Na edição de 17 de Maio de 2007 da revista Visão foram publicadas várias homenagens a Tintin.
Tintim sou eu!’
No centenário do nascimento de Hergé, a VISÃO convidou cinco autores portugueses de BD a revisitarem a sua mais célebre personagem. Na VISAO.pt, pedimos ao mesmo aos leitores. Veja aqui as homenagens dos cinco desenhadores e envie-nos os seus desenhos, histórias, o seu próprio Tintim
Ana Margarida de Carvalho / VISÃO nº 741 17 Mai. 2007
ver as imagens publicadas na revista em
https://arquivo.pt/wayback/20081022124517/http://kuentro.weblog.com.pt/arquivo/2007_05.html
ou em
https://tintinemportugal.blogspot.com/2011/07/revista-visao-741-100-anos-de-herge.html
artigo de Geraldes Lino
cópia do desenho de Pedro Massano publicado na revista Visão de 17 de Maio de 2007 aqui na versão da folha volante de Junho de 2007 (Tertúlia BD)
https://arquivo.pt/wayback/20081022124517/http://kuentro.weblog.com.pt/arquivo/2007_06.html
artigos publicados na edição especial da revista Visão
Tintim e as polémicas
Hergé haveria de se arrepender das duas primeiras aventuras de Tintim. Nem todos lhe perdoaram o anticomunismo primário do País dos Sovietes e o racismo colonialista de Tintim no Congo
No início era mais narigudo. Mais baixo, gordo e usava as mesmas calças de golfe, só que axadrezadas. A poupa já estava lá, mas caída – só se erguia quando lhe dava o vento. Tinha a seu lado a eterna companhia de um fox-terrier branco, com pêlo mais hirsuto. Foi assim a primeira aparição de Tintim, a preto e branco, em 1929, nas páginas do Petit Vingtième, um
suplemento juvenil semanal de um diário da direita belga chamado Le Vingtième Siècle, que se definia como «jornal nacional católico de doutrina e informação». Tintim no País dos Sovietes, uma reportagem na «Rússia soviética», foi a aventura inaugural. Um não muito convincente repórter faz a longa lista das tiranias e abusos soviéticos. E ao longo dos quadradinhos vemos os «bolcheviques» a ganhar votações por unanimidades impostas à conta da artilharia virada contra a população russa de rostos caídos e ombros vergados. Ou os fardos de palha postos na boca das chaminés fabris para simular uma intensa laboração industrial. «Eis como os sovietes enganam os infelizes que ainda acreditam no paraíso vermelho», escreve Hergé, que chama a Moscovo «pardieiro infecto». Toda a aventura se baseia numa única fonte: o faccioso livro Moscou Sans Voiles, de Joseph Douillet, um ex-cônsul da Bélgica que muito contribuiu para alimentar os preconceitos ocidentais e a obsessão anticomunista. Num dos capítulos do livro pode ler-se a descrição da «premeditação imoral dos comunistas» que reuniam alunos do sexo feminino e masculino no mesmo liceu... Foi um grande erro, admitirá Hergé mais tarde, «um pecado de juventude». Ao contrário de outras aventuras, construídas com a exactidão de investigações prévias, Hergé nunca retocou nem coloriu Tintim no País dos Sovietes. Face à proliferação de versões-pirata, publicou uma edição fac-similada do original, apenas em 1981.
Também a segunda aventura, Tintim no Congo (1930), esteve debaixo de prolongada quarentena. Depois dos medonhos comunistas, segue-se a apologia da imensa colónia belga. O álbum torna-se um repositório de clichés coloniais e de estereótipos paternalistas da superioridade europeia. Os negros têm todos a mesma feição, tratam os brancos por «sinhô» e o sensato Tintim é aí o mais cruel e ecologicamente incorrecto dos caçadores: massacra rinocerontes com dinamite, é serial killer de antílopes, mata um macaco por causa da pele... Mais tarde, Hergé haveria de se revelar arrependido de tal carnificina. Também este livro se lhe tornou incómodo – «Não conhecia esse país a não ser pelo que as pessoas contavam na época: 'Os negros são crianças grandes, felizmente para eles nós estamos lá'. Desenhei os africanos segundo estes critérios, com o mais puro espírito paternalista, que era o da altura na Bélgica.» As pranchas foram alvo, depois da descolonização, de vários revisionismos, e o livro passou a chamar-se Tintim na África.
Tintim e a tecnologia
Hergé foi ganhando uma obsessão perfeccionista com os adereços das suas aventuras. Carros, barcos, aviões, armas, máquinas e mesmo foguetões obedeciam a padrões reais ou muito verosímeis
E sobretudo a partir de O Lótus Azul (1936) que o espírito meticuloso de Hergé se acentua. Aliás, esta é unanimemente considerada a sua primeira obra-prima. Depois dos maldosos bolcheviques, dos africanos tontos, dos americanos gangsters, temia-se que os preconceitos de Hergé se estendessem ao Extremo Oriente. Nada mais errado. Tintim escapa à armadilha dos estereótipos, graças à cuidadosa documentação de Hergé, em busca da realidade. Torna-se um pesquisador compulsivo, num arquivador metódico de todo o tipo de documentos: fotos de países exóticos, postais ilustrados, recortes de imprensa, catálogos, artigos da National Geographic e do Paris-Match. É de um perfeccionismo extremo, tudo tem de ser de uma exactidão rigorosa. Detém-se na importância de um pormenor, no realismo dos detalhes. E na veracidade da tecnologia. Todos os automóveis são modelos reais, o desenho das armas e das máquinas fotográficas retirado de catálogos, os motores e lanchas de informações recolhidas em eventos náuticos... Mais tarde, quando fundou os Estúdios Hergé, tinha especialistas para cada área, inclusive um para aeronáutica que controlava todos os pormenores dos engenhos voadores. A investigação preparatória delongava-se e Hergé obrigava a vários esboços até ver o seu rigor perfeccionista satisfeito.
Às vezes, mostrava um prodigioso sentido de antecipação, tal como outrora Júlio Verne. Os primeiros passos na Lua foram dados por Tintim, 16 anos antes de Neil Armstrong. O astronauta disse: «Um pequeno passo para o Homem, um grande salto para a Humanidade.» Antes, Tintim, pisando o satélite, já tinha dito: «Sem dúvida pela primeira vez na História da Humanidade alguém caminhou na Lua!»
A semelhança, quase profética, entre ficção e realidade – as consequências da ausência de gravidade, os beliches ortopédicos do interior da nave, os sapatos de sola magnética, os fatos e os carros espaciais, o sistema de alunagem – não foi mera coincidência: Hergé chegou a mandar fabricar uma maqueta do célebre foguetão vermelho e branco para controlar melhor a reprodução dos pormenores. Foi extenuante, confirmou Hergé.
A partir daí, Tintim, partirá em aventuras mais terrestres. Pela primeira vez, em finais de 1954, Hergé parte em viagem de reconhecimento à Suíça e aos locais onde iria enviar o seu herói, munido de máquina fotográfica e bloco de desenhos. O Caso Girassol, uma aventura muito cinematográfica, é considerada umas das mais bem conseguidas. Também aqui a tecnologia está presente, num aparelho de ultra-sons parabólico verídico. Na obra-prima humorística As Jóias de Castafiore antecipam-se progressos tecnológicos: Girassol inventa uma imperfeita e encadeante televisão a cores.
Tintim e a família de papel
Entre amigos e vilões, Tintim congrega à sua volta uma peculiar galeria de personagens. Que outro herói de BD junta ao seu lado uma cantora de ópera, um cão e um irascível marinheiro alcoólico?
O álbum é o Voo 714 para Sydney. Depois do desvio do avião, e da aterragem numa pista descartável sobre uma ilha, Tintim ouve um grito. «Esta voz!?!», pergunta-se. E depois exclama: «Rastapopoulos!» A confirmação troveja como um tiro: «O próprio, meu caro.» Mais do que os desonestos antiquários irmãos Pardal, ou que o adorável e endiabrado Abdallah, que oferece cigarros explosivos, ou que Al Capone e o seu gang, ou que o doutor Krollspell, que injecta soro da verdade, ou que o milionário e batoteiro Sr. Carreidas, «o homem que nunca ri», ou que Peggy, a antipática mulher de Alcazar que a trata por «pombinha», ou que o ambivalente Wolff, traidor arrependido, ou que Boris, o coronel de monóculo... – Rastapopuolos (e seu assistente Allan) é personagem ainda mais abominável que o dito homem das neves, em Tintim no Tibete. Ele é o inimigo número um do repórter e comparece para lhe assombrar a existência em diversas aventuras, seja enquanto cineasta, traficante, negreiro, raptor, pirata do ar...
Em contrapartida Tintim tem alguns aliados.
A começar por Milu, o fox-terrier, com um apreço muito mais moderado do que o dono pela aventura, mas que o salva, às vezes com hesitações, no último instante. Tanto o cão como o capitão Haddock, ambos com uma certa indiferença em relação a valores de carácter e de justiça, desempenham a função dramática de contrapeso ao virtuosismo extremo de Tintim. O Capitão só se torna verdadeiro actor secundário em A Estrela Misteriosa. A figura cresce, a sua caracterização adensa-se, torna-se até mais complexa que Tintim. O profundo amor à bebida e os nomes inolvidáveis (já se contaram 169 diferentes, ao longo dos álbuns) com que costuma insultar bandidos, lamas, ou papagaios tornaram-no numa personagem antológica da BD mundial. O professor Girassol é o sábio distraído e surdo que nem uma porta, lunático mas inventor de ponta, secretamente sentimental, repentinamente colérico. Tchang é o amigo chinês, adorado por Tintim, que o faz partir em sua busca, para os gélidos Himalaias. Castafiore, o Rouxinol milanês, a diva adulada no mundo inteiro, por quem Haddock sente uma verdadeira alergia – partilhada, ao que parece, por Hergé, que falava do enfado dos serões de ópera a que a mulher o obrigava. Lampião é o protótipo do belga, o profundamente maçador e insistente vendedor de seguros – sempre com bonomia, ele importuna em todo o seu esplendor. Depois ainda há os sincronizados e muito redundantes detectives Dupont e Dupond, inspirados no pai e irmão gémeo de Hergé, que visitam a «família Tintim» com assiduidade. E dir-se-ia mais: com grande mais-valia humorística para as histórias.
Tintim, o mundo e mais além
Uma boa parte do fascínio das aventuras de Tintim vem das suas grandes viagens. O planeta Terra não chegava para Hergé: inventou a Sildávia e a Bordúria, e levou o seu alter ego até à Lua...
Se Hergé era um viajante de pantufas, Tintim é um globetrotter impenitente. Da direita para a esquerda do planisfério, estes são os lugares onde famoso repórter deixou pegadas. Na Oceania – em O Voo 714 para Sydney (1968), em que Tintim e o capitão passam por Jacarta, na Indonésia, conhecem a embirrante personagem do Sr. Carreidas e até contactam com extraterrestres. Na China – onde Tintim conhece o amigo Tchang, em O Lótus Azul (1936). Nos Himalaias – onde se conta uma pura história de amizade: Tintim procura resgatar Tchang de um acidente de viação e das garras do Yeti, em Tintim
no Tibete (1960). Em Moscovo – no álbum inaugural, Tintim no País dos Sovietes (1930). Nos Países Árabes – onde Tintim intercepta o odioso tráfico humano, em Carvão no Porão (1958), ou se perde no Sara em O Caranguejo das Tenazes de Ouro (1950), ou, ainda, onde segue o rasto dos narcotraficantes nos desertos do Egipto, em Os Charutos do Faraó (1934). Na África subsariana – nos tempos algo racistas da Bélgica colonial, em Tintim no Congo (1931). Nos países de Leste – em Praga e na imaginária Sildávia e Bordúria, onde Tintim salva o reino de um golpe de estado fascista, em O Ceptro de Ottokar (1939). Também os preparativos da expedição lunar se fazem no inventado solo sildavo, em Rumo à Lua (1954), e por estes territórios da Guerra Fria se procura o distraído professor, em O Caso Girassol (1956). Bélgica – os tempos mais sedentários de Tintim são passados no palácio de Moulinsart, na não-aventura, cheia de quiproquós e mal-entendidos de As Jóias de Castafiore (1936), e também aí (e nas profundezas do oceano Atlântico) se passa O Segredo de Licorne (1943) e O Tesouro de Rackham, o Terrível (1944). Na Bretanha – onde Tintim enfrenta um bando de falsários e um monstro, afinal, mais dócil do que os donos, em A Ilha Negra (1938). Em França – em As Sete Bolas de Cristal (1948), novamente em busca de Girassol. No oceano Árctico – Tintim integra uma expedição em busca de um aerólito, em A Estrela Misteriosa (1942). Nos Estados Unidos – onde Tintim conhece um vilão de carne e osso, Al Capone, e os índios nas reservas, em Tintim na América (1932). Na América Latina – no Peru, onde, de facto, Tintim, Haddock e Milu reencontram o professor, prisioneiro de uns sobreviventes dos Incas, só salvos da fogueira graças a um eclipse do Sol, em O Templo do Sol (1949); algures na selva, entre a Bolívia e o Paraguai, atrás de uma estatueta quebrada, por entre o tiroteio das convulsões revolucionárias, em A Orelha Quebrada (1937). Na sua última aventura publicada, Tintim e os Pícaros (1976), entre os guerrilheiros barbudos, vagamente inspirados nos castristas de Cuba, mas com o inevitável Alcazar na liderança. E depois de tantos pioneses no planisfério, só faltava mesmo ir à Lua... e voltar, em Explorando a Lua (1954).
Tintim e os portugueses
Portugal foi o primeiro país a ler Tintim em quadradinhos coloridos. Os portugueses seriam perpetuados na obra de Hergé com a personagem de Oliveira da Figueira, comerciante lisboeta
Hergé nunca esteve em Portugal, mas privilegiou o nosso país no seu imaginário. Oliveira da Figueira, comerciante lisboeta capaz de vender uma gaiola a quem não tem canário, é uma das mais importantes figuras secundárias da saga tintinesca. Pouco importa que tenha bigodaça grega, roupas levantinas e beba vinho italiano: ele é português porque Hergé o quis e porque o seu nome de cristão-novo o atesta. O próprio Tintim vestiu pele de luso no episódio do Ouro Negro, quando Figueira o fez passar pelo sobrinho Álvaro. Por outro lado, um dos cientistas da expedição que procura a Estrela Misteriosa era um professor de Coimbra (embora para isto haja uma explicação: nesses anos de ocupação alemã da Bélgica, Hergé publicava no jornal colaboracionista Le Soir, e os «bons» tinham de ser oriundos de países aliados de Hitler ou neutrais). E à partida para o Congo, Tintim é entrevistado por vários jornalistas, entre os quais um do Diário de Lisboa.
Hergé tinha razões para gostar de Portugal: o nosso foi o primeiro país não-francófono a publicar as histórias de Tintim, e o primeiro do mundo (Bélgica incluída) a fazê-lo a cores. Foi a partir de 1936, no semanário infantil O Papagaio. O nome do herói, apresentado como português, escrevia-se Tim-Tim, e o seu cão era Rom-Rom. Nesse jornalinho, dirigido por Adolfo Simões Müller (1909-1989), saíram nove histórias de Tintim, a começar por Tim-Tim na América do Norte. A aventura do Congo chamou-se, naturalmente, Tim-Tim em Angola. Conforme confidenciou ao autor destas linhas , o director do Papagaio , que conhecera o material de Tintim através do padre Abel Varzim, que estudara em Lovaina e conhecera pessoalmente Hergé, pagava as pranchas em latas de conserva, que o desenhador fazia seguir para o lag alemão onde o seu irmão se encontrava preso.
Quando O Papagaio deixou de voar, Tim-Tim transitou para o Diabrete, também dirigido por Müller. Ali saíram, de 1949 a 1951, mais três aventuras. Ao Diabrete sucedeu o Cavaleiro Andante, ainda dirigido por Müller, onde, na década 1952-1962, foram dados à estampa sete novas histórias, começando com O Templo do Sol e terminando com Tim-Tim no Tibete (iniciada no efémero Foguetão). O Zorro, sucessor do Cavaleiro, publicou em 1963-64 As Jóias da Prima-Dona.
Finalmente, em 1968 começaria a publicar-se a versão portuguesa da revista Tintin, onde, até 1982, sairia a totalidade das aventuras do herói. Tim-Tim no Tibete e O Caranguejo... saíram ainda, em 1972, em rodapés do Diário de Notícias.
Se, em Portugal, a publicação de Tintim foi precoce na imprensa periódica, em álbum não pode dizer-se o mesmo. Como os direitos para a nossa língua eram detidos por editoras brasileiras (primeiro a Flamboyant e depois a Record), só em 1988 arrancaria a publicação regular da série, a cargo da Verbo. Mas também o semanário O Independente, o Círculo de Leitores e o jornal Público lançaram, total ou parcialmente, os álbuns de Tintim.
Sem comentários:
Enviar um comentário