quarta-feira, 30 de maio de 2007

Hergé ainda na sombra de Tintim

Cem anos passados sobre o seu nascimento, o autor belga Hergé é ainda hoje conhecido (quase) apenas por ter criado em 1929 o invencível repórter Tintim, cujo sucesso se sobrepôs à vida de um homem pacato e conservador. Hergé dedicou mais de vinte álbuns a Tintim.

“Não há referências na banda desenhada que se comparem a Hergé e ele foi precursor na Europa”, afirmou o divulgador de BD João Paiva Boléo. Hergé, que nasceu em Bruxelas a 22 de Maio de 1907, criou o repórter Tintim em 1929 e até hoje esta é a mais famosa personagem da banda desenhada da Europa.

Ao longo de quase cinquenta anos (entre 1930 e 1976), Hergé deixou mais de vinte álbuns com histórias ricas e bem construídas, com personagens cativantes que fazem um resumo da natureza humana, sublinhou Boléo, que se considera um “Tintinófilo”. Apesar de a banda desenhada ter dominado a sua vida artística, Hergé (nome artístico com as iniciais invertidas de Georges Remi) trabalhou nas artes gráficas. “Ele tinha aspirações a ser um gráfico e chegou a fazer desenhos publicitários nos anos 1930, deixando trabalhos com um sentido moderno do seu tempo”, relata João Paiva Boléo.

No entanto, Tintim e o seu inseparável “fox terrier” Milú impuseram-se a Hergé desde que foram criados, num suplemento do jornal Le Vingtième Siècle, em Janeiro de 1929. Hergé tinha apenas 22 anos.

A primeira história, «Tintim no país dos sovietes», era a preto e branco e revelava “um traço tosco e mal desenhado. Na infância Hergé teve más notas a desenho”, lembrou o bedéfilo Geraldes Lino. O estilo, mais tarde designado “linha clara”, foi sendo aperfeiçoado ao longo dos anos, com as histórias a servirem de aprendizagem para a construção dos enredos e dos cenários realistas, a definição do traço e das cores, que influenciariam gerações de artistas.

Escuteiro na infância, agnóstico e conservador, Hergé foi, no entender de João Paiva Boléo, muitas vezes mal interpretado. “Criou-se uma lenda de que Hergé era fascista e racista”, recorda Boléo, autor de vários estudos sobre BD portuguesa. Em causa estão, por exemplo, os álbuns «Tintim no país dos sovietes» (1930), no qual o repórter é enviado à Rússia e em que Hergé alegadamente ridiculariza os comunistas, e «Tintim no Congo» (1931), com uma visão colonialista e paternalista de África por parte dos belgas. “Ele não tinha desprezo pelos negros ou pelos judeus, mas alguns dos episódios passados são verdadeiros”, refere Boléo. No entanto, as histórias e as personagens “foram gradualmente mudando, deixando para trás racismos primários ou anti-semitismos para não chocar os leitores”, referiu Geraldes Lino.

Ao longo da sua vida, Hergé foi tendo mais cuidado e sensibilidade com as interpretações políticas das suas histórias, até porque os álbuns de Tintim foram traduzidos e publicados em dezenas de países fora da Europa. “Foi a partir de «O lótus azul» (1936) que Hergé teve consciência do que andava a fazer”, denotando uma maior preocupação com o rigor, opina Boléo, referindo uma viagem que o autor fez à China. Geraldes Lino evoca, por seu lado, o crescente gosto de Hergé pela cultura e pela arte, expresso no inacabado «Tintim e a Alph-Art», publicado em 2004.

Apesar de Tintim ter ofuscado toda a obra de Hergé, o autor belga criou ainda, em 1930, a série «Quick & Flupke», publicada em Portugal com os títulos «Tropelias de Trovão & Relâmpago» e mais tarde «As aventuras de Quim e Filipe». “É a segunda série mais importante de Hergé, mais rica sociologicamente e que reflecte o que era Bruxelas dos anos 30”, descreve João Paiva Bóleo. Em 1936, Hergé desenhou a série de ficção científica «Jo, Zette & Jocko», editada em Portugal como «Joana, João e o macaco Simão».

Da sua vida privada sabe-se que Hergé foi escuteiro, não teve filhos, viveu rodeado de amigos e viajou sobretudo nos últimos anos de vida, já com a segunda mulher. Há pelo menos um português que se atravessa na vida de Hergé, quando o autor belga viveu em França durante a segunda guerra mundial, numa altura em que a Bélgica foi ocupada pelas tropas alemãs. As biografias referem que o editor de Hergé em Portugal, Adolfo Simões Muller, pagou os direitos de autor a Hergé em géneros alimentares em vez de dinheiro, dadas as dificuldades do autor. Adolfo Simões Muller foi o responsável por Portugal ter sido o primeiro país em todo o mundo a publicar as aventuras de Tintim a cores em 1936, no jornal O Papagaio. Desconhece-se a razão que levou Hergé a criar a personagem Oliveira da Figueira, um comerciante, que entra no álbum «Tintim na América» (1932).

Sílvia Borges Silva (Agência Lusa) / O Primeiro de Janeiro

https://arquivo.pt/wayback/20090725111347/http://tintinofilo.over-blog.com/20-archive-05-2007.html

sábado, 26 de maio de 2007

Tintim de A a Z

Um dicionário do mundo do popular explorador criado por Hergé.

Acusações - Por via ou do seu percurso pessoal ou de obras onde a actualidade era matéria-prima, várias polémicas perseguiram Hergé, um individualista demasiado inseguro para se afirmar para além de um meio e de amigos tão conservadores quanto presentes. Talvez seja racista, em "Tintim no Congo", mas admira os índios em "Tintim na América", desrespeita os muçulmanos, mas aprecia-lhes a arte, ama o género feminino, mas exercita a misoginia. Terá tido laivos de anti-semitismo durante a II Guerra Mundial, mas revela-se antes de mais oportunista. Tinha como divisa "toda a convicção é uma prisão"... Mas era um defensor intransigente da amizade.

Alph Art - Em homenagem a Hergé que, no momento da morte, a 3 de Março de 1983, trabalhava neste álbum publicado depois em esboço, assim se baptizaram em 1989 os prémios do Festival de Angoulême, em França, o mais importante no seu género (ver Pintura).

Asteróides - Hergé e Castafiore são, desde 1982, os nomes de dois asteróides. Os especialistas admiraram, "com estupefacção", o realismo de Adonis, em "Explorando a Lua", quando não existia fotografia alguma.

Aventura - Uma pequena perturbação no quotidiano lança uma dúvida que só encontra resposta na partida. Porque ainda há exótico, há que vencer todos os perigos, naturais e outros, para dar de caras com o mal.

Estúdios Hergé - O individualista cede, nos anos 1950, ao óbvio. Para cumprir com a sua obsessão de clareza precisa de ajuda, não apenas para uma pesquisa cada vez mais minuciosa mas para refazer em álbum o que foi sendo publicado periodicamente em moldes variáveis. Reúne Jacques Martin, Roger Leloup e Bob de Moor, entre outros, na qualidade de ajudantes na construção de universos.

Filmes - O interesse manifestado, pelo menos desde 1983, por Steven Spielberg na figura de Tintim, que alguns vêm expressa em Indiana Jones, passou a contrato em Março deste ano. Nada se sabe acerca da tecnologia ou do álbum escolhido. Foram duas as adaptações com actores, nos idos de 1960, e várias as animações, iniciadas em 1969, com "O Templo do Sol".

Foguetão - Não voaria, mas a sua forma e cores fez dele um ícone do design contemporâneo.

Gatos - Apesar de Milu, sãos os felinos os preferidos de Hergé.

Gaulle, Charles de (estadista francês, 1890-1970) - "No fundo, o meu único rival é Tintim! Somos pequenos que não se deixam vencer pelos grandes. Não se dá conta disso por causa do meu tamanho."

Géneros - Segundo o tintinófilo, João Paulo Paiva Boléo, o refugiado Hergé, em 1940, escreve de França a Adolfo Simões Müller (ver "Papagaio"), pedindo-lhe que mande dizer aos pais que se encontra bem e que lhe pague em géneros. Há-de recordar, mais tarde, as sardinhas e outros enlatados.

Insulto - É a arte maior do capitão Haddock, que também pratica a de bem beber: são centenas e torrenciais, de açambarcador a zulu, passando por cretino dos Alpes ou ectoplasma. Veja-se "Le Haddock Illustré", Albert Algoud, Casterman.

Jornalismo - Provavelmente a peça mais interessante de umas comemorações de centenário demasiado dadas ao espectacular, uma das partes da exposição Hergé, que o Centre Pompidou, de Paris, acolheu até Fevereiro de 2007, era dedicada exactamente à ideia de jornalismo. Devendo a sua formação ao frenesi das redacções, o jornalismo era, para o célebre autor belga, não tanto uma profissão, mas uma metodologia de abordagem aos assuntos (políticos, naturais, científicos, tecnológicos) do Mundo.

Linha clara - Joost Swarte, desenhador holandês, cunhou em 1977 e de modo duradoiro esta expressão para caracterizar o estilo hergeniano que, muito brevemente, assenta na omnipresença do contorno negro, das cores directas e sem nuances de luz e sombra, realismo dos cenários, regularidade obsessiva de uma paginação que se verga à força da narrativa (e do argumento).

Mecanismo - Narração em suspenso de uma história onde o exotismo serve uma enorme atenção ao presente, por vezes antecipando o futuro, sobretudo tecnológico, tendo o humor como mecanismo e horizonte um enorme esforço de clareza e extrema lisibilidade.

Objecto - Em "A Orelha Quebrada", todos os olhares e movimentos, cada gesto e desenvolvimento gravita em torno de uma estatueta em madeira da tribo dos Arumbayas. O universo hergiano desmultiplica-se em objectos, num verdadeiro "Museu Imaginário" do século, da viagem e da aventura.

Oliveira da Figueira  - Surgirá, em 1934, durante "Os Charutos do Faraó", vendendo e falando (utilidades...). É a mais notável presença portuguesa neste universo, ainda que, em "Tintim no Congo", surja um jornalista do "Diário de Lisboa", mas sem outra espessura que a de uma vinheta, a mesma de Pedro João dos Santos, físico da Universidade de Coimbra, em "A Estrela Misteriosa".

"Papagaio" - Portugal foi o primeiro país não francófono a editar Tintim, apenas seis anos depois do seu início no "Petit Vingtième". O "Papagaio", revista dirigida por Adolfo Simões Müller, acolheu, em 1936, talvez a primeira versão colorida de "As Aventuras de Tim-Tim na América do Norte". Em 1939, Tim-Tim, repórter agora ao serviço de "O Papagaio" irá a Angola (curiosa versão de "Tintim no Congo"). Até aos anos 1960, altura em que surge a revista homónima, o repórter passará pelas páginas do "Diabrete", "Cavaleiro Andante", "Foguetão", "Zorro" e "Diário de Notícias". A edição nacional em álbum aconteceu apenas a partir de 1988, na Editorial Verbo, mas todos os volumes estão traduzidos.

Personagens - No total, são cerca de 325 as personagens que acompanham Tintim.

Pintura - Hergé chegou a sonhar com uma carreira na pintura, apesar de atraído pelo grafismo e pela ilustração. A pintura não deixa de o acompanhar, por exemplo nas aventuras de Quick et Flupke que "explicam" o surgimento do cubismo, mas sobretudo no seu percurso mais tardio de amante de pintura abstracta e coleccionador. Tintim e a Alph’Art, o último e inacabado álbum, procurava uma síntese das reflexões de Hergé sobre a arte e sobre a sua personagem maior, que parece condenada à morte sob ameaça de um revólver: "Vamos atirar-te para um molde e fazer de ti um César. Serás exposto num museu. Nunca mais te veremos. Serás o coração de uma obra de arte. Estarás morto."

Quick et Flupke ou Quim e Filipe - Criados em 1930, estes putos de Bruxelas (12 volumes, na Verbo) que habitam uma infância nostálgica, são exemplo de algumas outras personagens que viveram na sombra de Tintim.

Serres, Michel (filósofo francês, 1930) - "Hergé escreveu, sem o saber, tratados excepcionais. Aprendi mais teoria da comunicação com 'As Jóias de Castafiore' do que em cem livros de um aborrecimento mortal e sem resultado. Aprendi, direi até bastante mais, sobre o feiticismo em 'A Orelha Quebrada', do que em Freud, em Marx ou Auguste Comte... Aprendi mais sobre o quase-objecto em 'O Caso Girassol' do que em qualquer outro lado. Não me diverti apenas, aprendi. Hergé faz rir, pensar e inventar: verbo único em três pessoas."

Tecnologia - Como uma espécie de arrepio, cada aventura é atravessada pela exploração lunar, pela televisão a cores, por um submersível. O século ficou assim na fotografia: irrequieto.

Universo - A obra é um todo tentacular. Há décadas que milhões de leitores fiéis das mais díspares origens encontram motivos renovadas para regressar aos álbuns. São incontáveis as releituras, as recomposições, os ensaios dedicados às Aventuras de Tintim. As suas imagens desmultiplicadas e fragmentárias tocam cada um dos meios de expressão do modo mais inesperado nos lugares mais recônditos. Qual o mistério de Tintim?

Vendas - Em Portugal, e apenas entre 1998 e 2006, já são mais de 800 mil livros vendidos. Traduzidos em cerca de 60 línguas, já somam mais de 200 milhões de exemplares. E um pouco de tudo se vende em torno de Tintim, de uma prancha de "O Ceptro de Ottokar", que atingiu os 102 mil euros, aos mais díspares objectos oriundos (ou não) das aventuras, de um projecto de parque de diversões, anunciado para Angoulême, em França, a musicais.

Viagem - Um enigma não se resolve sem partida: todas as geografias estão ao alcance da curiosidade, todos os meios de transporte serão usados para ir. Tintim sente-se prisioneiro mesmo num palácio. E Hergé dá-lhe grandes paisagens em pequenos quadrados: montanhas, florestas. Tudo começa na viagem.

XXe Siècle - Com forte carga simbólica, dada a ligação entre um e outro, século e personagem, foi naquele jornal conservador católico de Bruxelas que nasceu, no n.º 11 do seu suplemento infantil, "Petit Vingtième", a 10 de Janeiro de 1929, o repórter Tintim que naquelas páginas se manterá até à ocupação nazi da Bélgica, em 1940.

JPC, Expresso, 18/05/2007


Cartoon de Rodrigo de Matos

Expresso, 2007

terça-feira, 22 de maio de 2007

Jonas o Reguila fala com Hergé


































Carlos Sêco, um Amis de Hergé português da Lousã, excelente desenhador de BD, criador para o jornal Trevim da Lousã do herói Jonas o Reguila comemorou o centenário de Hergé com uma BD de sua autoria. Aproveitamos para os convidar a vsitarem o seu blog em http://www.jonasoreguila.blogspot.com/

Primeira tese portuguesa sobre Tintin

A invisibilidade das mulheres nas aventuras de Tintin.

"Um círculo para a cara, dois pontos para os olhos, um traço para a boca, um "u" para o nariz e já está!". Assim definiu Hergé, certa vez, Tintin. A esta simplicidade gráfica - que o tornou um dos símbolos do século XX - assente num traço límpido, servido por cores planas e luminosas, para o qual foi necessário inventar a designação de "linha clara", podemos acrescentar o seu carácter decidido e aventuroso, a defesa de valores como a justiça, a amizade e a defesa dos mais fracos. E se complementarmos ainda com a extrema legibilidade das suas aventuras, o seu ritmo vivo, o correcto doseamento de suspense, humor e acção, o dinamismo do desenho, o rigor na construção de cenários e veículos, a capacidade de síntese e a antecipação científica (mini-submarino, ida à Lua, TV a cores…) podemos afirmar que estamos próximos da perfeição. Ou na perfeição mesmo, dirão algumas vozes, explicada pela quase total ausência de mulheres em Tintin. O que não deixará de ser um problema acrescido para o projecto cinematográfico de adaptação das suas histórias que Steven Spielberg e Peter Jackson têm agora em mãos.

Foi esta ausência feminina, nunca investigada nas seis teses francesas existentes sobre o herói de Hergé, que serviu de base à primeira tese portuguesa sobre Tintin, agora editada na forma de livro: "A invisibilidade do género feminino em Tintin - A conspiração do silêncio", já disponível nas Feiras do Livro, nos pavilhões da Centralivros. Ana Bravo, a autora, justifica a escolha: "Se Hergé e a sua obra máxima já foram tema de vários trabalhos científicos por parte de reputados académicos e de múltiplas abordagens, (Hergé é um dos autores mais estudados do séc.XX) uma parte permanecia obscura. Ainda nem tudo tinha sido dito! Ou seja, o silêncio continuava….".

Após "um ano de trabalho" a conclusão foi a esperada: "As mulheres em Tintin estão conformadas a papéis secundarizantes na acção, com ocupações tradicionais e formatadas em traços de caracteres comuns de uma sensibilidade e fragilidade feminina aliadas à arte de atrair problemas".

Depois de uma dar perspectiva alargada da evolução da BD, Ana Bravo analisa a relação de Hergé com as mulheres, as de papel e as de carne e osso, de onde se percebe que "se as mulheres lograram adquirir algum protagonismo no seu círculo profissional, constata-se uma intencionalidade de ordem religiosa, social, cultural, ideológica e de público-alvo na invisibilidade das mulheres no seu universo ficcional, assim como uma inusitada incorporação de género em personagens modeladas de animalidade", concretamente Milu. Como curiosidade, regista "a tendência para discriminar salarialmente as colaboradoras: em 1977, quando o seu secretário se afastou, vítima de uma trombose, e foi substituído pela mulher, Hergé convencionou-lhe um salário 2/3 inferior ao do marido."

A autora analisa ao pormenor (nº de aparições, vestuário, atitudes, falas, etc.) as dezenas de mulheres que Hergé desenhou, quase sempre meros figurantes, e verifica "que em dois álbuns - "Tintin no País dos Sovietes" e "Explorando a Lua" - aventuras de temática política e científica, a mulher nem como figurante tem lugar". E de todas, apenas Bianca Castafiore, "o rouxinol milanês" se destaca, surgindo em 7 dos 23 álbuns analisados, mas apenas de forma relevante em "As Jóias de Castafiore", onde, apesar disso, "mais uma vez, Hergé não foi generoso com o universo feminino", pois mesmo "elevando a personagem ao estatuto de protagonista, não logrou fugir ao estereótipo da feminilidade histérica, incorporada numa Castafiore de mente narcísica, obcecada pela imagem e embriagada pelo poder mágico da música, leit-motiv da sua acção".

Esta ausência no feminino, é para José Abrantes, autor de BD e admirador de Hergé "um dado que denuncia alguma antiguidade do seu universo; hoje em dia não seria admissivel uma série não ter personagens femininas com relevância na história". Ausência que o autor, em entrevista a Numa Sadoul ("Tintin et moi - Entretiens avec Hergé", Casterman, 2000) justificou não como "misogenia, mas simplesmente pelo facto de, para mim, as mulheres não terem lugar num mundo como o de Tintin, onde reina uma amizade viril, sem nada de equívoco (…) Se eu introduzisse uma rapariga bonita, que faria ela num mundo onde todos são caricaturas? Gosto demasiado das mulheres para as caricaturar!". Justificação que Ana Bravo aceita porque "a imagem das mulheres como obstáculo ficcional, ainda que reflectindo a visão ideológica de Hergé, fixada nos valores de uma sociedade patriarcal, tem a legitimidade da liberdade de todo o acto criativo".

Apesar do conforto de um ombro feminino, hoje quase octogenário, Tintin tem envelhecido bem, porque "é muito actual, tanto em termos gráficos como no conteúdo da sua mensagem", afirma Abrantes. Opinião corroborada por Ana Bravo que acrescenta que "o herói mítico não envelhece. É intemporal e exerce um fascínio intacto sobre leitores de várias gerações, devido à profundidade da obra e à inteligência da construção das personagens. Hergé foi um desenhador de génio e um grande contador de histórias".

Um autor que se confunde com a sua obra

"Tintin sou eu!", afirmou Hergé por diversas vezes. E fê-lo não só enquanto seu autor, mas também ilustrando a ligação profunda que o unia ao jovem repórter globetrotter e a imensa pressão que a obra exercia sobre o criador, durante muito tempo refém dela, não sendo por acaso que Hergé se desenhou várias vezes como um forçado, guardado à vista por um ameaçador Tintin - mostrando como ele dominava toda a sua vida. Por isso, na já citada entrevista a Numa Sadoul, acrescentou mesmo: "Tintin (e todos os outros) sou eu. São os meus olhos, os meus sentidos, os meus pulmões, as minhas tripas!...".

Nascido a 22 de Maio de 2007 na Bélgica, Hergé revelar-se-ia um homem circunspecto, pouco amigo de falar de si mesmo ou de tomar a ribalta, profundamente apegado às suas criações, preso à herança educacional religiosa e moral e de que demorou a libertar-se. Por isso, o Hergé-homem apagou-se voluntariamente para ceder a ribalta não ao Hergé-autor, mas a Tintin, fazendo dele toda a sua vida, pelo menos entre 1929 - data de nascimento de Tintin - e 1950 - ano da formação dos Estúdios Hergé - entre a criação de novas histórias e a uniformização das mais antigas, agravado pelo seu perfeccionismo que o levava a passar e repassar o traço em busca da solução mais perfeita.

"Tintin no Tibete" (1958) marca um ponto de viragem, por ser uma obra extremamente pessoal, na qual o autor durante o (longo) período criativo, ao mesmo tempo que Tintin busca o seu amigo desaparecido nas montanhas geladas do Tibete, se busca a si mesmo, e, após um longo período de dúvidas e incertezas, no qual chegou a ponderar largar tudo, incluindo Tintin, exorciza fantasmas, refunde convicções, assume a sua relação com Fanny, uma das coloristas do seu estúdio que viria a ser a sua segunda esposa e herdeira, aumenta o espaçamento entre cada nova aventura de Tintin, dando finalmente lugar ao Hergé-homem que ganha um novo gosto pela vida, visitando então muitos dos países onde Tintin o precedera e dando livre curso ao seu interesse pela arte moderna.

E a ligação com a criatura sai reforçada, pertencendo a este período alguns dos álbuns que denotam melhor construção, com "As Jóias de Castafiore" à cabeça. Justificando-se que, por isso, pouco antes de morrer tenha recusado a ideia de que Tintin lhe sobrevivesse pois acreditava "ser o único a poder animá-lo, no sentido de lhe dar uma alma. É uma obra pessoal. Se outros retomassem Tintin, talvez o fizessem melhor, talvez menos bem. Mas uma coisa é certa: fá-lo-iam de outra forma, logo já não seria Tintin!...".

"Tintin é uma obra perfeita"

Título: A invisibilidade do género feminino em Tintin – a conspiração do silêncio

Autor: Ana Bravo

Prefácio: Rui Zink

Ilustração da capa: Miguel Rocha

Formato: 17cm x 24cm

N.º de páginas: 384

Preço: 22 euros

Edição impressa da primeira tese portuguesa sobre Tintin, apresenta como curiosidade o facto de não incluir qualquer imagem da obra analisada, devido às muitas condições (entre as quais a aprovação prévio do texto) que a Fundação Moulinsart, detentora dos direitos de Tintin, pretendeu impor, razão pela qual a própria capa, embora remetendo para as criações de Hergé, não as mostra explicitamente.

Jornal de Notícias - Que relação tem com Tintin?

Ana Bravo - Faço parte de uma geração (anos 60) que praticamente aprendeu a ler e a gostar de BD, graças ao Tintin. Convivi e vivi com ele as suas intrépidas aventuras, descobrindo o Mundo e sonhando com a sua heroicidade, sempre do lado dos bons e dos oprimidos. Os seus álbuns foram uma fonte de educação salutar e, para além do prazer de infância, foi uma contínua aprendizagem.

Mais tarde, ao relê-las, ciclicamente fui percepcionando algumas questões que se me afiguravam dúbias ou mal resolvidas, como a ausência de antecedentes familiares num herói assexuado e um tanto insípido e a falta de companheiras que quase sempre povoaram o universo de outros heróis e aventuras da BD.

JN - Porquê esta pesquisa sobre o papel das mulheres em Tintin?

AB - Trata-se apenas de uma interrogação ou reflexão sobre questões de género, temática que tem resistido a todos os estudos sobre o autor e a sua obra. O interesse em estudar o universo feminino da BD, prende-se com o facto de as histórias ficcionais configurarem construções culturais de identidade de género consumidas, durante décadas, pela cultura ocidental, com repercussões para as visões futuras em termos dos valores que promovem e das formas de identificação que oferecem.

JN - A presença de mais mulheres teria enriquecido Tintin?

AB - A problemática não reside na quantidade de mulheres na BD, mas na qualidade dos papéis que lhes são atribuídos. Houve autores que as excluíram do seu universo ficcional e outros que as elevaram categoria de heroínas. Há uma evolução no tempo da imagem da mulher na BD, a que Hergé foi alheio, mesmo ao criar a sua última personagem feminina, Peggy Alcazar, em 76. Mais mulheres em Tintin não resultaria numa ficção de maior qualidade, porque Tintin é uma obra perfeita do ponto de vista formal, em que nada pode ser alterado!

JN - De que forma a sua investigação alterou a sua visão de Tintin?

AB - As Aventuras de Tintin constituem um legado documental e fonte privilegiada para recriar a História e para o estudo do género e, neste caso, como o género condicionou a BD.

Este livro é o resultado duma nova perspectivação sobre a obra de Hergé que me permitiu uma melhor compreensão dela, corroborando princípios teóricos de análise, não passíveis de alterar a minha visão de Tintin.

Pedro Cleto, Jornal de Notícias, 22/05/2007

Em conjunto com outros textos sobre as comemorações do centenário.



Ana Bravo

Por que é que não há mulheres no mundo de Tintin

"Um círculo para a cara, dois pontos para os olhos, um traço para a boca, um 'U' faz o nariz e já está!". Assim definiu Hergé, certa vez, Tintin. A esta simplicidade gráfica - que o transformou num dos símbolos mais fortes do século XX -, assente num traço límpido, servido por cores planas e luminosas, para o qual foi necessário inventar a designação "linha clara", podemos acrescentar o seu carácter decidido e aventuroso, a defesa de valores como a justiça, a amizade e o combate eterno pelos mais fracos.

O universo Tintin - de longe a mais célebre criação do belga, também autor de Quim e Filipe, e do trio Joana, João e o Macaco Simão - é feito de 23 álbuns e neles reside o essencial de Hergé. Mas, quando hoje passa um século sobre o nascimento do criador belga, há um pormenor de que muitos nunca se terão apercebido são muito poucas as mulheres na vida de Tintin e, quando as há, surgem sempre reduzidas, em todos os aspectos, a uma condição menor.

Um ano a ver BD à lupa

Foi esta ausência feminina, nunca investigada nas seis teses francesas existentes sobre o herói de Hergé, que serviu de base à primeira tese portuguesa sobre Tintin, agora editada em livro "A invisibilidade do género feminino em Tintin - A conspiração do silêncio". O volume, que já estará disponível nas Feiras do Livro de Lisboa e Porto que arrancam esta semana, envolveu num trabalho estóico a sua autora, Ana Bravo, que esquadrinhou milhares de vinhetas.

Após a análise, a conclusão foi a esperada "As mulheres em Tintin estão conformadas a papéis secundarizantes na acção, com ocupações tradicionais e formatadas em traços de caracteres comuns de uma sensibilidade e fragilidade feminina aliadas à arte de atrair problemas".

Mulher estereotipada

Depois de uma dar perspectiva alargada da evolução da BD, Ana Bravo analisa a relação de Hergé com as mulheres - as de papel e as de carne e osso -, de onde se percebe que "se as mulheres lograram adquirir algum protagonismo no seu círculo profissional, constata-se uma intencionalidade de ordem religiosa, social, cultural, ideológica e de público-alvo na invisibilidade das mulheres no seu universo ficcional, assim como uma inusitada incorporação de género em personagens modeladas de animalidade", concretamente da cadela Milu.

Como curiosidade, regista "a tendência para discriminar salarialmente as colaboradoras em 1977, quando o seu secretário se afastou, vítima de uma trombose, e foi substituído pela mulher, Hergé convencionou-lhe um salário 2/3 inferior ao do marido".

Ana Bravo analisou ao pormenor as dezenas de mulheres que Hergé desenhou (n.º de aparições, vestuário, atitudes, falas), quase sempre meros figurantes, e verifica que em dois álbuns ("Tintin no País dos Sovietes" e "Explorando a Lua"), aventuras de temática política e científica, a mulher não entra de todo. E de todas, só Bianca Castafiore, "o rouxinol milanês", se destaca, surgindo em sete dos 23 álbuns, mas apenas como protagonista em "As Jóias de Castafiore", onde, apesar disso, "mais uma vez, Hergé não foi generoso com o universo feminino", pois mesmo "elevando a personagem ao estatuto de protagonista, não logrou fugir ao estereótipo da feminilidade histérica, incorporada numa Castafiore narcísica, obcecada pela imagem e embriagada pelo poder mágico da música, 'leit-motiv' da sua acção".

No reino da amizade viril

Esta ausência no feminino, é para José Abrantes, autor de BD e admirador de Hergé "um dado que denuncia alguma antiguidade do seu universo; hoje em dia não seria admissível uma série não ter personagens femininas com relevância na história".

A ausência é justificada pelo autor em entrevista a Numa Sadoul ("Tintin et moi - Entretiens avec Hergé", Casterman, 2000) "Não é misogenia, mas simplesmente pelo facto de, para mim, as mulheres não terem lugar num mundo como o de Tintin, onde reina uma amizade viril, sem nada de equívoco (?) Se eu introduzisse uma rapariga bonita, que faria ela num mundo onde todos são caricaturas? Gosto demasiado das mulheres para as caricaturar!".

Ana Bravo aceita a justificação "A imagem das mulheres como obstáculo ficcional, ainda que reflectindo a visão ideológica de Hergé, fixada nos valores de uma sociedade patriarcal, tem a legitimidade da liberdade de todo o acto criativo".

Apesar do conforto de um ombro feminino, hoje quase octogenário, Tintin tem envelhecido bem, porque "é muito actual, tanto em termos gráficos como no conteúdo da sua mensagem", afirma Abrantes. Opinião corroborada por Ana Bravo que acrescenta que "o herói mítico não envelhece. É intemporal e exerce um fascínio intacto sobre leitores de várias gerações, devido à profundidade da obra e à inteligência da construção das personagens. Hergé foi um desenhador de génio e um grande contador de histórias".

F. Cleto e Pina, JN, 22/05/2007

Excerto de um artigo intitulado "Por que é que não há mulheres no mundo de Tintin", publicado no Jornal de Notícias:

(...) há um pormenor de que muitos nunca se terão apercebido são muito poucas as mulheres na vida de Tintin e, quando as há, surgem sempre reduzidas, em todos os aspectos, a uma condição menor.

Um ano a ver BD à lupa

Foi esta ausência feminina, nunca investigada nas seis teses francesas existentes sobre o herói de Hergé, que serviu de base à primeira tese portuguesa sobre Tintin, agora editada em livro "A invisibilidade do género feminino em Tintin - A conspiração do silêncio". O volume, que já estará disponível nas Feiras do Livro de Lisboa e Porto que arrancam esta semana, envolveu num trabalho estóico a sua autora, Ana Bravo, que esquadrinhou milhares de vinhetas.

Após a análise, a conclusão foi a esperada "As mulheres em Tintin estão conformadas a papéis secundarizantes na acção, com ocupações tradicionais e formatadas em traços de caracteres comuns de uma sensibilidade e fragilidade feminina aliadas à arte de atrair problemas".

Mulher estereotipada

Depois de uma dar perspectiva alargada da evolução da BD, Ana Bravo analisa a relação de Hergé com as mulheres - as de papel e as de carne e osso -, de onde se percebe que "se as mulheres lograram adquirir algum protagonismo no seu círculo profissional, constata-se uma intencionalidade de ordem religiosa, social, cultural, ideológica e de público-alvo na invisibilidade das mulheres no seu universo ficcional, assim como uma inusitada incorporação de género em personagens modeladas de animalidade", concretamente da cadela Milu.

Como curiosidade, regista "a tendência para discriminar salarialmente as colaboradoras em 1977, quando o seu secretário se afastou, vítima de uma trombose, e foi substituído pela mulher, Hergé convencionou-lhe um salário 2/3 inferior ao do marido".

Ana Bravo analisou ao pormenor as dezenas de mulheres que Hergé desenhou (n.º de aparições, vestuário, atitudes, falas), quase sempre meros figurantes, e verifica que em dois álbuns ("Tintin no País dos Sovietes" e "Explorando a Lua"), aventuras de temática política e científica, a mulher não entra de todo. E de todas, só Bianca Castafiore, "o rouxinol milanês", se destaca, surgindo em sete dos 23 álbuns, mas apenas como protagonista em "As Jóias de Castafiore", onde, apesar disso, "mais uma vez, Hergé não foi generoso com o universo feminino", pois mesmo "elevando a personagem ao estatuto de protagonista, não logrou fugir ao estereótipo da feminilidade histérica, incorporada numa Castafiore narcísica, obcecada pela imagem e embriagada pelo poder mágico da música, 'leit-motiv' da sua acção".

As mulheres na BD, ora aqui está um vasto e interessantissimo tema, no qual contudo não me aventurarei por não conhecer suficientemente a BD. Mas deixo o convite às leitoras e aos leitores deste blog para se debruçarem sobre este assunto e nos enviarem as vossas reflexões.

Miss Piggy, Publicada por Colectivo Feminista, em 22/05/2007


segunda-feira, 21 de maio de 2007

Tintin na TSF

tsf.jpgComo aqui já foi referido, a TSF vai assinalar o centenario do nascimento de Hergé com uma peça biografica para os noticiarios que irá passar amanhã nas noticias das 7h, 8h, 9h e 10h (alternadamente) e também uma peça que divulga o Núcleo Portugues dos Amigos de Hergé, que irá passar em horário a definir também entre as 7h e as 10h. Para Sábado, no magazine "A semana passada", entre as 12h e as 13h, irá passar uma peça mais composta com a conversa com os Amis de Hergé Portugueses, com cerca de 6 minutos.

domingo, 20 de maio de 2007

Marcelo Rebelo de Sousa e Tintin

Hoje na RTP, Marcelo Rebelo de Sousa dedicou parte do seu programa «As Escolhas de Marcelo» ao centenário deHergé. Com a presença do foguetão lunar, Marcelo falou de Hergé, Adolfo Simões Muller, das edições de «O Papagaio», mostrou uma biografia do criador de Tintin e falou das suas inclinações políticas. Apesar de ter caído em pequenos erros («Tim Tim em Angola» não foi criado por Hergé propositadamente para Portugal, tendo sido uma reconversão à realidade portuguesa feita por Simões Muller), foi importante que Marcelo Rebelo de Sousa tenha recordado a importância de Hergé na história da cultura mundial.

sábado, 19 de maio de 2007

Tintin em Portugal - Editorial Verbo e o Festival de BD da Amadora fazem exposição para assinalar o centenário de Hergé

A Editorial Verbo e o Festival de Banda Desenhada da Amadora (FIBDA) querem assinalar o centenário do nascimento do criador de Tintim com uma exposição em parceria com a Fundação Hergé.

fibda0.jpg

Fonte da organização do Festival de BD da Amadora disse à agência Lusa que a edição deste ano do FIBDA recordará o trabalho artístico de Hergé e as aventuras de Tintim, numa exposição que contará com o apoio da Editorial Verbo.
A Verbo, que edita a obra de Hergé desde 1988, está em negociações com a Fundação Hergé para trazer a Portugal a exposição.
Para 2009 a chancela planeia apresentar em Portugal a exposição retrospectiva que o Centro Georges Pompidou, em Paris, acolheu entre Dezembro e Fevereiro.
No âmbito das comemorações do centenário do nascimento de Hergé, que se assinala na terça-feira, a editora portuguesa vai ainda lançar a edição fac-similada do álbum «O lótus azul», um livro jogo do Tintim e um calendário-agenda para 2009.
De acordo com dados estatísticos da Verbo, as séries de Tintim, Quim e Filipe e Joana, João e o Macaco Simão, já venderam em Portugal cerca de um milhão de exemplares.
O Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora, que este ano atinge a maioridade, com a 18/a edição, decorrerá de 19 de Outubro a 04 de Novembro.

in Portugal Diário

Tintin na rádio

tsf.jpgNo próximo dia 26 de Maio, entre as 12 e as 13 horas, será transmitido pela TSF no magazine de informação «A Semana Passada», uma reportagem dedicada ao centenário de Hergé. Este programa radiofónico terá a colaboração dos Amis de Hergé portugueses João Paiva Boléo, Francisco Sousa e António Monteiro. A não perder!

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Arqueologias

Na última quadra natalícia dos anos 90 (enquanto esperávamos as primeiras novidades da década dos zeros) muito dinheiro foi gasto, como é hábito, em prendas que, mais do que reflectirem o real gosto dos consumidores, tinham uma qualidade simbólica. Só assim se justifica que um dos livros mais vendidos tenha sido “Tintim no país dos Sovietes”, o álbum com o qual Hergé iniciou a fabulosa carreira do seu repórter de poupa que nunca escreveu uma linha. Entendamo-nos. “Tintim no país dos Sovietes” é uma obra importante, a edição pela Verbo é um acontecimento a realçar, e o óbvio sucesso comercial do álbum só pode ser aplaudido. Mas é preciso não confundir esta obra inicial de Hergé com o seu trabalho posterior, pelo qual se tornou conhecido. Na verdade, “Tintim no país dos Sovietes” é uma mera curiosidade arqueológica que, tomada isoladamente, não ultrapassa uma confrangedora mediocridade. E ninguém estava mais consciente disto mesmo do que o próprio Hergé. O autor, não só nunca coloriu e refez esta obra (como aconteceu com as outras aventuras iniciais de “Tintim”), como durante muito tempo nem sequer permitiu a sua republicação. Aliás, o facto de a obra só ter estado disponível a partir de 1973, e depois, em 1981, numa excelente edição fac-similada, terá sem dúvida contribuído para a dimensão quase mítica que “Tintim no país dos Sovietes” alcançou.
Mas, apesar de tudo, é bom não esquecer que foi esta obra que abriu as portas a todas as restantes. E que na sua génese esteve, curiosamente, uma tentativa de usar a banda desenhada como um veículo de propaganda política, um modo eficaz de levar uma mensagem ao público mais jovem. No final dos anos 20 Hergé trabalhava no jornal conservador belga “XXème Siécle”. E “Tintim no país dos Sovietes” foi criado em 1929 para “Le Petit Vingtième, o suplemento infantil do jornal, por sugestão/encomenda do seu director, o abade Wallez. O objectivo era sobremaneira óbvio: denunciar a Revolução Bolchevista de um modo claro e directo, mas ao, mesmo tempo, apelativo.
Escrito sem um argumento prévio propriamente dito, “Tintim no país dos Sovietes” surge assim como um conjunto algo desgarrado de “gags” e aventuras onde vibra um anticomunismo primário. E que não conta sequer com o rigor documental que o autor revelaria posteriormente. Ou seja: falta quase tudo daquilo que caracterizaria (até à obsessão, em muitos casos) a elaborada construção de cada álbum de “Tintim”. É verdade que Hergé vai começar a tactear aqui a linguagem da BD, de que se tornaria um dos maiores expoentes. É também certo que a personagem evolui ao longo da obra. Mas, no seu todo, este é um álbum, não só fossilizado, como narrativa e artisticamente medíocre. O seu valor, certo e inquestionável, é arqueológico. Ler “Tintim no país dos Sovietes” como qualquer outro álbum de “Tintim” é pois, não só um erro, como injusto.
Após o primarismo (político e narrativo) desta primeira obra, Hergé ainda necessitaria de algum tempo para tornar mais equilibradas as suas visões do mundo. Porque a “Tintim no país dos Sovietes” se seguiriam o colonialismo paternalista de “Tintim no Congo”, ou o anti-americanismo de “Tintim na América”. E também não é verdade que “Tintim” se tenha deixado de comentários político-sociais depois disso, como a leitura atenta de qualquer das suas aventuras poderá confirmar. Mas, mais importante ainda, ao longo da sua brilhante carreira “Tintim” conseguiria o feito raro de cruzar uma mensagem humanista com o gosto pela descoberta e pela aventura, sem esquecer o humor. Criando uma das referências fundamentais do século. Por isso mesmo o seu início titubeante é apenas isso mesmo. Sendo uma das edições de banda desenhada mais importantes de 1999, será bom não nos esquecermos de contextualizar “Tintim no país dos Sovietes”. Até para não lhe pedirmos mais do que aquilo que pode dar.

“Tintim no país dos Sovietes”. Texto e desenhos de Hergé. Verbo. 140 pp. 2100$00.
 © 2000 Jornal de Letras/João Ramalho Santos

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Tintin na Lousã


De 3 a 31 de Maio, a Biblioteca Municipal da Lousã é palco de uma exposição dedicada ao Tintim e ao seu criador Hergé. "Tintim na Lousã - um convite de Oliveira da Figueira nos 100 anos do nascimento de Hergé" é o título desta mostra que, para além de livros de banda desenhada do Tintim e de outras personagens criadas pelo belga Hergé, apresenta objectos ligados ao célebre repórter. As peças apresentadas pertencem a Carlos Sêco, um tintinófilo nascido em França, mas já radicado em Portugal desde 1983. Sendo Oliveira da Figueira a única personagem portuguesa presente nalgumas aventuras do Tintim, Carlos Sêco lembrou-se de ser ele a convidar todos os apreciadores do mais conhecido herói da banda desenhada europeia a virem à Lousã. O cartaz que se apresenta em anexo é da autoria de Carlos Sêco. Na exposição estão também patentes um cartoon de Carlos Sêco, em que o professor Girassol expulsa Plutão do sistema solar e um retrato feito a tinta da China, também assinado pelo tintinófilo da Lousã. A exposição, organizada pela Cooperativa Trevim e que conta com o apoio da Câmara Municipal da Lousã, pode ser visitada de 2.ª a 6.ª-feira, das 9 às 17:30 (lamentavelmente não está aberta ao público ao fim de semana).