Magazine Artes, 1 de Março de 2003
O século XX, vinte anos depois. [no 20.º aniversário da morte de Hergé]
João Paulo Cotrim
Duas décadas passaram sobre as manchetes que anunciaram a morte do autor do herói mais popular da linguagem do século. As complexas personagens Hergé e Tintin estão ainda vivas. Para o melhor e o pior.
Muitas páginas. Não, não somos escravos do nosso tempo, mas ele o nosso chão, aquele onde mergulhamos raízes e crescemos. Andei meses, muitos meses com o Tintin na América, versão brasileira. Desconfio que aprendi a ler com ele, que senti vertigens ao acompanhar o herói entre arranha-céus de Chicago, que descobri o valor da cultura indígena, que naquelas páginas comecei a detestar o capitalismo selvagem. Muitos heróis-do-bem depois, reaprendi a ler a amizade em Tintin no Tibete. Gostava de um dia pressentir amigos em perigo e correr para os salvar enquanto descubro misteriosas e longínquas paragens e culturas, nas quais acabo por me render à simpatia do suposto inimigo... Nestas páginas é possível experimentar o gozo de ver o subjectivo nas imagens (quase) objectivas, os múltiplos conteúdos de um quadradinho apenas, a relação entre as páginas, o rigor da planificação e a síntese do desenho. Em As Jóias de Castafiore conhecemos o exacto valor que um pequeno nada pode valer, bola de neve que chegará a ser acção de uma operática arquitectura mental. As personagens hão-de ganhar corpo para além do tique, a casa fazer-se palco, a tecnologia assumir um belo papel secundário, para no fim contar, antes de tudo, a gargalhada.
Uma biografia. Georges Prosper Remi Remi morreu com 76 anos deixando em herança Tintim, personagem popular entre as populares, a liderar um grupo (Milou, Haddock, Dupont e Dupond, etc) que atravessou o século e respectivas obsessões, que definiu uma gramática da linguagem do folhetim gráfico, que tornou o planeta mais pequeno com as suas viagens e exotismos. Mais do que uma obra, Tintin é um fenómeno: dedicaram-lhe ensaios filosóficos, centenas de livros, alguns romances e outras tantas pinturas e esculturas, milhares de páginas de jornais, baptizaram a partir das suas aventuras planetas e doenças e sítios. Pierre Assouline, director da revista Lire, traçou densamente, em Hergé, o retrato de um homem para além do mito, sem esquecer as suas zonas obscuras. Adoptando a divisa «toda a convicção era uma prisão», o belga Hergé, que guardou o seu nome próprio para uma vocação de pintor que acabou sendo apenas a de coleccionador, carregou fantasmas pesados como o desconhecimento da identidade do seu avô paterno, provavelmente um membro da alta aristocracia belga; ou os últimos dias da mãe num hospício; a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as longas e profundas depressões ou o período de colaboracionismo com a imprensa alemã durante a segunda guerra mundial. Para este seu biógrafo, apenas um entre tantos, o “pai” de Tintin foi vaidoso e generoso, mais oportunista que colaboracionista, tão dilacerado quanto obstinado e ambicioso, afinal, um individualista sempre sob influência. «Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintin», diz Assouline. «São ambos produtos típicos da classe média, mas o que os separa também é notável. O repórter mete-se em tudo o que não chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia de gatos.».
Um álbum-biografia. Setenta e tal anos depois do nascimento de Tintin é o seu autor quem se torna personagem de bd, segundo o traço claro de Stanislas e a investigação rigorosa de Bocquet e Fromental. A ideia é boa, o estilo apropriado e o tom, embora de homenagem, está longe da pieguice habitual, pelo que o conjunto resulta interessante. É um retrato íntimo e impressionista, que não esconde os lados obscuros do mestre da “linha clara”. A partir de momentos marcantes, vão-se somando as características que fizeram de Georges Remi o célebre Hergé (da fundadora e duradoira amizade com Tchang ao encontro com Andy Warhol), e de Tintin um fenómeno universal (desde 1930, quando o actor que incarnava o repórter foi recebido em loucura pela cidade de Bruxelas, no simulado regresso de um périplo pelo País dos Sovietes).
Quatro revistas. A actualidade tem revisitado o olhar de Tintin sobre a ciência (Science & Vie especial: «Tintin chez les Savants»), a geografia (número especial da revista Geo, agora reeditado em álbum), a banda desenhada (número especial da revista (A Suivre), agora reeditado pela Casterman) e até do seu reflexo entre nós (revista Quadrado, n.º 1, Vol. 3, Janeiro 2000) – primeiro país de língua não francesa a publicar as aventuras do repórter de popa que não escreveu uma linha, usava calças de golfe e nunca cruzou uma mulher. Excepto a que cantava: “Ah, rio de me ver tão bela neste espelho.”
Tintin na América, 62 pp a cores, Verbo
Tintin no Tibete, 62 pp a cores, Verbo
As Jóias de Castafiore, 62 pp a cores, Verbo
Hergé, Pierre Assouline, 828 pp, Folio, 1998
As Aventuras de Hergé, Bocquet, Fromental, Stanislas, 64 pp a cores, Mais BD, 2003
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Copyright: © 2003 Magazine Artes; João Paulo Cotrim
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