sábado, 30 de novembro de 2024

Um livro, uma vida

O Tintim "poluído" de Sérgio Godinho

[Convidado por Rui Reininho, o cantor lembrou o herói de Hergé no Porto 2001]

A escolha foi aleatória e imperfeita, porque é impossível a qualquer leitor compulsivo escolher o livro que mais revolucionou uma adolescência. Sérgio Godinho hesitou entre "O Crime do Padre Amaro", a estreia literária de Eça de Queirós, que foi também a sua primeira incursão queirosiana, e o romance-viagem de uma geração, "Pela Estrada Fora", de Jack Kerouac, que o amigo Manuel António Pina lhe recomendou numa cumplicidade de liceu, e o empurrou para o estrangeiro. Mas a participação do músico portuense no ciclo "Um Livro, Uma Vida, Um Objecto ou Um Gesto - Conversas e Confissões com Rui Reininho", ao final da tarde de anteontem na Biblioteca Municipal de Almeida Garrett, acabou por fazer-se sob o signo de Hergé, e a pretexto de "Tintim no Templo do Sol". A páginas tantas, a data aproximava-se e já não havia volta a dar-lhe: "Já dizia a Alice que um livro sem imagens não vale nada. E depois o Rui Reininho fez um 'putsch' e eu fui confrontado com o facto de ter dito que o Tintim poderia ser uma boa escolha", explicou Sérgio Godinho a uma plateia recheada de gente com idades compreendidas entre os 7 e os 77.

Durante pouco mais de uma hora, dissecaram-se então as idiossincrasias de Hergé, a ambiguidade de Tintim, a surdez do Professor Tournesol, o fraquinho pelo álcool e a exuberância verbal do Capitão Haddock. Mas a verdadeira vedeta da tarde foi Milou, uma sósia do inseparável companheiro de Tintim, que não parou de correr pelo palco e de distrair o público, para desespero de Sérgio Godinho, que confessou ter "medo de cães" e chegou a sugerir "uma pistola ou carne envenenada" para acabar de vez com a invasão. "A seguir vem o Capitão Haddock... E este magnífico sarau vai acabar com a Castafiori a interpretar aquela ária do Gounod, o 'Ah, Je Ris'", ironizou.

Embora Tintim fosse o pretexto da conversa, a primeira personagem a receber as atenções do convidado de Rui Reininho foi mesmo o irascível Capitão Haddock, a propósito das garrafas de "whisky" e de vinho branco que repousavam em cima da mesa, convenientemente cobertas por um disfarce negro, para não ferir susceptibilidades comerciais. "Este estaminé faz lembrar a paixão pela botelha do Haddock", observou Sérgio Godinho, que gastou, de resto, o seu direito de antena a defender a tese de que Haddock e Tournesol são desdobramentos humanizantes de um Tintim insuportavelmente imaculado: Haddock pelo lado excessivo, colérico e voluntarista, Tournesol pelo lado falhado que tem na surdez um poderoso alibi. Personagens que, insistiu o músico, "Hergé inventou para poluir Tintim" e o resgatar da sua ambiguidade. 

Quanto ao herói propriamente dito, a conversa foi inconclusiva. Até porque Sérgio Godinho se remeteu à sua condição de "curioso": "Não valia a pena vir para aqui com uma comunicação escrita, para depois o Rui contestar a tese, e eu bloquear a resposta e pedir a ajuda do público ou os 50/50". "O Tintim é de uma ambiguidade a todos os níveis. Não tem família, só uma cara redonda com aqueles dois olhos quase nada. O próprio nome significa 'nada de nada'. No fundo, é um espelho de nada, uma página branca onde se vão escrevendo as histórias", sustentou. Quase como o Mickey, sugeriu Rui Reininho: um repórter assexuado e sem família, levemente misógino. "Sim, mas o Mickey tem namorada, e o Tintim não é erotizado", corrigiu o convidado.

Georges Remi, ou Hergé, o homem por trás de Tintin, também não foi poupado à língua viperina dos dois interlocutores. Sérgio Godinho entreteve-se a lembrar as ressonâncias genealógicas entre a vida do autor e as aventuras de Tintim - o pai de Hergé tinha um irmão gémeo, quais Dupond e Dupont, e foi criado por uma condessa de traços castafiorianos -, enquanto Rui Reininho lembrou a sua faceta de coleccionador de arte, aproveitando para comentar que essa queda "lhe deve ter feito bem, porque ele devia ser uma criatura reaccionaríssima".

A sessão terminou não com uma prestação operática da Castafiori, como chegou a insinuar-se, mas com uma catártica demonstração de insultos haddockianos protagonizada pelos dois interlocutores.

Na despedida, os dois músicos fizeram um brinde à plateia e Sérgio Godinho voltou a citar Haddock: "Ah, já me sinto mais instruído".


Sérgio Godinho evoca Tintim herói da sua adolescência

A espaços, entrava em cena a cadela Milou atrás do biscoito que alguém lançava dos bastidores. Tintim, o seu dono, emergia nas palavras de Sérgio Godinho, que o escolheu como um dos heróis da sua adolescência. Foi mais uma sessão de "Um livro, uma vida, um objecto ou um gesto", iniciativa da Porto 2001.

Sérgio Godinho, não sendo "especialista" em Hergé, demonstrou ser um bom conhecedor das aventuras de Tintim, "um adolescente com curiosidade pelo mundo". O cantor chegou mesmo a apresentar a obscura árvore genealógica de Hergé. A sua avó, empregada de uma condessa, "engravidou não se sabe de quem". Nasceram gémeos; um deles foi o pai de Hergé.

Acompanhado pelo comissário da iniciativa, Rui Reininho - que amiúde cortava a palavra ao convidado -, Godinho avançou uma teoria sobre as personagens criadas por Hergé: Tintim, Capitão Haddock e Professor Tournesol, afinal, são faces da mesma pessoa, próximas do criador.

O cantor desvalorizou as referências anti-semitas e racistas nos primeiros álbuns de Tintim. Nos trabalhos seguintes, Hergé, que foi tomando "consciência política", acabou por dar à sua personagem um papel positivo.

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