A acompanhar o artigo, duas ilustrações pastiches das personagens das aventuras de Tintin por A. Valério.
Os árabes chamavam-lhe o "branco-que-vende-tudo" e Tintin comprovou-o: comprou-lhe um par de esquis, um taco de golfe, um chapéu alto, uma gaiola com um periquito e um despertador, tudo absolutas inutilidades que o deixaram imensamente feliz. A cena passa-se no livro Os Cigarros do Faraó e o senhor Oliveira da Figueira, que mais tarde reapareceria em No País do Ouro Negro e em Carvão no Porão, é o único português a ter um lugar de destaque nas aventuras criadas por Hergé (há também um cientista português a bordo do Aurora, em A Ilha Misteriosa, mas o seu papel é irrelevante). O histriónico vendedor de bugigangas corresponde a um certo cliché do ser-se português, da generosidade à capacidade de improvisação, da lábia à errância por terras distantes, tudo construído em torno da imagem de um comerciante que até na capacidade de aculturação se revela bem lusitano. Ninguém, nem mesmo Hergé, se lembraria de retratar um português como financeiro ou como industrial.
Lembrei-me deste simpático Oliveira da Figueira quando meditava em alguns dos debates que atravessaram esta semana. E comecei por me lembrar dele quando ouvi as muitas lamúrias que, na segunda-feira, acompanharam a divulgação das mais recentes estatísticas sobre insolvências. No total, até Novembro, já tinha havido 5808 insolvências declaradas, um número bem superior ao do ano passado mas que, por si só, não significará muito, pois seria necessário compará-lo com dados - que desconheço - relativos à criação de empresas. Mais importante será perceber que insolvências foram essas. Um quarto dos pedidos (1535) foi entregue por empresas do sector do comércio. Quase outro tanto (1496) veio de empresas ligadas à construção e ao imobiliário.
ara todas as pessoas ligadas a estas empresas, estas insolvências foram um drama, um drama por certo agravado pela dificuldade que todos os que caíram no desemprego sentirão para se libertarem dessa condição. No entanto, por muito duro que seja dizê-lo, um elevado número de falências no comércio, na construção e no imobiliário era não só inevitável como dificilmente a economia portuguesa se recomporia sem que elas ocorressem. Durante demasiados anos, andámos a lançar obras públicas inúteis, é bom termos deixado de nos endividar para o fazer. Durante demasiados anos, vimos serem lançadas urbanizações atrás de urbanizações, e é bom termos parado de erguer mais casas para ficarem vazias (já há 725 mil habitações vazias em Portugal, de acordo com o Censos 2011). Durante demasiados anos, vimos também abrirem centros comerciais atrás de centros comerciais, sem se perceber muito bem como haveria dinheiro para tantas compras e tanto comércio, e é bom regressarmos a algum realismo.
Boa parte do aumento do desemprego provém precisamente da retracção da actividade nestes sectores (em 2011, estima-se que só a construção e o imobiliário tenham gerado mais 110 mil novos desempregados), mas será um erro pensar que é defendendo esses actividades que vamos sair da crise ou mesmo evitar mais desemprego. O que aconteceu nos últimos dez, doze anos, foi que a existência de crédito barato e financiamento abundante, a par com políticas voluntaristas, "fontistas", de governos e autarquias, permitiu uma expansão do consumo público e privado que, ao mesmo tempo que gerava um crescimento anémico, fazia explodir a dívida pública e a dívida externa. É por isso que não necessitamos, pelo contrário, de salvar (vá-se lá saber como, a não ser com mais despesa pública e mais subsidiação) os milhares de empresas que estão a desaparecer nestes sectores. O que precisamos, isso sim, é de tornar possível que surjam, em sectores com mais futuro, empresas e actividades que permitam começar a reabsorver os trabalhadores que entretanto caíram no desemprego.
O que Portugal fez nos últimos anos foi, de alguma forma, o que o senhor Oliveira da Figueira fazia no remoto principado do Khemed: comprar e vender sem grande preocupação com a inovação e o dia de depois de amanhã. Talvez tenhamos, no fundo, feito apenas o que nos está na massa do sangue, pois todo o cliché tem sempre a sua parte de verdade. O que Portugal vai fazer daqui para a frente é que já não pode ser o mesmo. O crescimento futuro não pode repetir as fórmulas falhadas dos últimos quinze anos, e é também por isso que penso que a generalidade das sugestões de menos austeridade que por aí pululam corresponde, no fundo, ao regresso das políticas que não geraram crescimento nem garantiram empregos sustentáveis.
Quando olhamos para trás e recordamos o que se passou nas últimas décadas, verificamos que Portugal só conheceu dois períodos de rápido desenvolvimento económico: entre 1960 e 1973 e entre 1986 e 1991. O que permitiu esses surtos desenvolvimentistas foi sempre um choque externo: na década de 1960, a adesão de Portugal à EFTA; na década de 1980, a adesão à então CEE. Mais: como recentemente explicava José Manuel Félix Ribeiro, o período mais vigoroso desse desenvolvimento (entre 1969 e 1973) foi possível porque houve três motores a puxarem por Portugal ao mesmo tempo, a saber, o boom das indústrias exportadoras do Norte do país, tornado possível pela abertura dos mercados da EFTA; os investimentos na indústria pesada e na indústria naval na zona de Lisboa, aproveitando a oportunidade da mudança das rotas de navegação pós-Guerra dos Seis Dias; e o início do envio pelos emigrantes das suas remessas, o que deu liquidez ao sistema bancário.
É difícil imaginar a repetição dessas condições. Ou mesmo das condições conhecidas no início do chamado "cavaquismo". Ou de qualquer coisa de semelhante. O mais parecido que temos com um "choque externo" é a troika, mas até a evidente necessidade de financiamento não tem impedido a dissolução do consenso que chegou a parecer existir em torno da alteração dos nossos modos de vida. Mesmo assim, não é preciso ser tão optimista como António Borges para perceber que algum caminho tem sido percorrido pela nossa economia.
Para já, tudo indica que os nossos Oliveira da Figueira voltaram a demandar o mundo. Boa parte da expansão das exportações portuguesas deve-se a muitos e muitos empresários que, tendo de enfrentar a contracção do mercado interno, se viraram para o exterior e conseguiram encontrar novos clientes. Óptimo, mas insuficiente. Estamos também com baixíssimos níveis de investimento e isso indica que se está sobretudo a utilizar a capacidade já instalada e que haverá ainda pouca inovação.
Para ultrapassar esta fase, será necessário voltar a investir e, sobretudo, será necessário atrair capital estrangeiro. O nosso caminho não passa, ao contrário do que sugere Louçã ou o PCP, por "substituir importações", pois isso deixaria sempre pior o consumidor final. O nosso caminho passa por pagar as importações com mais exportações - ou com o equivalente, casos da expansão do turismo ou da capacidade de atrair estrangeiros para residirem em Portugal. Ao mesmo tempo, há que não ter medo da emigração, mesmo da emigração dos "mais qualificados", como agora gosta de se dizer.
Uma coisa, porém, é certa: por muito que custe admiti-lo, e ainda mais fazê-lo, o nosso difícil futuro não passa por salvar a economia, as empresas e os empregos do passado. Da mesma forma que a saída da recessão não passa pelo relançamento, no curto prazo, do consumo interno. Por isso, numa altura em que começa a crescer a oposição aos cortes nas despesas do Estado, chamem-se ou não "refundação", o essencial é dizer que o que não podemos suportar são estes impostos, ou que o que queremos não é um IRC de apenas 10 por cento para os novos investimentos, queremos esse IRC para toda a economia, porque é ela, como um todo, que tem de competir nos mercados abertos da União Europeia e do resto do mundo.
Mas será que seremos capazes de ser mais do que desenrascados e um pouco mais sofisticados Oliveiras da Figueira do século XXI?
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