terça-feira, 24 de agosto de 2021

Manuel António Pina

Interessante artigo de Manuel António Pina, em que se apresenta como esclarecido tintinófilo, fazendo a análise, entre outras coisas, das duas edições do episódio de Tintin no Congo que conhece.

in suplemento/revista do Jornal de Notícias, Notícias Magazine, 20 Set.09

http://fanzinesdebandadesenhada.blogspot.com/2009/10/folha-volante-n-239-outubro-2009.html


Ectoplasmas! Analfabetos! Cretinos dos Andes!

Hei-de ter por aí, perdidas nas estantes, duas diferentes edições de Tintin no Congo, uma em que Tintin, numa escola repleta de «pretinhos», diante de um mapa, lhes diz algo do género: «Agora vou falar-vos da vossa Pátria, a Bélgica» e uma outra em que o mapa se transformou numa lousa e Tintin está a dar uma aula de... Matemática.

Hergé redesenhou e reescreveu muitos dos seus álbuns, principalmente os primeiros. Assim aconteceu com a versão a cores de 1946 de Tintin no Congo (o seu segundo álbum, editado em 1931, depois de Tintin no País dos Sovietes), que foi completamente redesenhada, bem como expurgada de muitos dos preconceitos culturais da edição original. O próprio Hergé reconheceria que, como «Tintin no País dos Sovietes, Tintin no Congo estava cheio dos preconceitos do meio em que eu vivia em 1930», insistindo para que a obra fosse lida «no seu contexto histórico».

Só que as brigadas policiescas do politicamente correcto não são dadas à História e, sobretudo, confiam pouco na inteligência crítica dos leitores. Há dois anos, a British Commission on Racial Equality tentou que Tintin no Congo fosse proibido na Grã-Bretanha e, recentemente, em Bruxelas, um indivíduo ameaçou proceder judicialmente contra os gestores dos direitos de Hergé por ser uma obra «colonialista» (só quem nunca leu O Lótus Azul poderia acusar Tintin de colonialista»). Agora, em Nova Iorque, a Biblioteca de Brooklyn, pressionada, decidiu pura e simplesmente, retirar Tintin no Congo das prateleiras.

Ao longo de noites intermináveis, metido debaixo dos cobertores com uma lanterna para que meus pais não se apercebessem de que não estava a dormir, fui com Tintin à Lua e aos confins dos Andes, subi aos Himalaias e desci ao fundo dos mares, atravessei desertos e tempestades, enfrentei gangsters de Chicago e ditadores sul-americanos, persegui assassinos, e traficantes, falsificadores, desmascarei traidores e corruptos, naufraguei, fui preso, condenado à morte, e defendi fracos e oprimidos em todo o mundo, muçulmanos, negros, camponeses chineses, indios norte-americanos. É por isso que, vendo Tintin censurado, me apetece, co-mo o Capitão Haddock, praguejar: «Selvagens! Ectoplasmas! Tratantes! Analfabetos!»

Porque, a seguir, virão as mulheres a acusar Tintin de «sexista» e «misógino» por causa da Castafiore, e depois os gregos de «xenofobia» por causa de Rastapopoulos (ou até os bordúrios, quem quer que sejam, por causa do infame Mustler); e os médicos alemães por causa de J. W. Muller; os judeus por causa de Blumenstein (ou Bohlwinkel); os defensores dos animais pelas chocantes cenas de caça de Tintin no Congo...

Vivemos tempos negros (adjectivo politicamente incor-recto), em que os mais absurdos crimes contra a liberdade são, como sempre, justificados com os melhores propósitos. Um dia ainda veremos a mesma malta que conseguiu agora a censura de Tintin no Congo exigir quotas de mulheres, negros, ciganos, deficientes, homossexuais, esquimós e mais todas as dispersas minorias, na BD e na literatura em geral.

Manuel António Pina, Notícias Magazine, 20/09/2009

Artigo do jornalista Manuel António Pina in suplemento revista do Jornal de Notícias, Notícias Magazine - 20 Set. 09

folha volante – n° 239 – 6 Outubro 2009 – fanzine aperiódico - tiragem 100 ex.

distribuição gratuita na Tertúlia BD de Lisboa

editor: geraldes lino - apartado 50273 - 1707-001 Lisboa.

Tintin octogenário

Foi a 10 de Janeiro de 1929 que o "Le petit Vingtième" publicou a primeira prancha de Tintin, dando início a uma aventura cuja actualidade, 80 anos depois, se faz cada vez mais distante da BD.

Nessa primeira prancha, a preto e branco, tal como as oito aventuras que se lhe seguiram, mais tarde redesenhadas a cores, Tintin partia de comboio para o País dos Sovietes, onde escreveria a sua primeira e única reportagem. Era um início marcado pela ingenuidade e pelo desenvolver do argumento ao correr dos desenhos, mas onde Hergé já revelava as qualidades - legibilidade, domínio da planificação, dinamismo do traço, construção da trama - que fariam dele um dos nomes maiores da 9ª arte.

Depois da Rússia, retratada de forma crítica e parcial, por influência do director do jornal católico que o publicou, Hergé levaria o seu herói a África e aos Estados Unidos, à América do Sul, um pouco por toda a Europa e mesmo à Lua, 20 anos antes de Armstrong. Com Tintin, construiu uma obra equilibrada e deslumbrante, traçada num primoroso estilo linha clara, tendo por principais vectores a aventura, a amizade, a lealdade e o sentido de justiça.

E que hoje em dia permanece perfeitamente legível - e inalterada devido à vontade expressa nesse sentido por Hergé - e na qual se encontram algumas obras-primas da BD. Mas que, nalguns casos, necessita de ser lida e interpretada à luz da época e do contexto em que foi criada, para evitar acusações ridículas e ignorantes como "racista", "defensor de maus tratos aos animais" ou "colaboracionista", que regularmente são feitas a Hergé, quase sempre por gentinha em bicos-de-pés em busca de 15 minutos de (triste) fama à sombra de Tintin. O caso mais recente veio esta semana à luz nas páginas do respeitável "The Times", num artigo (risível) de Matthew Parris, antigo deputado britânico, intitulado "Claro que Tintin é gay. Perguntem a Milu", de imediato desmontado por estudiosos e defensores da obra de Hergé.

Pedro Cleto, Jornal de Notícias, 10/01/2009

(...)

É também incrível que um crítico defenda explicitamente a alienação tornando-se cúmplice desta autêntica doutrinação encapuçada. Pedro Cleto é, aliás, useiro e vezeiro neste tipo de branqueamento (caso do racista Hergé, na primeira fase da sua carreira: Jornal de Notícias, 10 de Janeiro). Idem Manuel António Pina (Notícias Magazine, 20 de Setembro): o autor argumenta que se deve fazer uma contextualização histórica da atitude de Hergé; de acordo: havia muitos racistas e Hergé era um deles – está feita... (Já que ando por estas bandas corrijo o seguinte: J. W. Müller não foi inspirado em ninguém de nacionalidade alemã; o nome J. W. Müller foi inspirado no bem português Adolfo Simões Müller.)

Domingos Isabelinho, Dossiê da Bedeteca - 2009

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