotrim