Como pode este homem tímido, deprimido e insatisfeito, com uma expressão rigidamente amável sempre estampada no rosto, ser o autor de uma obra tão luminosa? Através do testemunho dos que lidaram mais de perto com Hergé, o também autor de BD Benoît Peeters debruça-se com inteligência e sensibilidade sobre o eterno mistério da criação artística. Tintim e seus companheiros de viagem contados aos telespectadores, logo ao princípio da noite na TV2.
“Monsieur Hergé”, o documentário que a TV 2 passa hoje à noite, no Artes & Letras, vai transportar-nos a esse mundo fabuloso de mais de 100 milhões de álbuns das aventuras de Tintim, publicadas em 30 países de todo o mundo. Mas acima de tudo à figura tutelar do seu criador, Georges Rémi, para sempre imortalizado com o seu “nome de guerra”: Hergé.
Do jovem repórter, que os mais maliciosos recordam nunca ter escrito uma notícia ou reportagem sobre as suas viagens, está dito tudo o que há a dizer. Ficaram as obras imorredouras, cuja leitura toca na “corda” aventureira que existe no coração de novas gerações de leitores ou agita, com nostalgia, a memória dos mais velhos.
Mas será que ler Tintim é franquear as portas de acesso ao universo do seu criador? Sim e não, sustenta Benoît Peeters, o autor do documentário feito em 1989 para a televisão belga francófona (evocativo do 60º aniversário do aparecimento do herói da banda desenhada, em 1929) exibido esta noite. É certo que as histórias de banda desenhada de Tintim são, de algum modo, uma “projecção” dos desejos e aspirações do autor e, nesse sentido, permitem reconstituir partes importantes do percurso do próprio Hergé. Por esse motivo, Peeters optou neste trabalho por traçar dois percursos paralelos que se encontram: uma cronologia das histórias concebidas e realizadas ao longo de décadas, com remissão para estados de alma e episódios significativos da vida de Hergé que permitem avançar alguma coisa na compreensão desta ou daquela opção temática.
Mas não é menos certo que a obra não é o autor. Daí que o documentário procure colocar o homem sob a luz, tão crua quanto possível, dos holofotes, e dê a palavra a quem lidou de perto com o criador belga — antigos companheiros de profissão, as duas mulheres com quem esteve casado, amigos íntimos. Através desses testemunhos (algumas das pessoas ouvidas já faleceram entretanto, como é o caso da primeira mulher e de Bob de Moor), Benoît Peeters procura recolher elementos de resposta para esta questão central, enunciada logo no início: como pôde este homem, oriundo de uma família cinzenta, onde se falava pouco, onde não havia livros nem ideias, ser o autor de uma obra admirável?
Paradoxalmente, a solução para este enigma está nas aventuras luminosas e “positivas” de Tintim, uma criatura corajosa, inteligente e generosa e uma espécie de “alter ego” de Hergé, homem sombrio, melancólico, dado a crises emocionais e estados depressivos que tornaram progressivamente mais difícil o seu trabalho e a relação com o êxito e popularidade do seu personagem.
Todos os testemunhos confirmam que, para Hergé, a vida não era fácil de ser vivida, apesar da “boa estrela” que, dir-se-ia, nunca deixou de o acompanhar nos momentos decisivos. Homem inquieto, permanentemente “em busca de um ser, de um guia, de um cúmplice, de um iniciador”, o criador de Tintim é alguém que só consegue obter os equilíbrios pessoais indispensáveis graças às relações particulares que estabeleceu com alguns seres, para ele, excepcionais: o abade Wallé, que o traz para a banda desenhada, o escultor chinês Tchang “adoptado” em algumas das mais belas aventuras de Tintim, Jacobs (o criador de Blake e Mortimer), o padre Gall (aliás, Lakota Ishonala, que quer dizer Sioux Solitário na cultura índia pela qual alimentava uma enorme paixão), Bob de Moor (outro autor de BD) e alguns mais.
Não chegou, como afirma no final do documentário Marcel Stal, galerista e amigo pessoal de Hergé: “Nunca gozou a vida como uma pessoa normal”. Se calhar, é por isso que as aventuras de Tintim despertam nos seus leitores sensações e emoções tão agradáveis.
© 1996 Público/Carlos Pessoa
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