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terça-feira, 14 de outubro de 2003

Ano Tintin

2003 celebra Hergé

Correu o mundo e foi à Lua 15 anos antes de Neil Armstrong, pela mão de Hergé, Tintim tornou-se um herói e mudou o mundo da banda desenhada. Duas décadas depois da sua morte, o autor belga continua a viver através das aventuras do pequeno repórter e multiplicam-se as homenagens, os estudos e as biografias.

A capital europeia da banda desenhada banda desenhada (BD), Angoulême (França) rebatiza, este mês, uma das suas ruas centrais com o nome de Rua Hergé. Uma prova de que Hergé e Tintim estão empatados em termos de notoriedade.

Herói acidental

Tintim já tem 72 anos, nasceu na Europa, numa época em que as histórias em quadrinhos na Europa ainda estavam em fase pré-histórica. O repórter veio à luz no dia 10 de Janeiro de 1929, em Bruxelas, na Bélgica, mais precisamente num suplemento juvenil do Jornal "Le Petit Vingtième" pela mão de Georges Remi.

Georges usava o pseudônimo de Hergé, que o deixou famoso. Her é o som em Francês da letra R de Remi, e Ge de Georges. Os estudiosos do personagem garantem que Tintim teria sido o repórter que autor não conseguiu ser. "Naquela época, o arquétipo do jornalista era o de um grande viajante, como Albert Londres ou Joseph Kessel, e meu pai queria que eu fosse um pouco o sósia deles", admitiu o criador ao contar o nascimento casual de Tintim, numa entrevista à revista "Lire", em 78.

Em busca da perfeição

Tudo começou com "Tintim no País dos Sovietes" em 1929, seguido de outros 22 títulos e uma obra inacabada "Tintin and Alpha-Art", publicada em 1986 . A obra sofreu uma uniformização: uma redução para 62 páginas e uma intervenção cosmética com algumas das primeiras histórias redesenhadas e coloridas à excepção do primeiro livro.

Pouco atento à veracidade histórica das aventuras de Tintim, Hergé muda de atitude em "Lótus Azul" quando conhece Tchang Tchong-jen, um estudante chinês, que o alerta para a necessidade de uma fundamentação rigorosa das aventuras de Tintim. Quase todos os livros da década de 40 são considerados no mundo da BD obras-primas, principalmente os "visionários" álbuns lunares.

Da Terra à Lua

O reconhecimento do papel revolucionário de Hergé no desenvolvimento da banda-desenhada e no estabelecimento de regras básicas é inegável. Um feito memorável, sobretudo porque foi conseguido através de um jornalista que nunca escreveu uma linha, sempre um bom samaritano e que percorreu várias vezes o mundo árabe e desertos, a Ásia Oriental, a América Latina, a Europa Balcânica, os EUA, a África, e até mesmo... a Lua.

Cristina Alves, Expresso, 07/01/2003

https://arquivo.pt/wayback/20050701145629/http://www.bedeteca.com/index.php?pageID=recortes&recortesID=753

Tchang, o amigo de Hergé e... Tintin! Obra sobre Tchang-Tchong Jen apresentada hoje. Lançamento faz parte das comemorações do “Ano Tintin”.

Hoje, dia 17 de Março, as Éditions Moulinsart vão apresentar o livro “Tchang! Comment l’amitié déplaça des montagnes”, uma completa biografia de Tchang-Tchong Jen, o amigo chinês de Hergé. O seu lançamento é a primeira grande edição daquilo que se convencionou chamar o “Ano Tintin”, iniciado no passado dia 3 de Março, com o assinalar dos 20 anos da morte de Hergé e que se concluirá em Janeiro de 2004, quando se celebrarão os 75 anos da publicação da primeira prancha das aventuras de Tintin.

De Tchang, até hoje, apenas se conheciam os aspectos da sua vida relacionados com Hergé: o encontro dos dois, em 1934, quando o abade Gosset sugeriu a Hergé que se documentasse sobre a China, antes de para lá enviar Tintin; a sua contribuição para a história e a escrita dos caracteres chineses reproduzidos em algumas legendas de “O Lótus Azul”; a sua inclusão, como personagem, neste álbum, ao lado de Tintin; o seu salvamento, após um desastre de avião, em “Tintin no Tibet” (1958), cujo trama tem por base a grande amizade entre as duas personagens de papel e serviu a Hergé para expurgar fantasmas pessoais; o seu reencontro com Hergé, em 1981, após longos anos de contactos diplomáticos para que as autoridades chinesas o autorizasse a sair do país.

O livro lançado hoje, cinco anos após a sua morte, a 10 de Outubro de 1998, para além de aprofundar estes aspectos, revela especialmente o homem e o artista (pintor e escultor), por trás do homónimo do amigo de Tintin, em paralelo com as mudanças que sofreu a China na qual viveu durante quase um século (1907-1998) e que afectaram sobremodo a sua existência, passando de autor conceituado e respeitado a proscrito pela Revolução Cultural de Mao Tsé-tung.

“Tchang!”, tem quase duzentas páginas profusamente ilustradas com fotos, documentos e desenhos de Tchang e Hergé, e é da autoria de Jean-Michel Coblence, historiador e apaixonado pelo extremo oriente, e de Tchang Yefei, uma das filhas de Tchang-Tchong Jen.

Pedro Cleto, Jornal de Notícias, 17/03/2003

(Caixa à parte)

Tchang autografa Tchang

Hergé desenhou-se a ele próprio e a alguns colaboradores (Bob de Moor, E. P. Jacobs) como figurantes de diversos álbuns de Tintin e muitas das suas personagens foram inspiradas em pessoas reais. Mas apenas duas figuraram nos álbuns com o seu próprio nome: Al Capone, que Tintin enfrenta e derrota em “Tintin na América”, e Tchang-Tchong Jen, que Hergé introduziu em “O Lótus Azul”, e que recuperou, mais tarde, em “Tintin no Tibete”. E dos dois, por razões compreensíveis, apenas Tchang autografou os álbuns em que surge ao lado de Tintin.

Copyright: © 2003 Jornal de Notícias; Pedro Cleto © 2002 Bedeteca de Lisboa  

quinta-feira, 20 de março de 2003

Ano Tintin

Começa hoje [03/03/2003] o "Ano Tintin" 20 anos após morte de Hergé. Multiplicam-se os estudos sobre o alcance universal da obra de um dos mais famosos desenhadores de todos os tempos. Steven Spielberg deverá adaptar brevemente ao cinema aventuras do repórter.

Nunca escreveu uma linha que fosse, mas é o jornalista mais famoso do planeta. Tintin, imortal criação do desenhador belga Hergé, vê hoje passarem 20 anos sobre o desaparecimento do seu pai criador. "Tintin sou eu. Creio que sou o único a poder animá-lo, no sentido de lhe dar uma alma. Se outros retomassem Tintin, podiam fazê-lo melhor ou pior. Mas fá-lo-iam de outra forma e já não seria Tintin!", declarou Hergé pouco antes da morte.

O falecimento de Hergé, assinalado hoje, dá justamente início às comemorações do "Ano Tintin", com os festejos a estenderem-se até Janeiro de 2004, quando o herói sem idade festejar as bodas de diamante.

Mas como manter viva essa popularidade, 27 após a publicação da última aventura, 17 após a edição, sob forma de esquisso e argumento (incompleto) de "Tintin et L'Alph'Art", o álbum em que Hergé trabalhava à data da sua morte?

A resposta tem sido dada de diversas formas. Por um lado, têm-se multiplicado os estudos, as biografias e as análises ao autor e à obra. As mais marcantes são, sem dúvida, "Le monde d' Hergé", de Benoit Peeters, e "Chronologie d'une oeuvre", de Philippe Goddin. A próxima, anunciada para 17 de Março, é "Tchang! Comment l'amitié deplace les montagnes", sobre a vida de Tchang Tchong-Jen, estudante chinês que o desenhador conheceu nos anos 30 e que lhe despertaria a necessidade de realismo que a sua obra contém, cujoapogeu é conseguido em "Tintin no Tibete".

Mas com o foco mediático a levantar-se novamente sobre Hergé, voltam a circular rumores de uma "novidade": a versão a cores de "Tintin no país dos sovietes", uma versão animada de "Tintin e o lago dos tubarões", ou mesmo uma versão finalizada de "Tintin etl'Alph Art". Acontecimento maior será, indubitavelmente, a concretização de uma nova versão em cinema (Tintin já foi retratado em carne e osso, nos anos 60, por Jean-Pierre Talbot), dirigida por Steven Spielberg . O autor de "ET" comprou os direitos para realizar três filmes livremente baseados nas aventuras do jovem repórter. A onfirmação surgirá num futuro breve.

Cronologia

Hergé confunde-se com Tintin. A sua mais genial criação é um dos símbolos gráficos do século XX. Os seus álbuns estão traduzidos em 50 línguas.

1907

Nasce Georges Remi. Ficará mundialmente conhecido pelo apelido Hergé.

1929

Publica a primeira prancha de "As aventuras de Tintin no país dos sovietes".

1940

A ocupação da Bélgica pelos nazis obriga-o a aprofundar o seu universo. Conhece Edgar P. Jacobs, autor de "Blake e Mortimer".

1946

Nasce a revista "Tintin"

1950

Criação dos Estúdios Hergé. Desenvolve, em três anos, a aventura lunar de Tintin.

1976

Publica "Tintin e os pícaros", última aventura do herói.

1983

Hergé morre de leucemia.

O que havia no seu lápis para lá de Tintin

O desenhador belga mais celebrado de sempre não criou só Tintin. Na bibliografia de Hergé existem outras séries de vida efémera, mas com carácter valioso. A mais conhecida é "Les exploits de Quick e Flupke" ("Aventuras e desventuras de Quim e Filipe" na edição portuguesa da Verbo, 12 miniálbuns de 32 páginas), que narram as diabruras de dois miúdos belgas, "levados da breca" para inventarem sarilhos e confusões, à conta das partidas que gostam de pregar.

Nascidos em Janeiro de 1930, um ano depois de Tintin, duraram quase 11 anos e revelam um Hergé mais espontâneo, irónico e quase desrespeitoso, que "através destes gags de uma ou duas páginas, viveu, enfim, a infância endiabrada que nunca chegou a conhecer", disse Benoit Peeters.

Em 1936, Hergé cria "Les Aventures de Jo, Zette et Jocko" ("As aventuras de Joana, João e do Macaco Simão", edição Verbo), por encomenda do jornal francês "Coeurs Vaillants" que lhe propôs mais ou menos isto: "Sabe, o seu Tintin não está mal, gostamos muito dele. Mas é assim: ele não trabalha, não vai à escola, não tem pais, não come, não dorme... Não é muito lógico. Não pode criar uma personagem cujo pai trabalhe, que tenha uma mãe, um animal de estimação?" Nesta série, apesar da boa vontade, Hergé nunca se terá sentido muito à vontade, devido à multiplicidade de imposições e à artificialidade do conjunto.

Da bibliografia de Hergé constam ainda duas outras obras: "Totor, C.P. des Hannetons" (1926), um ingénuo precursor de Tintin, e "Popol et Virginie chez les Lapinos" (1934), um western animalista, mais curioso do que interessante.

Pedro Cleto, Jornal de Notícias, 03/03/2003


   

sábado, 8 de março de 2003

O século XX, vinte anos depois.

 Magazine Artes, 1 de Março de 2003

O século XX, vinte anos depois. [no 20.º aniversário da morte de Hergé]

João Paulo Cotrim

Duas décadas passaram sobre as manchetes que anunciaram a morte do autor do herói mais popular da linguagem do século. As complexas personagens Hergé e Tintin estão ainda vivas. Para o melhor e o pior.

Muitas páginas. Não, não somos escravos do nosso tempo, mas ele o nosso chão, aquele onde mergulhamos raízes e crescemos. Andei meses, muitos meses com o Tintin na América, versão brasileira. Desconfio que aprendi a ler com ele, que senti vertigens ao acompanhar o herói entre arranha-céus de Chicago, que descobri o valor da cultura indígena, que naquelas páginas comecei a detestar o capitalismo selvagem. Muitos heróis-do-bem depois, reaprendi a ler a amizade em Tintin no Tibete. Gostava de um dia pressentir amigos em perigo e correr para os salvar enquanto descubro misteriosas e longínquas paragens e culturas, nas quais acabo por me render à simpatia do suposto inimigo... Nestas páginas é possível experimentar o gozo de ver o subjectivo nas imagens (quase) objectivas, os múltiplos conteúdos de um quadradinho apenas, a relação entre as páginas, o rigor da planificação e a síntese do desenho. Em As Jóias de Castafiore conhecemos o exacto valor que um pequeno nada pode valer, bola de neve que chegará a ser acção de uma operática arquitectura mental. As personagens hão-de ganhar corpo para além do tique, a casa fazer-se palco, a tecnologia assumir um belo papel secundário, para no fim contar, antes de tudo, a gargalhada.

Uma biografia. Georges Prosper Remi Remi morreu com 76 anos deixando em herança Tintim, personagem popular entre as populares, a liderar um grupo (Milou, Haddock, Dupont e Dupond, etc) que atravessou o século e respectivas obsessões, que definiu uma gramática da linguagem do folhetim gráfico, que tornou o planeta mais pequeno com as suas viagens e exotismos. Mais do que uma obra, Tintin é um fenómeno: dedicaram-lhe ensaios filosóficos, centenas de livros, alguns romances e outras tantas pinturas e esculturas, milhares de páginas de jornais, baptizaram a partir das suas aventuras planetas e doenças e sítios. Pierre Assouline, director da revista Lire, traçou densamente, em Hergé, o retrato de um homem para além do mito, sem esquecer as suas zonas obscuras. Adoptando a divisa «toda a convicção era uma prisão», o belga Hergé, que guardou o seu nome próprio para uma vocação de pintor que acabou sendo apenas a de coleccionador, carregou fantasmas pesados como o desconhecimento da identidade do seu avô paterno, provavelmente um membro da alta aristocracia belga; ou os últimos dias da mãe num hospício; a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as longas e profundas depressões ou o período de colaboracionismo com a imprensa alemã durante a segunda guerra mundial. Para este seu biógrafo, apenas um entre tantos, o “pai” de Tintin foi vaidoso e generoso, mais oportunista que colaboracionista, tão dilacerado quanto obstinado e ambicioso, afinal, um individualista sempre sob influência. «Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintin», diz Assouline. «São ambos produtos típicos da classe média, mas o que os separa também é notável. O repórter mete-se em tudo o que não chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia de gatos.».

Um álbum-biografia. Setenta e tal anos depois do nascimento de Tintin é o seu autor quem se torna personagem de bd, segundo o traço claro de Stanislas e a investigação rigorosa de Bocquet e Fromental. A ideia é boa, o estilo apropriado e o tom, embora de homenagem, está longe da pieguice habitual, pelo que o conjunto resulta interessante. É um retrato íntimo e impressionista, que não esconde os lados obscuros do mestre da “linha clara”. A partir de momentos marcantes, vão-se somando as características que fizeram de Georges Remi o célebre Hergé (da fundadora e duradoira amizade com Tchang ao encontro com Andy Warhol), e de Tintin um fenómeno universal (desde 1930, quando o actor que incarnava o repórter foi recebido em loucura pela cidade de Bruxelas, no simulado regresso de um périplo pelo País dos Sovietes).

Quatro revistas. A actualidade tem revisitado o olhar de Tintin sobre a ciência (Science & Vie especial: «Tintin chez les Savants»), a geografia (número especial da revista Geo, agora reeditado em álbum), a banda desenhada (número especial da revista (A Suivre), agora reeditado pela Casterman) e até do seu reflexo entre nós (revista Quadrado, n.º 1, Vol. 3, Janeiro 2000) – primeiro país de língua não francesa a publicar as aventuras do repórter de popa que não escreveu uma linha, usava calças de golfe e nunca cruzou uma mulher. Excepto a que cantava: “Ah, rio de me ver tão bela neste espelho.”

Tintin na América, 62 pp a cores, Verbo

Tintin no Tibete, 62 pp a cores, Verbo

As Jóias de Castafiore, 62 pp a cores, Verbo

Hergé, Pierre Assouline, 828 pp, Folio, 1998

As Aventuras de Hergé, Bocquet, Fromental, Stanislas, 64 pp a cores, Mais BD, 2003

https://arquivo.pt/wayback/20050701145416/http://www.bedeteca.com/index.php?pageID=recortes&recortesID=729

Copyright: © 2003 Magazine Artes; João Paulo Cotrim