segunda-feira, 8 de julho de 2024

Tintim, por António Mega Ferreira


Conheci Tintim quando ele acabava de celebrar o seu 25º aniversário, era eu um miúdo de cinco anos. Foi nas páginas do "Cavaleiro Andante" que me encontrei com Tim-Tim, repórter "português", como então se escrevia. E eis o que guardo desse primeiro encontro (creio que começaram por publicar o "Templo do Sol", que só li bastante mais tarde): a clareza das imagens ("falavam" por si), a imprevisibilidade do génio do repórter-menino, o visível estrépito de um muito "gauche" capitão Rosa (era assim que se chamava o glorioso Haddock) e até o toque disneylândico de um cãozinho falante, a que os muito edulcorados editores portugueses deram o nome de Rom-Rom... 

O verdadeiro "coup de foudre" aconteceu com a longa série de episódios (a publicação original no "Journal de Tintin" alongou-se por quase três anos) que compunham as duas aventuras em que Tintim se abalança a ir até à Lua, quinze anos antes de Scott e Armstrong lá chegarem. E ficará para sempre comigo a estranha, descomunal aposta que consta da primeira parte da história, cujo ícone incontornável (criado pelo desenhador Bob De Moor, que se juntou à equipa chefiada por Hergé) é o prodigioso foguetão aos quadrados brancos e vermelhos, bandeira da Croácia antes de a Croácia ser...

Com as pranchas de "Rumo à Lua" ("Tim-Tim na Lua", titulava o "Cavaleiro Andante") sob os olhos, revejo, uma a uma, as sequências que então fizeram o meu encantamento. Por exemplo, o quadro da garrafa de água mineral que encharca o capitão Haddock (há uma cena paralela a esta em "L'Oreille Cassée", quando o lama cospe para o desprevenido capitão); ou Haddock emergindo, envolto em neve carbónica, do incêndio que ele próprio provocara ao acender a corneta acústica de Tournesol (Pintadinho de Fresco na muito chauvinista versão do "Cavaleiro Andante", que, aliás, "nacionalizava" todas as personagens); ou o escafandro exageradamente grande de Milou; ou Tournesol a dormir, empoleirado nos fios eléctricos exteriores, após a explosão de um obus; ou a "dança" de Haddock dentro do escafandro, por causa dos ratos; ou a hilariante sequência em que Haddock e Tintim tentam trazer Tournesol à razão e a imagem extraordinária do foguetão erguendo-se no espaço, com a Terra ao fundo.

Aquela sequência, belíssima, de Tintim no exterior da base e o episódio cómico com os ursos atraídos pelo cheiro do mel continuam associados vagamente a um qualquer odor da minha infância, mas confesso que, não sendo Proust, não consigo desbobinar, a partir desta vaga reminiscência, qualquer discurso real ou imaginariamente autobiográfico...

Como quase de certeza não tinha letras suficientes para ler a história, é nestas imagens, no seu poder evocatório ou sugestivo, que se deve procurar a persistência da minha infinita ternura pelas personagens criadas por Hergé, figura à qual, uma vez conhecida a biografia, dificilmente se pode dedicar mais do que um aceno de agradecimento, sem simpatia. Porque Hergé foi um "compagnon de route" do fascismo belga e simpatizante da barbárie nazi, isso hoje ninguém põe em dúvida (mas não celebramos Céline e Ezra Pound?). "Assez sur l'homme."Há duas coisas que me parecem irresistíveis em Tintim: por um lado, a clara arquitectura gráfica e visual da história, o uso de cores firmes e legíveis, a bidimensionalidade aparente (já repararam que as figuras de Hergé não projectam sombra, a não ser em contraluz?); por outro, o registo humorístico em que tudo se passa, retirando à história aquele grau de verosimilhança que a BD mais tarde iria reivindicar. Mesmo ao tempo em que comecei a folhear o "Cavaleiro Andante", outras personagens erguiam-se como paradigmas sérios de aventuras vividas como vida. O hierático Príncipe Valente, o turbulento Johnny Hazard (mas muito haveria a dizer sobre o aliciante "empastelamento" das imagens em Milton Caniff), o futurista Flash Gordon eram demasiado reais para serem verdadeiramente eternos na memória. Tintim era uma aventura de crianças contada e vivida como aventura e era isso que contava, para quem não podia ver ainda para lá do que as imagens lhe ofereciam."Rumo à Lua" não tem, por assim dizer, enredo. Na sua volumosa biografia de Hergé ("Hergé", 1996), Pierre Assouline conta como, apesar da frutuosa colaboração que mantiveram logo a seguir à Segunda Guerra, o autor de Tintim e o grande Edgar P. Jacobs (Blake e Mortimer, evidentemente) divergiam em aspectos fundamentais de construção da história: "Mesmo que não o diga, Hergé não se adaptava ao classicismo e à rigidez do seu colaborador... Segundo ele, a obsessão decorativa do seu confrade exercia-se em detrimento do ritmo da narração, da respiração da narrativa. Jacobs, para quem o exotismo começava logo nos arredores de Bruxelas, continuava a sonhar com imagens densas, a conferir uma dimensão mitológica e dramatúrgica aos lugares mais banais do nosso ambiente quotidiano, a calcular o trajecto das personagens a partir de verdadeiros horários de autocarros e a projectar-se no universo de a Marca Amarela. Nos antípodas da visão do mundo de Hergé, mas que importa" (págs. 394-95). Em 1947, consuma-se a ruptura.

Duas visões do mundo, de facto. Para o que aqui me interessa, convém reter a de Hergé: infinitamente simples e clara, quase adolescente (quando não mesmo infantil), ligada para sempre à sua origem, a de um desenhador de "cartoons" para publicações católicas e de escuteiros. Essa visão "boy-scout", por muito perniciosa que possa parecer aos exegetas "psicanalistas" de Tintim, cola perfeitamente com a capacidade de deslumbramento da criança perante o mundo. Hergé contava às crianças aventuras onde a dor, o sofrimento e a morte estavam de todo ausentes. Os bons, como os maus, sobreviviam aos seus próprios infortúnios circunstanciais, para retomar mais adiante a narrativa de uma teia simples de golpes e contragolpes pelos quais se construía, quase sem história, a "estória" a contar. É curioso pensar que, de toda a sua obra, é o díptico lunar que provoca maiores reticências críticas (Assouline, cit., págs. 500-15). A aventura espacial de Tintim é para Hergé um imperativo tornado necessário por aquilo que ele julgava ser, no início da década de cinquenta, o declínio do "Journal de Tintin". Hergé entendia que as suas histórias deviam cada vez mais ligar-se aos acontecimentos que andavam na boca do mundo e, de facto, a partir de 1957, a conquista do espaço vai tornar-se um tema quotidiano. Para mim, quaisquer que sejam as considerações de ordem estética que o díptico inspire, é através de "Rumo à Lua" que se abre a via láctea da banda desenhada, vista então entre nós como "histórias aos quadradinhos", mas percebida por mim, nesses meados de cinquenta, como a verdadeira porta aberta para a fantasia, a imaginação e o humor. Para uma criança que apenas começava a conhecer as primeiras letras, Tintim foi a revelação da televisão - antes de a televisão existir.

António Mega Ferreira, Público, 18/01/1999

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UMA INFÂNCIA FELIZ E BEM POVOADA

Nunca meti o dente nos romances de Walter Scott, mas chorei com Coração de Edmundo de Amicis e delirei (ainda deliro, eh oui!) com todas e cada uma das aventuras de Tintin. Foi, portanto, uma infância feliz e bem povoada. As grandes solidões vieram depois, com L’Étranger de Camus e O Velho e o Mar de Hemingway. Mas isso são outras histórias de outras leituras.

(na lista de leituras recomendadas pelo entrevistado é indicado: Revista Cavaleiro Andante e Aventuras de Tintim, Hergé)

(...)

http://magnetesrvk.no-ip.org/casadaleitura/portalbeta/bo/portal.pl?pag=sol_lminf_detalhe&id=71

António Mega Ferreira (1949-2022) foi um escritor, tradutor, jornalista e gestor cultural português.

https://divulgandobd.blogspot.com/2016/10/palestra-sobre-bd-por-dr-antonio-mega.html


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