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sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Boneco Rebelde

O boneco rebelde será uma versão portuguesa de Tim-Tim. O herói belga aparecera três anos antes em "O Papagaio" e entra nas três folhas iniciais da primeira aventura do Boneco Rebelde.

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"Aventuras do Boneco Rebelde" de Sérgio Luís

Um lugar mágico da BD portuguesa

Um boneco rebelde, saído de um frasco de tinta, abre portas no oceano, percorre destinos exóticos. Se se disser que o boneco saltou, em finais dos anos 30, do frasco de tinta do seu criador, Sérgio Luís, para as páginas de "O Papagaio", permite-se descobrir um dos legados mais invulgares da BD portuguesa.

A 20 de Maio de 1943 houve uma notícia necrológica, claramente adocicada, para os leitores da publicação infanto-juvenil "O Papagaio". Escrevia-se que Sérgio Luís, "esse moço cheio de talento (...) partiu para essa grande viagem donde não se volta". Deixava concluída a derradeira aventura de "O Boneco Rebelde", cuja última prancha surgia nessa data.

Sérgio Luís, que alguns consideram um dos autores mais relevantes da BD portuguesa, havia falecido três meses antes, aos 21 anos, de tuberculose. Seis meses mais tarde, seguia-se, em circunstâncias idênticas, Guy Manuel, seu irmão, um ano mais novo, e nome que aparece igualmente ligado à génese de "O Boneco Rebelde" - como se esta fosse uma obra marcada pela fatalidade, que o tempo trataria de apagar os vestígios, os mesmos de um boneco que animou durante cerca de quatro anos e que surgem agora reunidos, na sua totalidade, num volume recentemente editado pela BaleiAzul.

Nas concepções de "O Boneco Rebelde" surgem sínteses que Sérgio Luís levaria ao paroxismo, na forma com jogou com as convenções narrativas da BD. Em impurezas gráficas, que tiverem igualmente paralelo, lá fora, em "Little Nemo", de Winsor McCay, e em "Felix The Cat" de Pat Sullivan. Sérgio Luís seria ainda um dos percursores do cinema de animação em Portugal, num pequeno filme de 10 minutos que curiosamente não deixa de estar ligado à sua doença (as radiografias serviriam-lhe de transparências para traçar as sequências). "Os Bonecos Rebeldes", a mostra que a Bedeteca de Lisboa dedicou, no princípio deste ano, à obra dos irmãos Sérgio Luís e Guy Manuel, permitiu ver essas imagens, que aparecem ainda num "flip book", inserido no catálogo.

O prefácio crítico e a organização do álbum da BaleiAzul, pertence a Carlos Bandeiras Pinheiro e João Paiva Boléo, e apresenta, para além de material inédito, algumas pranchas remontadas a partir das páginas do "O Papagaio", por questões, segundo os prefaciadores, que se prendem com a uniformização do álbum.

Quatro aventuras constituem o núcleo do livro, incluindo assim a totalidade dos trabalhos de "O Papagaio"- 1939 /1943 - sobre um boneco, conotado desde o início pela sua rebeldia aos dispositivos da criação. Inspirado vagamente em Tintin - com quem aliás se encontra na aventura inaugural - o boneco rebelde submete-se, logo aí, à sátira, surgindo gags recorrentes à obra de Hergé. Na forma caricatural como é castigado pelo autor, os meios de deslocação tornam-se variados, sublinhando ainda que é um boneco saído de um frasco de tinta; mas estão lá também as súbitas transgressões matéricas: sai de tinteiros, abre portas em tábuas destinadas ao seu salvamento, desenha-se a si próprio ou voa constantemente de terra em terra.

Como fica inscrito no prefácio, "(...) a naturalidade com que passa de uma sequência de suspense para um universo poético e surreal(...)" justifica um género onde surgem premissas do fantástico: quando o boneco se confronta com duas bruxas, uma má e outra boa, que se fundem numa só, irrompe um fluxo de impurezas que joga na apropriação de matérias tão diversas como os romances de cavalaria e contos de fadas. É no resgatar dessas marcas de singularidade - e onde podem ser vistas as figuras femininas desenhadas pelo seu irmão Guy Manuel, sobretudo nas aventuras "O Livro Mágico" e "A Ilha Misteriosa"- que surgem óbvias conotações lúdicas, conferindo uma particularidade a este lançamento da BaleiAzul.

"As Aventuras do Boneco Rebelde" são imagens que habitam um lugar mágico da BD portuguesa que aparece agora à luz do dia.

Título: "Aventuras do Boneco Rebelde"

Editor: Edições BaleiAzul, colecção Bedeteca

Autor: Sérgio Luís

5.775$00, 151 pgs

Nuno Franco, Público


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