O QUE é mais intrigante acerca de Georges Rémi, universalmente conhecido por Hergé, não é tanto a pessoa, mas o «fenómeno» à volta da sua pessoa, sobretudo a sua persistência e recorrência. Embora em momentos concretos determinadas biografias possam ser foco de atenção, chegando mesmo a ser «moda», as coisas acabam por se definir, esclarecer, «arquivar». Com Hergé, não.
Desde a criação de Tintin, cíclica e repetidamente vêm à baila, como um fantasma, as mesmas questões, as mesmas estereotipadas interrogações e/ou acusações. Qual a sua ideologia, se foi ou não fascista, racista, anticomunista, colonialista, etc. A mais recente manifestação disso é a anunciada discussão sobre o assunto na Assembleia Nacional francesa, promovida pelo «Club des parlementaires tintinophiles».
E, no entanto, se, com base na infindável bibliografia sobre Hergé, incluindo declarações do próprio (e sem esquecer a obra), quisermos de facto saber qual a sua ideologia, qual o seu pensamento político, e formos honestos, só há uma posição possível: não sabemos.
Podemos saber, com alguma aproximação, quais os seus princípios, valores, os meios em que se inseria preferencialmente, alguns dos amigos, o seu posicionamento sobre acontecimentos históricos graves que marcaram o nosso século. Para lá disso, são juízos de valor sobre determinadas atitudes.
Como explicar então esta recorrência praticamente única, esta permanente reabertura do «processo», este movimento pendular entre a admiração pela obra, a simpatia pelas personagens e a condenação ou pelo menos suspeição sobre o homem? É tão difícil responder como penetrar no íntimo do próprio Hergé. E o «mistério» talvez comece por passar por aí. Hergé foi de facto um homem discreto. Todos os testemunhos apontam para a fina inteligência, o «charme», o trato delicado. Mas também para a sua reserva que era mais do que timidez. A sua firme ambição. A consciência do seu valor, da obra que queria construir, da carreira que queria realizar e em que se queria realizar. E ainda da sua solidão de criador, das suas dúvidas, angústias e depressões. E da sua sinceridade mistificante, se tal é possível. Uma simplicidade em que de algum modo acreditaria, tendo por detrás uma complexidade que não queria revelar. Que acharia que tinha o direito de não revelar, fossem as suas ideias, fossem os mecanismos e meandros do seu processo criativo. E assim como a fala foi dada ao homem para esconder o seu pensamento, Hergé também por mais de uma vez baralhou as pistas.
A riqueza de valores humanos que Tintin simboliza e a natural identificação que provocou em sucessivas gerações talvez tenham, mais do que criado a convicção ou a expectativa, exigido algo a que o seu «pai» correspondesse integralmente, que o criador fosse tão perfeito como a criatura. Como aceitar então que também ele é humano, na circunstância e nas contradições?
Mas talvez seja o «tribunal da esquerda», no fundo, que não deixe arquivar o processo, não perdoando a Hergé os pecados originais e fundadores das duas primeiras aventuras de Tintin (Sovietes, 1929/30, Congo, 1930/31) e o facto de não ser de esquerda. Uma análise global e uma atenção despreconcebida à evolução verificada levarão a conclusões algo diversas, sem excluir episódios, quer da vida quer da obra, menos edificantes.
Os vectores fundamentais que orientaram a sua vida talvez se possam condensar em três: escutismo, amizade e construção de uma obra pessoal e intransmissível (mesmo que com a colaboração «anónima» de outros, de E.P. Jacobs ao Estúdio Hergé). A acrescentar mais algum, seria um prematuro, e progressivamente acentuado, céptico desencanto, e consciência do irrisório (de que Les Bijoux é a quintessência), e uma pouco falada aproximação à busca da serenidade própria da filosofia oriental, patente no Tintin au Tibet.
Hergé iniciou a sua obra (a par da qual teria uma importante obra gráfica nos anos 20 e 30) em 1925, com 18 anos, criando no ano seguinte o seu primeiro herói significativo, Totor, não por acaso um escuteiro. Em 28, no «Sifflet», ensaiava as primeiras BD com balões. E em Janeiro de 29, data que agora se comemora, Tintin partia então para o País dos Sovietes (onde poderia ter encontrado o Quim e o Manecas se tivesse nascido... 10 anos antes).
Esqueçamos, por hoje, a vastidão da restante obra e os outros heróis e debrucemo-nos um pouco sobre essa história inicial, antes de um breve percurso pelos restantes 22 álbuns da colecção das Aventuras de Tintin, que, além da uniformização geral, foi sofrendo intervenções «cirúrgicas».
Com uma certeza: se excluirmos os dois primeiros e os dois últimos álbuns, os restantes 19, com uma ingenuidade aqui, uma fragilidade acolá, formam no conjunto uma das mais fascinantes obras do nosso século. Um universo paciente e genialmente construído que nos continua a espantar e encantar - e vale sempre a pena descobrir ou redescobrir - pela qualidade e solidez de concepção das histórias, pela infinita riqueza de dados e de pormenores sobre o nosso tempo e o nosso imaginário, pela efectiva clareza narrativa, pela galeria de personagens e a sua recorrência (entre as quais o delirante português Oliveira da Figueira, tão simpático que a sua veia de fala-barato se reconverte de vendedor em contador de histórias para salvar Tintin), que acentua a sensação de familiaridade e cumplicidade, pelo enraizamento político sublimado e desmistificador de todos os poderes, pelo fascinante convite à viagem, com uma geografia que na BD só encontra paralelo em Corto Maltese, pela inventividade linguística, pelo respeito pelas diversas culturas e a solidariedade entre os povos, pela nobreza de carácter de Tintin, símbolo de coragem, desprendimento, generosidade, virtudes e valores autênticos, com uma dimensão humana e humanista - Coração Puro, como lhe chamam os monges tibetanos -, tudo pontuado por um fino e essencial sentido de humor.
Esta época fundadora pode ser dividida em duas fases - antes e depois de Tchang, isto é, da formação e descoberta não planeada de um herói e de uma linguagem, até à construção consciente de um universo. As primeiras aventuras de Tintin são as que mais reflectem o ambiente ideológico e social em que se integrava o jornal «Vingtième Siècle», onde Hergé trabalhava e por cujo suplemento infantil, «Le Petit Vingtième», criado dois meses antes, Hergé era responsável.
Inspirado num mundo de coisas em que se destaca o cinema cómico burlesco americano, as histórias vão sendo feitas dia a dia, ou semana a semana, utilizando «gags» e uma virulência em que a consciência das implicações e o respeito pelo próximo ainda não foram assumidos. E, no entanto, é sabido o peso que o director do jornal, Abbé Wallez, teve na génese e nos destinos iniciais de Tintin.
Há uma clara intenção de cruzada católica anticomunista e missionária. Daí que Hergé se veja constrangido a enviar o seu herói ao Congo Belga antes dos EUA. Mas rapidamente o herói vai fugir ao destino apologético que lhe querem imprimir, defender os valores cristãos, no seu sentido mais nobre, discreto, profundo e interiorizado. Tintin parte então para a Rússia com um objectivo predefinido: mostrar as iniquidades do regime soviético. Só que, apesar das leviandades e ingenuidades de construção, Hergé vai basear-se no livro, com grande difusão na época, Moscou sans Voiles, de Joseph Douillet, cônsul belga na Rússia czarista e na URSS.
Algumas das cenas mais contundentes, como as fábricas a fingir que trabalham, os votos sob a ameaça das armas, a miséria, os alimentos dados apenas aos que se confessam comunistas, saem directamente das páginas de Douillet - e na crueza dos factos eram basicamente verdadeiras ou verosímeis. Hoje sabe-se que as atrocidades do regime soviético estiveram muito para lá do imaginável, ou mesmo do inimaginável. Mas as abundantes denúncias, entre as quais este primeiro Tintin se integra, estavam do lado errado da História, e quem as fazia era inapelavelmente reaccionário.
Hoje, a visão é outra, mas os «reaccionários» continuam a sê-lo. Para quando a clarificação da História é acompanhada de uma palavra de justiça sobre os que viram na altura o que tantos e tão responsáveis não viram, não quiseram ver, ou fingiram não ver? E, no entanto, uma década depois, seria a vez de Hergé não ver, não querer ver, ou fingir não ver, embora Tintin visse.
Assim, além da pacificação sobre a memória e o passado de Hergé neste aspecto, Tintin au Pays des Soviets, agora objecto de uma nova reedição pela Casterman, fica sobretudo como a obra fundadora da construção da personagem e o domínio progressivo da linguagem. E as razões da sua não adaptação às 62 páginas a cores, como aconteceu a todos os outros até à Guerra, balançará sempre entre um certo complexo pelas críticas de que foi alvo e a consciência de que era uma obra ainda muito incipiente apesar da sua importância. No final, uma luminosa ideia de «marketing» iria começar a consolidar o que tinha muito de brincadeira: o encenado «regresso» de Tintin da Rússia, em carne e osso, com a chegada à estação de Bruxelas (e que é como acaba o livro!), surpreenderia pela popularidade já adquirida.
Tintin au Congo é o outro pilar da «lenda negra» que pairou sobre Hergé - embora mais tarde, pois na altura as histórias foram recebidas com entusiasmo e sem grande contestação -, agora devido à questão do racismo. É óbvio que Hergé ainda está na fase burlesca, e aceita passivamente a visão paternalista do bom pretinho, mas que não exclui a simpatia, numa posição que não divergia muito da maioria dos portugueses da altura - não é por acaso que no «Papagaio» (cuja estreia mundial não francófona ocorrera com Tintin na América do Norte) a aventura chamar-se-á Tintin em Angola. A obra posterior mostraria claramente que se há «gags» infelizes e povos vistos com simpatia e outros com antipatia, o humanismo, a concórdia, o interesse e respeito pelos diversos povos é o que emana e fica das leituras, não havendo sentimentos racistas subjacentes.
Em Tintin en Amérique a solidez começa a afirmar-se, embora a construção ainda misture várias histórias e preocupações numa só - e Hergé começa a baralhar os dados ao denunciar o capitalismo, aos defender os índios. Tutankhamon paira sobre Les Cigares du Pharaon, mas é a Índia, as seitas, os «complots» que nos fascinam, um percurso paralelo à Rota da Seda, incluindo o Mar Vermelho do autêntico Henry de Monfreid, e a «família» começa a constituir-se: os Dupondt, Rastapapoulos, Oliveira da Figueira.
Um dia, ao saber-se que Tintin ia à China, um jovem artista chinês a estudar na Bélgica com uma bolsa, Tchang Tchong Jen de seu nome, aparece a Hergé para o ajudar a documentar-se e a não ofender com estereótipos os sentimentos do seu povo. É a primeira e grande revolução, quer estética quer ética. Será um dos álbuns mais politizados, tomando claro partido pela China contra o invasor imperialista japonês. E um dos mais belos. E em que a amizade com Tchang arrasará quaisquer leituras sectárias e unívocas. É no Lotus Bleu que Tintin verdadeiramente nasce.
L'Oreille Cassée vai confirmar a justeza no caminho já definitivamente encontrado por Hergé. Aventura/perseguição alucinante, é das que melhor sintetizam toda a série, pela transposição de factos reais (a guerra do Grande Chaco = Grand Chapo = Grand Chapeau, o traficante de armas Bazaroff, que existiu...), pela importância etnográfica, pela denúncia das ditaduras e o desprezo pela vida humana, pelo jogo de aparências, falsidades e mistificações, pelo irrisório da busca se é a cobiça que a move.
L'Ile Noire, entre mitos ancestrais, falsários e novas tecnologias, ficará marcada por uma terceira versão dos anos 60, que retira toda a poesia à aventura. Devia ser reintroduzida na colecção a primeira versão a cores. A Guerra está à porta, e num espantoso jogo de aproximação entre ficção e História, Le Sceptre d'Ottokar simbolizará o «Anschluss», denunciando na primeira versão a preto e branco mais claramente os fascismos da Europa Central, e na da colecção normal todos os totalitarismos sintetizados pelo ditador Musstler (MUSSolini+HiTLER), com uma maior balcanização daquela que é, para lá do contexto político, uma das grandes criações de Hergé - o País da Sildávia, com a sua história, língua, tradições... e a entrada tonitruante da Castafiore.
O fim do «Petit Vingtième» implicará a interrupção de Au Pays de l'Or Noir, que só reaparecerá uma década depois e será objecto de várias versões. Le Crabe aux Pinces d'Or denuncia ainda nos anos 30 os traficantes de droga, mas poucas obras terão transmitido com tanta força o fascínio do deserto e da estética árabe, nesse percurso sob o signo da sede, ou não nos trouxesse ele a fabulosa figura do Capitão Haddock. É a primeira história publicada no «Le Soir (volé)» (controlado pelos alemães) e a última com álbum a preto e branco antes da adaptação uniformizadora à cor.
L'Étoile Mystérieuse é a aventura neutral por excelência (a começar pelo grupo de cientistas, em que se inclui um português), aparentemente fora da terrível realidade do momento. Mas mesmo dando-se o benefício da dúvida a Hergé, que o lamentaria, aquilo que noutro contexto (lido hoje) seria uma denúncia da alta finança simbolicamente representada por um judeu, sem que tal represente todos os judeus, em 1942 foi profundamente lamentável. O «pecado» de Hergé passa muito mais por aí do que pelas discussões entre direita e esquerda. Mas o que fica é a angústia, o profundo mal-estar, o ambiente de pesadelo que torna este álbum um dos mais inesquecíveis, por imagens como a da aranha, as maçãs gigantes, etc. A sua importância histórica viria, porém, do facto de ser o primeiro que, depois das tiras no jornal, foi directamente publicado em álbum com as consagradas 62 páginas.
E embora só alguns tenham autoridade moral para denunciar, e embora «Le Soir (volé)» não fosse dos mais agressivamente germanófilos, e embora seja legítimo procurar o ganha-pão, e embora se tivesse verificado o apelo ao regresso feito pelo rei que ele tanto venerava, Hergé privilegiou, de facto, a consolidação da sua carreira, a segurança, mesmo que isso implicasse um determinado grau de colaboracionismo. Não activo nem convicto, mas pragmático. Hergé, que não é um extremista, procurou sempre conciliar o que para muitos é inconciliável: uma distância crítica sobre as ideologias e os fanatismos a par de amizades (que nunca abandonará) predominantemente de direita e mesmo de extrema direita, algumas das quais se revelarão claramente pró-alemãs. Mas se ele, não renegando a família ideológica e sociológica da direita, não deu esse passo, será honesto afirmar que só não o fez por timidez ou que o fez «em espírito»?
A relação com o rexismo (fascismo belga) é disso exemplar. Hergé conheceu o futuro líder do movimento, Léon Degrelle, ainda nos anos 20, no «XXe Siècle», de quem ficou amigo, chegando a fazer ilustrações para a editora Rex. Mas quando o movimento se radicaliza, Hergé afasta-se. Quando é convidado a passar para o jornal do movimento, recusa. Segundo testemunho da própria Germaine, a primeira mulher, que fora secretária de Abbé Wallez, das raras vezes que Hergé a proibiu de algo foi de ir a um comício rexista.
É ainda em plena Guerra que Hergé vai não só adaptar às 62 páginas a cores a maior parte dos álbuns iniciais (com a decisiva colaboração de Jacobs), mas, em dois dípticos seguidos, solidificar a série no seu conjunto. Daí que eu as interligue já com as aventuras que se seguirão no pós-Guerra, apesar das peripécias que rodearão a passagem de Les 7 Boules de Cristal para Le Temple du Soleil. É que esta vai ser uma das histórias inaugurais de uma revista que marcará profundamente a BD belga e europeia - «Tintin» -, cujo responsável artístico inicial será precisamente Hergé. Ora para isso ser possível, para Hergé ter o atestado de civismo apesar da colaboração no «Le Soir (volé)», é porque foi defendido por resistentes como Raymond Leblanc, o impulsionador da nova revista, e por figuras morais como Jacobs. E por muito que admirassem Tintin, tê-lo-iam feito se Hergé fosse nazi/fascista?
Le Secret de La Licorne e Le Trésor de Rackham le Rouge. É não só a aventura em estado puro - e a história de maior sucesso do conjunto - mas a busca das raízes, seja nos antepassados seja no encontro de um espaço que acolherá toda a «família» - que, no essencial, agora se completa com a entrada fulgurante de Tournesol, sem esquecer a reabilitação de Nestor. E são incomparáveis as cenas em que o Capitão se identifica com o Cavaleiro de Hadoque. Les 7 Boules de Cristal e Le Temple du Soleil renviam para o fascínio das civilizações pré-colombianas como símbolo já não das nossas raízes pessoais, mas civilizacionais, a nostalgia de um mundo perdido, esotérico e honrado. E, mais uma vez, a amizade.
Au Pays de l'Or Noir é o mundo do petróleo e do conflito israelo-árabe, mas também o deserto, a cultura e os desentendimentos árabes, é o «sheik» de quem ficará amigo, mas é uma história sobre a qual pesam as vicissitudes por que passou, reforçadas pelas sucessivas alterações descontextualizadoras; é também a intervenção inenarrável de Oliveira da Figueira, e é o «gag» genial da inclusão do Capitão Haddock, que, na primeira versão incompleta, ainda não existia... Objectif Lune e On a Marché sur la Lune é o culminar verniano e brilhante de uma das muitas preocupações e atenções de Hergé que perpassam por toda a obra - a ciência, documentada antevisão de uma das sagas mais simbólicas da fé do Homem nele próprio, desmistificada pelo humor e pela poesia da imponderabilidade.
L'Affaire Tournesol mergulha-nos de novo nas angustiantes tensões do nosso tempo, em ambiente de Guerra Fria, e homenageia a Suíça que muitas vezes foi a tranquilidade acolhedora para as crises existenciais de Hergé. Coke en Stock são ainda os conflitos político-económicos do nosso tempo, os problemas do Médio-Oriente, os interesses inconfessáveis, a denúncia (que continua actual 30 anos depois!) da permanência da escravatura, é a síntese de toda a série, e é a descoberta fascinante de Petra mesmo antes de a saber nomear.
Tintin au Tibet, realizado na altura de um período difícil em que Hergé se separaria de Germaine para ir viver com Fanny, é o cume da série. Não no sentido de ser a única obra-prima, pois há mais, mas porque o simbolismo da montanha corporiza de facto algumas das linhas de força de toda a obra, na amizade e na busca de uma espiritualidade que só a pureza oriental e em particular budista/tibetana pode transmitir. Realizado premonitoriamente no mesmo ano da ocupação chinesa, o espantoso rigor etnográfico e documental transmite um acrescido fascínio e convida à solidariedade.
Vol 714 pour Sydney, publicado quatro anos depois da Castafiore, em 66, ainda tenta abrir outras pistas de reflexão sobre alienações do nosso tempo, ainda traz novas personagens, mas a desaceleração criativa é evidente, e sobretudo o desenho e o humor sofrem contaminações empobrecedoras. Ainda é um álbum com o seu encanto, mas já é de algum modo exógeno à obra.
Tintin et les Picaros, penosamente concluído quase uma década depois, tem interesse pela confirmação do cepticismo sobre os poderes políticos, reclamem-se eles de que ideologia for, mas apesar do potencial fascínio da revisitação de espaços outrora míticos, é já a falta de fôlego que impera. Nada adianta à série - não valeu a pena tanto esforço para substituir as calças à golfe por uns banais jeans. Mais prometedora, porém, era a história que ficou inacabada, Tintin et l'Alph-Art, passada nos meios da arte e dos falsários, tanto mais que Hergé era um grande apreciador e coleccionador de pintura contemporânea.
É tempo, pois, de deixar Hergé em paz, com os seus segredos e os seus valores, as suas fidelidades e infidelidades, as suas cumplicidades e as suas contradições, a sua solidão e a sua genialidade consciente. E retomarmos, entusiasmadamente e de coração puro, a leitura da obra, profundamente enraizada no seu e nosso tempo, progressivamente «descronologizada», perenemente intemporal.
Texto de JOÃO P. BOLÉO / Expresso, 16/01/1999
https://arquivo.pt/wayback/200101160416/http://www.expresso.pt:80/ed1368/r0341.asp?r0301,r0341&rel
Há uma clara intenção de cruzada católica anticomunista e missionária. Daí que Hergé se veja constrangido a enviar o seu herói ao Congo Belga antes de o levar aos Estados Unidos
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