Um escritor português em Moulinsart
«Eu cheguei ao universo de Hergé antes de nascer. Vou tentar explicar este contrassenso. Comecei a ler cedo, aprendendo, com a ajuda de familiares, a juntar letras e sílabas. Em tempos sem televisão, iniciei-me na leitura pelas histórias aos quadradinhos. Um amigo do meu avô materno, um pintor de domingo com a paixão pelas bandas desenhadas, mantinha infindáveis coleções de revistas juvenis, que eu ia recebendo de empréstimo. Entre estas, vários números de "O Papagaio", que, em 1939, publicou "Tim-Tim em Angola", adaptação de "Tintin au Congo". Quando, pelos seis anos de idade, soletrando laboriosamente uma vintena de números da revista, consegui decifrar a aventura, pareceu-me evidente que Tintin era português. “Vou falar-vos da nossa querida Pátria, Portugal”, dizia ele a uma classe de jovens negros.
A aventura portuguesa do repórter Tintin começara cedo, facilitada pelo conhecimento pessoal do Padre Abel Varzim, que estudou em Lovaina, com o Padre Norbert Wallez, o diretor de Georges Remi, o futuro Hergé, em "Le Vingtième Siècle", quotidiano católico e radicalmente tradicionalista. Quando o desenhador se emancipa de Wallez e funda o seu próprio ateliê, trata diretamente com as revistas infantis e juvenis portuguesas. A partir dos meus nove ou dez anos, tornei-me leitor fiel de uma delas, o "Cavaleiro Andante" (saía aos sábados e era sempre uma descoberta), e achei-me membro honorário da confraria tácita dos companheiros de Tintin.
O universo eurocêntrico, colonialista e casto do repórter e dos seus companheiros inseria-se, como uma luva de textos e imagens, na cultura do Estado Novo, cujos serviços de censura à imprensa juvenil impunham a eliminação das cenas de violência excessiva e de lascívia e mandavam aportuguesar os nomes dos personagens. O nacionalismo do salazarismo era, bem vistas as coisas, comum aos valores da Belgique à papa, acerrimamente defendida por Wallez, personificada na ambiguidade política de Léopold III e colorida pelo talento de Hergé.
Às portas da adolescência, eu já tinha lido todas a aventuras de Tintin (exceto um álbum indisponível: "Tintin au Pays des Soviets") e, em paralelo, as de Blake e Mortimer, personagens criados por E. P. Jacobs, outro belga deslumbrante e inesquecível, companheiro de ofício e de oficina de Georges Remi.
Se ambas as sagas estimulavam os meus devaneios de evasão, devo ao repórter de "Le Vingtième Siècle" o apreço pelo jornalismo, que foi uma das minhas profissões, e situo-o, por essa via, na proto-história da minha vocação de escritor.
Só li "Tintin au Pays des Soviets" no primeiro volume de "L’Oeuvre Intégrale d’Hergé", publicada pela Casterman a partir de 1981.
Já então residia em Bruxelas. Vivi 26 anos na capital da Bélgica, da Flandres, da Europa e, às vezes, do mundo, e contam-se pelos dedos das mãos os sábados em que não percorri a feira da ladra, o marché aux puces do Jeu de Balle, em busca de tesouros da qualidade de La Licorne. Depressa me considerei um bruxellois de adoção, qualidade que conservo.
Nesses anos antiquíssimos sem internet, ouvia atentamente a rádio e a televisão locais sempre que Portugal era notícia. Em 1986, no Journal télévisé das 19h30 da RTBF, a jornalista Françoise Van De Moortel anunciou a vitória de Mário Soares na eleição presidencial portuguesa e recordou, a propósito, a ditadura deposta em 1974, referindo-se ao seu chefe como le général Salazar, numa clara associação com Alcazar, o general sul-americano dos álbuns de Tintin. Portugal era ainda confundido com uma republiqueta sul-americana. No entanto, esse país singular regressara ao retângulo europeu e aderira, no ano anterior, às Comunidades Europeias.
Funcionário europeu, eu vivia na rue des Atrébates, a dois passos da casa onde Léopold Trepper instalou a sociedade comercial que serviu de cobertura à maior rede de espionagem da Segunda Guerra Mundial. Trepper, herói dúbio, folhetinesco, mereceria, para que fosse compreensível, participar numa aventura de Tintin. Li a biografia do espião aplicando os ensinamentos de Dupond e Dupont. Inconclusiva, faltava-lhe o traço de Hergé.
A minha filha Catarina tinha uma fox terrier, Cocas de nome próprio. Todos em casa nos dirigíamos em português ou francês à astuta Cocas, e ela, digna parente de Milou, dava-nos, em qualquer das línguas, respostas mais sensatas do que as nossas perguntas. O meu filho Lourenço nasceu em 1989 e, quando a irmã partiu para Lisboa, herdou a Cocas.
Nos anos 90, a Europa percorria caminhos vertiginosos. O Lourenço assistia aos noticiários e perguntava. Eu socorria-me da banda desenhada para o introduzir no mundo e no tempo que os deuses nos tinham destinado. Tintin era o herói da família, o Lourenço era umas vezes Tintin, outras Tournesol (em Portugal, o professor Girassol). Quando me encolerizava, eu era o capitão Haddock. A Castafiore era uma vizinha que gritava destemperadamente. Os papéis antipáticos, distribuíamo-los pelos vilões que íamos conhecendo, no quotidiano, na história e na política contemporânea. Aos fins de semana, fazíamos equitação num picadeiro para os lados de Dilbeek.
Uma vez, enganámo-nos na estrada e passámos por um palacete em que identificámos Moulinsart. No regresso do picadeiro, não resistimos à tentação de aproveitar o portão aberto para entrar na propriedade. Fomos parados por um cavalheiro empertigado, seguramente Nestor. Cocas, que nos acompanhava nas atividades equestres, saltou do carro e ladrou ao importuno. Duas silhuetas apareceram na escadaria: um jovem e um homem mais velho. Desculpei-me com um aceno e fiz marcha-atrás.
– É o Tintin, pai! – exclamou o Lourenço, dividido entre o júbilo e a apreensão. – E o capitão Haddock! Eles existem mesmo, pai! Eles existem!
Eu confirmei:
– Claro que existem. Mas não os podemos incomodar. Um dia hão de nos convidar a entrar.
– Um dia... – suspirou o Lourenço. – Um dia...»
Amadeu Lopes Sabino, 20/10/2021
No âmbito da primeira exposição em Portugal (Fundação Calouste Gulbenkian) dedicada ao autor de Tintin, organizada em colaboração com o Museu Hergé de Louvain-la-Neuve, foi editado entre nós um catálogo com o encarte «Hergé em Portugal» com várias colaborações, entre elas a de Amadeu Lopes Sabino.