O problema deste “Tintin no Congo”, de 1946, é que NÃO É um produto da sua época, mas antes um falso produto da sua época, e mesmo independentemente disto é uma obra medíocre. O verdadeiro produto da sua época e da idade do seu autor é a primeira versão, de 1929, obra absolutamente deliciosa, quase obra prima. A versão de 1946 (que posteriormente também teve correcções – pelo menos uma) é um erro crasso. Insistir na reedição desta e não na outra é como alguém que cresceu fisicamente continuar a comportar-se e a falar como criança.
Manuel Caldas, 16/02/2012 08:51
(...) Infelizmente, se bem que entenda que poderá haver da parte de quem colocou a questão da primeira forma poder estar a ter outros interesses menos elevados, e na verdade os tribunais não poderem estar a legislar sobre a História de uma determinada forma, a verdade é que "Tintin no Congo" não é uma obra totalmente desprovida de questões éticas muito problemáticas. Não poderás negar que É, sem sombra de dúvida, um produto do seu tempo, significando com isso um instrumento da propaganda própria de uma Bélgica colonialista e que cria profundamente na missão civilizacional do Cristianismo numa suposta "selvagem" África. Além do mais, o Congo nem era colónia belga, mas pessoal do rei! E todos os tintinófilos sabem que a famosa vinheta em que Tintin ensinava aos congoleses a "sua" capital, Bruxelas, na versão portuguesa (igualmente num período áureo e reforçado do nosso próprio colonialismo), passava a ser sobre a capital "Lisboa". Só na segunda versão do álbum é que passou a ser uma aula de matemática. Mas muitos dos outros aspectos que continuavam a mostrar a "superioridade" do bonzinho e branco belga Tintin (há maus brancos na história, mas vejam-se de perto) mantêm-se e isso é insustentável nos nossos dias. Claro que não gostaria de ver nem a obra "truncada" nem "censurada" por decisão judicial, pois isso não é forma de educar sobre a História. Mas cabe-nos a nós, leitores de segundo grau, ter algum cuidado em querer dizer que a obra é totalmente inocente do que a acusam.
Toda a História está cheia de obras, umas menores outras maiores, que têm passagens que se tornam problemáticas em termos éticos e políticos numa outra época posterior. Isso é um dos aspectos que nos torna sempre possivelmente "um pouco melhor" que o passado (se bem que todos teremos sempre os erros das nossas próprias épocas). Não é razão para negar a História ou fazer desaparecer esses textos, mas é sim para os ler criticamente e inseri-los no seu tempo, percebendo em que eram moral e eticamente fortes e onde fracos. "Tintin no Congo", tal como outros álbuns do Hergé, têm os seus aspectos fracos.
Pedro Moura, 12/02/2012 20:17
(...)
Pois bem, enquanto símbolo, precisamente, deve fazer parte dos discursos de uma nação pensarem profundamente sobre o que é que eles representaram num determinado momento e o que eles podem representar no futuro. "Branquear" a história é sempre perigoso, sem dúvida, mas querer apagar a utilização de Tintin enquanto instrumento de um determinado tipo de propaganda ideológica é exactamente isso. E pouco importa ao próprio Hergé ou aos seus paladinos dizerem que ele não fazia trabalho ideológico, pois não há pior ideologia do que aquela que não se vê a si mesma...
Não nos podemos esquecer que Tintin, claro, é uma personagem fictícia e, mais, de vários livros, alguns dos quais foram sendo refeitos em vários aspectos. Mas apontar ao "Tintin no Tibete" ou ao "Carvão no Porão" e querer que os valores aí expressos passem para todos os outros livros, ocultando a relativa ignorância que se apresenta em "O Templo do Sol", o posicionamento político conservador liberal em "Entre os Pícaros" ou os mais antigos, é um exercício de pura preguiça mental.
Atenção, nós não estamos isentos deste exercício enquanto portugueses. Sempre que oiço alguém fazer rasgados elogios dos "Descobrimentos" ou de como "abrimos mundos ao mundo", sinto um arrepio na espinha por essas mesmas pessoas se esquecerem do que isso significou enquanto história do esclavagismo, e dos crimes que isso implicou. Aliás, em muitos dos comentários em torno da acção deste cidadão do Congo, um pouco pela internet, a cabeça do racismo aparece de imediato, usualmente pintalgada de uma estúpida ignorância da história colonial, que criou as bases precisas pela miséria em que muitos desses países hoje vivem, e que servem somente para que os "brancos" não compreendam porque é que os africanos não aproveitaram a nossa "missão civilizadora". É nestas atitudes que se apanham nas curvas os ignorantes perigosos.
Ora, "atacar" Tintin não é assim tão displicente como isso. Há matéria suficiente para o estudar, no contexto da sua época, e demonstrar como era de facto um trabalho conservador em varias dimensões. O contraste tem de ser feito com outros trabalhos gráficos do mesmo espaço europeu e que revelavam princípios bem mais atentos ao sofrimento dos outros, à condição de subalternos e á necessidade de combater pela dignidade humana universal. Apelar ao facto de que o "tintin" era simplesmente uma revista infantil, logo, que não valia a pena fazer um trabalho mais sério, é areia para os olhos. Não quer isto dizer que tenhamos agora que queimar livros em praça pública, mas pelo menos encetar estas discussões e não proclamar de forma final que "Tintin não é racista" (ou que "Tintin é racista"). Mais, o facto de um autor se desculpar mais tarde não dirime as responsabilidades da obra, que fica. A banda desenhada está cheia de representações negativas do Outro (veja-se o livro de Frederik Strömberg, "Black Images in the Comics" para apanhar de tudo, de McCay a Eisner, de Tezuka a outros... o problema é que a representação redutora de África continua hoje a ser feita na banda desenhada mais comercial) e é preciso apontar o dedo.
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