Alcazar e Tapioca
O Presidente das Honduras, Mel Zelaya, foi deposto e despachado para a Costa Rica pelo exército, com alívio do Parlamento e do Supremo Tribunal que tinham declarado inconstitucional a consulta popular anunciada pelo Presidente que queria candidatar-se a segundo mandato. Lembrei-me do "Mistério da Orelha Quebrada" resolvido por Tintim na minha infância (graças à imortal tirada do papagaio: "Rodrigo Tortilla, mataste-me!"), que conta peripécias da luta pelo poder na República de S. Teodoro entre o general Alcazar e o general Tapioca. Em criança, essa caricatura pareceu-me convincente. Depois soube que debaixo da farsa havia tragédia e estratagemas do xadrez político mas tudo quanto aprendi sobre a América Latina desde Tintim - de revolucionários, teólogos da libertação, historiadores, políticos, antropólogos, latifundiários, diplomatas - não apagou inteiramente a marca deixada por Alcazar e Tapioca.
O golpe das Honduras, depois de longo intervalo pacífico na região, retoma costume antigo mas com uma diferença radical nas reacções que provoca. Aos 55 anos e já Presidente, Zelaya, rancheiro conservador rico, virou populista de esquerda e fã de Hugo Chávez. Para cativar o povo tomou medidas ruinosas e tornou-se apologista da democracia directa.
Com popularidade caída abaixo de 30% quis ser presidente perpétuo. Obteve com muita coacção alguns milhares de assinaturas a pedir "consulta popular" sobre a limitação do seu mandato, fez imprimir boletins para ela em Caracas e encarregou o chefe de Estado-Maior de garantir a ordem durante a operação. Legalista e apoiado pelas outras instituições políticas do país, o CMGFA recusou o encargo e demitiu-se. No domingo, a tropa foi pôr Zelaya na Costa Rica.
Chávez acusou logo a CIA e os Estados Unidos mas o tiro saiu-lhe pela culatra porque Obama condenou o golpe, dando unanimidade à decisão tomada pela Organização dos Estados Americanos, a qual intimou Tegucigalpa a devolver já o poder a Zelaya ou ser expulsa. Este passou pela Assembleia Geral da ONU onde o aclamaram e propôs-se voltar à pátria, acompanhado por alguns Presidentes latino-americanos, mas nas Honduras o Presidente interino disse que o mandaria prender à chegada. A OEA deu mais tempo a Tegucigalpa para obedecer ao ultimato e multiplica-se em contactos para encontrar saída airosa do imbróglio.
Foi efeito do factor Obama. Quem mandou a tropa depor o Presidente demagogo e populista de esquerda que queria mudar a Constituição ilegalmente tinha contado com o apoio dos Estados Unidos ou pelo menos com a sua anuência. Porém o tiro, como o de Chávez, saiu-lhe pela culatra. Washington não só condenou o golpe como suspendeu a ajuda militar (não aplicou sanções porque acha que já há pobreza de mais nas Honduras).
Perdidos há muito Alcazar e Tapioca, os políticos da zona deixam agora de saber ao certo com que contar dos Estados Unidos. Se uns ficarem sem papão e outros sem padrinho vão ter de deitar contas novas à vida.
José Cutileiro
Estudos Regionais - América Latina
https://arquivo.pt/wayback/20100606115948/http://www.ipri.pt/publicacoes/working_paper/working_paper.php?idp=373
antigo embaixador, Coluna de opinião "Mundo dos Outros" no Jornal Expresso,
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