quinta-feira, 20 de março de 2003

Ano Tintin

Começa hoje [03/03/2003] o "Ano Tintin" 20 anos após morte de Hergé. Multiplicam-se os estudos sobre o alcance universal da obra de um dos mais famosos desenhadores de todos os tempos. Steven Spielberg deverá adaptar brevemente ao cinema aventuras do repórter.

Nunca escreveu uma linha que fosse, mas é o jornalista mais famoso do planeta. Tintin, imortal criação do desenhador belga Hergé, vê hoje passarem 20 anos sobre o desaparecimento do seu pai criador. "Tintin sou eu. Creio que sou o único a poder animá-lo, no sentido de lhe dar uma alma. Se outros retomassem Tintin, podiam fazê-lo melhor ou pior. Mas fá-lo-iam de outra forma e já não seria Tintin!", declarou Hergé pouco antes da morte.

O falecimento de Hergé, assinalado hoje, dá justamente início às comemorações do "Ano Tintin", com os festejos a estenderem-se até Janeiro de 2004, quando o herói sem idade festejar as bodas de diamante.

Mas como manter viva essa popularidade, 27 após a publicação da última aventura, 17 após a edição, sob forma de esquisso e argumento (incompleto) de "Tintin et L'Alph'Art", o álbum em que Hergé trabalhava à data da sua morte?

A resposta tem sido dada de diversas formas. Por um lado, têm-se multiplicado os estudos, as biografias e as análises ao autor e à obra. As mais marcantes são, sem dúvida, "Le monde d' Hergé", de Benoit Peeters, e "Chronologie d'une oeuvre", de Philippe Goddin. A próxima, anunciada para 17 de Março, é "Tchang! Comment l'amitié deplace les montagnes", sobre a vida de Tchang Tchong-Jen, estudante chinês que o desenhador conheceu nos anos 30 e que lhe despertaria a necessidade de realismo que a sua obra contém, cujoapogeu é conseguido em "Tintin no Tibete".

Mas com o foco mediático a levantar-se novamente sobre Hergé, voltam a circular rumores de uma "novidade": a versão a cores de "Tintin no país dos sovietes", uma versão animada de "Tintin e o lago dos tubarões", ou mesmo uma versão finalizada de "Tintin etl'Alph Art". Acontecimento maior será, indubitavelmente, a concretização de uma nova versão em cinema (Tintin já foi retratado em carne e osso, nos anos 60, por Jean-Pierre Talbot), dirigida por Steven Spielberg . O autor de "ET" comprou os direitos para realizar três filmes livremente baseados nas aventuras do jovem repórter. A onfirmação surgirá num futuro breve.

Cronologia

Hergé confunde-se com Tintin. A sua mais genial criação é um dos símbolos gráficos do século XX. Os seus álbuns estão traduzidos em 50 línguas.

1907

Nasce Georges Remi. Ficará mundialmente conhecido pelo apelido Hergé.

1929

Publica a primeira prancha de "As aventuras de Tintin no país dos sovietes".

1940

A ocupação da Bélgica pelos nazis obriga-o a aprofundar o seu universo. Conhece Edgar P. Jacobs, autor de "Blake e Mortimer".

1946

Nasce a revista "Tintin"

1950

Criação dos Estúdios Hergé. Desenvolve, em três anos, a aventura lunar de Tintin.

1976

Publica "Tintin e os pícaros", última aventura do herói.

1983

Hergé morre de leucemia.

O que havia no seu lápis para lá de Tintin

O desenhador belga mais celebrado de sempre não criou só Tintin. Na bibliografia de Hergé existem outras séries de vida efémera, mas com carácter valioso. A mais conhecida é "Les exploits de Quick e Flupke" ("Aventuras e desventuras de Quim e Filipe" na edição portuguesa da Verbo, 12 miniálbuns de 32 páginas), que narram as diabruras de dois miúdos belgas, "levados da breca" para inventarem sarilhos e confusões, à conta das partidas que gostam de pregar.

Nascidos em Janeiro de 1930, um ano depois de Tintin, duraram quase 11 anos e revelam um Hergé mais espontâneo, irónico e quase desrespeitoso, que "através destes gags de uma ou duas páginas, viveu, enfim, a infância endiabrada que nunca chegou a conhecer", disse Benoit Peeters.

Em 1936, Hergé cria "Les Aventures de Jo, Zette et Jocko" ("As aventuras de Joana, João e do Macaco Simão", edição Verbo), por encomenda do jornal francês "Coeurs Vaillants" que lhe propôs mais ou menos isto: "Sabe, o seu Tintin não está mal, gostamos muito dele. Mas é assim: ele não trabalha, não vai à escola, não tem pais, não come, não dorme... Não é muito lógico. Não pode criar uma personagem cujo pai trabalhe, que tenha uma mãe, um animal de estimação?" Nesta série, apesar da boa vontade, Hergé nunca se terá sentido muito à vontade, devido à multiplicidade de imposições e à artificialidade do conjunto.

Da bibliografia de Hergé constam ainda duas outras obras: "Totor, C.P. des Hannetons" (1926), um ingénuo precursor de Tintin, e "Popol et Virginie chez les Lapinos" (1934), um western animalista, mais curioso do que interessante.

Pedro Cleto, Jornal de Notícias, 03/03/2003


   

sábado, 8 de março de 2003

O século XX, vinte anos depois.

 Magazine Artes, 1 de Março de 2003

O século XX, vinte anos depois. [no 20.º aniversário da morte de Hergé]

João Paulo Cotrim

Duas décadas passaram sobre as manchetes que anunciaram a morte do autor do herói mais popular da linguagem do século. As complexas personagens Hergé e Tintin estão ainda vivas. Para o melhor e o pior.

Muitas páginas. Não, não somos escravos do nosso tempo, mas ele o nosso chão, aquele onde mergulhamos raízes e crescemos. Andei meses, muitos meses com o Tintin na América, versão brasileira. Desconfio que aprendi a ler com ele, que senti vertigens ao acompanhar o herói entre arranha-céus de Chicago, que descobri o valor da cultura indígena, que naquelas páginas comecei a detestar o capitalismo selvagem. Muitos heróis-do-bem depois, reaprendi a ler a amizade em Tintin no Tibete. Gostava de um dia pressentir amigos em perigo e correr para os salvar enquanto descubro misteriosas e longínquas paragens e culturas, nas quais acabo por me render à simpatia do suposto inimigo... Nestas páginas é possível experimentar o gozo de ver o subjectivo nas imagens (quase) objectivas, os múltiplos conteúdos de um quadradinho apenas, a relação entre as páginas, o rigor da planificação e a síntese do desenho. Em As Jóias de Castafiore conhecemos o exacto valor que um pequeno nada pode valer, bola de neve que chegará a ser acção de uma operática arquitectura mental. As personagens hão-de ganhar corpo para além do tique, a casa fazer-se palco, a tecnologia assumir um belo papel secundário, para no fim contar, antes de tudo, a gargalhada.

Uma biografia. Georges Prosper Remi Remi morreu com 76 anos deixando em herança Tintim, personagem popular entre as populares, a liderar um grupo (Milou, Haddock, Dupont e Dupond, etc) que atravessou o século e respectivas obsessões, que definiu uma gramática da linguagem do folhetim gráfico, que tornou o planeta mais pequeno com as suas viagens e exotismos. Mais do que uma obra, Tintin é um fenómeno: dedicaram-lhe ensaios filosóficos, centenas de livros, alguns romances e outras tantas pinturas e esculturas, milhares de páginas de jornais, baptizaram a partir das suas aventuras planetas e doenças e sítios. Pierre Assouline, director da revista Lire, traçou densamente, em Hergé, o retrato de um homem para além do mito, sem esquecer as suas zonas obscuras. Adoptando a divisa «toda a convicção era uma prisão», o belga Hergé, que guardou o seu nome próprio para uma vocação de pintor que acabou sendo apenas a de coleccionador, carregou fantasmas pesados como o desconhecimento da identidade do seu avô paterno, provavelmente um membro da alta aristocracia belga; ou os últimos dias da mãe num hospício; a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as longas e profundas depressões ou o período de colaboracionismo com a imprensa alemã durante a segunda guerra mundial. Para este seu biógrafo, apenas um entre tantos, o “pai” de Tintin foi vaidoso e generoso, mais oportunista que colaboracionista, tão dilacerado quanto obstinado e ambicioso, afinal, um individualista sempre sob influência. «Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintin», diz Assouline. «São ambos produtos típicos da classe média, mas o que os separa também é notável. O repórter mete-se em tudo o que não chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia de gatos.».

Um álbum-biografia. Setenta e tal anos depois do nascimento de Tintin é o seu autor quem se torna personagem de bd, segundo o traço claro de Stanislas e a investigação rigorosa de Bocquet e Fromental. A ideia é boa, o estilo apropriado e o tom, embora de homenagem, está longe da pieguice habitual, pelo que o conjunto resulta interessante. É um retrato íntimo e impressionista, que não esconde os lados obscuros do mestre da “linha clara”. A partir de momentos marcantes, vão-se somando as características que fizeram de Georges Remi o célebre Hergé (da fundadora e duradoira amizade com Tchang ao encontro com Andy Warhol), e de Tintin um fenómeno universal (desde 1930, quando o actor que incarnava o repórter foi recebido em loucura pela cidade de Bruxelas, no simulado regresso de um périplo pelo País dos Sovietes).

Quatro revistas. A actualidade tem revisitado o olhar de Tintin sobre a ciência (Science & Vie especial: «Tintin chez les Savants»), a geografia (número especial da revista Geo, agora reeditado em álbum), a banda desenhada (número especial da revista (A Suivre), agora reeditado pela Casterman) e até do seu reflexo entre nós (revista Quadrado, n.º 1, Vol. 3, Janeiro 2000) – primeiro país de língua não francesa a publicar as aventuras do repórter de popa que não escreveu uma linha, usava calças de golfe e nunca cruzou uma mulher. Excepto a que cantava: “Ah, rio de me ver tão bela neste espelho.”

Tintin na América, 62 pp a cores, Verbo

Tintin no Tibete, 62 pp a cores, Verbo

As Jóias de Castafiore, 62 pp a cores, Verbo

Hergé, Pierre Assouline, 828 pp, Folio, 1998

As Aventuras de Hergé, Bocquet, Fromental, Stanislas, 64 pp a cores, Mais BD, 2003

https://arquivo.pt/wayback/20050701145416/http://www.bedeteca.com/index.php?pageID=recortes&recortesID=729

Copyright: © 2003 Magazine Artes; João Paulo Cotrim

quinta-feira, 16 de dezembro de 1999

Hergé: fascista ou aventureiro?

O QUE é mais intrigante acerca de Georges Rémi, universalmente conhecido por Hergé, não é tanto a pessoa, mas o «fenómeno» à volta da sua pessoa, sobretudo a sua persistência e recorrência. Embora em momentos concretos determinadas biografias possam ser foco de atenção, chegando mesmo a ser «moda», as coisas acabam por se definir, esclarecer, «arquivar». Com Hergé, não.

Desde a criação de Tintin, cíclica e repetidamente vêm à baila, como um fantasma, as mesmas questões, as mesmas estereotipadas interrogações e/ou acusações. Qual a sua ideologia, se foi ou não fascista, racista, anticomunista, colonialista, etc. A mais recente manifestação disso é a anunciada discussão sobre o assunto na Assembleia Nacional francesa, promovida pelo «Club des parlementaires tintinophiles».

E, no entanto, se, com base na infindável bibliografia sobre Hergé, incluindo declarações do próprio (e sem esquecer a obra), quisermos de facto saber qual a sua ideologia, qual o seu pensamento político, e formos honestos, só há uma posição possível: não sabemos.

Podemos saber, com alguma aproximação, quais os seus princípios, valores, os meios em que se inseria preferencialmente, alguns dos amigos, o seu posicionamento sobre acontecimentos históricos graves que marcaram o nosso século. Para lá disso, são juízos de valor sobre determinadas atitudes.

Como explicar então esta recorrência praticamente única, esta permanente reabertura do «processo», este movimento pendular entre a admiração pela obra, a simpatia pelas personagens e a condenação ou pelo menos suspeição sobre o homem? É tão difícil responder como penetrar no íntimo do próprio Hergé. E o «mistério» talvez comece por passar por aí. Hergé foi de facto um homem discreto. Todos os testemunhos apontam para a fina inteligência, o «charme», o trato delicado. Mas também para a sua reserva que era mais do que timidez. A sua firme ambição. A consciência do seu valor, da obra que queria construir, da carreira que queria realizar e em que se queria realizar. E ainda da sua solidão de criador, das suas dúvidas, angústias e depressões. E da sua sinceridade mistificante, se tal é possível. Uma simplicidade em que de algum modo acreditaria, tendo por detrás uma complexidade que não queria revelar. Que acharia que tinha o direito de não revelar, fossem as suas ideias, fossem os mecanismos e meandros do seu processo criativo. E assim como a fala foi dada ao homem para esconder o seu pensamento, Hergé também por mais de uma vez baralhou as pistas.

A riqueza de valores humanos que Tintin simboliza e a natural identificação que provocou em sucessivas gerações talvez tenham, mais do que criado a convicção ou a expectativa, exigido algo a que o seu «pai» correspondesse integralmente, que o criador fosse tão perfeito como a criatura. Como aceitar então que também ele é humano, na circunstância e nas contradições?

Mas talvez seja o «tribunal da esquerda», no fundo, que não deixe arquivar o processo, não perdoando a Hergé os pecados originais e fundadores das duas primeiras aventuras de Tintin (Sovietes, 1929/30, Congo, 1930/31) e o facto de não ser de esquerda. Uma análise global e uma atenção despreconcebida à evolução verificada levarão a conclusões algo diversas, sem excluir episódios, quer da vida quer da obra, menos edificantes.

Os vectores fundamentais que orientaram a sua vida talvez se possam condensar em três: escutismo, amizade e construção de uma obra pessoal e intransmissível (mesmo que com a colaboração «anónima» de outros, de E.P. Jacobs ao Estúdio Hergé). A acrescentar mais algum, seria um prematuro, e progressivamente acentuado, céptico desencanto, e consciência do irrisório (de que Les Bijoux é a quintessência), e uma pouco falada aproximação à busca da serenidade própria da filosofia oriental, patente no Tintin au Tibet.

Hergé iniciou a sua obra (a par da qual teria uma importante obra gráfica nos anos 20 e 30) em 1925, com 18 anos, criando no ano seguinte o seu primeiro herói significativo, Totor, não por acaso um escuteiro. Em 28, no «Sifflet», ensaiava as primeiras BD com balões. E em Janeiro de 29, data que agora se comemora, Tintin partia então para o País dos Sovietes (onde poderia ter encontrado o Quim e o Manecas se tivesse nascido... 10 anos antes).

Esqueçamos, por hoje, a vastidão da restante obra e os outros heróis e debrucemo-nos um pouco sobre essa história inicial, antes de um breve percurso pelos restantes 22 álbuns da colecção das Aventuras de Tintin, que, além da uniformização geral, foi sofrendo intervenções «cirúrgicas».

Com uma certeza: se excluirmos os dois primeiros e os dois últimos álbuns, os restantes 19, com uma ingenuidade aqui, uma fragilidade acolá, formam no conjunto uma das mais fascinantes obras do nosso século. Um universo paciente e genialmente construído que nos continua a espantar e encantar - e vale sempre a pena descobrir ou redescobrir - pela qualidade e solidez de concepção das histórias, pela infinita riqueza de dados e de pormenores sobre o nosso tempo e o nosso imaginário, pela efectiva clareza narrativa, pela galeria de personagens e a sua recorrência (entre as quais o delirante português Oliveira da Figueira, tão simpático que a sua veia de fala-barato se reconverte de vendedor em contador de histórias para salvar Tintin), que acentua a sensação de familiaridade e cumplicidade, pelo enraizamento político sublimado e desmistificador de todos os poderes, pelo fascinante convite à viagem, com uma geografia que na BD só encontra paralelo em Corto Maltese, pela inventividade linguística, pelo respeito pelas diversas culturas e a solidariedade entre os povos, pela nobreza de carácter de Tintin, símbolo de coragem, desprendimento, generosidade, virtudes e valores autênticos, com uma dimensão humana e humanista - Coração Puro, como lhe chamam os monges tibetanos -, tudo pontuado por um fino e essencial sentido de humor.

Esta época fundadora pode ser dividida em duas fases - antes e depois de Tchang, isto é, da formação e descoberta não planeada de um herói e de uma linguagem, até à construção consciente de um universo. As primeiras aventuras de Tintin são as que mais reflectem o ambiente ideológico e social em que se integrava o jornal «Vingtième Siècle», onde Hergé trabalhava e por cujo suplemento infantil, «Le Petit Vingtième», criado dois meses antes, Hergé era responsável.

Inspirado num mundo de coisas em que se destaca o cinema cómico burlesco americano, as histórias vão sendo feitas dia a dia, ou semana a semana, utilizando «gags» e uma virulência em que a consciência das implicações e o respeito pelo próximo ainda não foram assumidos. E, no entanto, é sabido o peso que o director do jornal, Abbé Wallez, teve na génese e nos destinos iniciais de Tintin.

Há uma clara intenção de cruzada católica anticomunista e missionária. Daí que Hergé se veja constrangido a enviar o seu herói ao Congo Belga antes dos EUA. Mas rapidamente o herói vai fugir ao destino apologético que lhe querem imprimir, defender os valores cristãos, no seu sentido mais nobre, discreto, profundo e interiorizado. Tintin parte então para a Rússia com um objectivo predefinido: mostrar as iniquidades do regime soviético. Só que, apesar das leviandades e ingenuidades de construção, Hergé vai basear-se no livro, com grande difusão na época, Moscou sans Voiles, de Joseph Douillet, cônsul belga na Rússia czarista e na URSS.

Algumas das cenas mais contundentes, como as fábricas a fingir que trabalham, os votos sob a ameaça das armas, a miséria, os alimentos dados apenas aos que se confessam comunistas, saem directamente das páginas de Douillet - e na crueza dos factos eram basicamente verdadeiras ou verosímeis. Hoje sabe-se que as atrocidades do regime soviético estiveram muito para lá do imaginável, ou mesmo do inimaginável. Mas as abundantes denúncias, entre as quais este primeiro Tintin se integra, estavam do lado errado da História, e quem as fazia era inapelavelmente reaccionário.

Hoje, a visão é outra, mas os «reaccionários» continuam a sê-lo. Para quando a clarificação da História é acompanhada de uma palavra de justiça sobre os que viram na altura o que tantos e tão responsáveis não viram, não quiseram ver, ou fingiram não ver? E, no entanto, uma década depois, seria a vez de Hergé não ver, não querer ver, ou fingir não ver, embora Tintin visse.

Assim, além da pacificação sobre a memória e o passado de Hergé neste aspecto, Tintin au Pays des Soviets, agora objecto de uma nova reedição pela Casterman, fica sobretudo como a obra fundadora da construção da personagem e o domínio progressivo da linguagem. E as razões da sua não adaptação às 62 páginas a cores, como aconteceu a todos os outros até à Guerra, balançará sempre entre um certo complexo pelas críticas de que foi alvo e a consciência de que era uma obra ainda muito incipiente apesar da sua importância. No final, uma luminosa ideia de «marketing» iria começar a consolidar o que tinha muito de brincadeira: o encenado «regresso» de Tintin da Rússia, em carne e osso, com a chegada à estação de Bruxelas (e que é como acaba o livro!), surpreenderia pela popularidade já adquirida.

Tintin au Congo é o outro pilar da «lenda negra» que pairou sobre Hergé - embora mais tarde, pois na altura as histórias foram recebidas com entusiasmo e sem grande contestação -, agora devido à questão do racismo. É óbvio que Hergé ainda está na fase burlesca, e aceita passivamente a visão paternalista do bom pretinho, mas que não exclui a simpatia, numa posição que não divergia muito da maioria dos portugueses da altura - não é por acaso que no «Papagaio» (cuja estreia mundial não francófona ocorrera com Tintin na América do Norte) a aventura chamar-se-á Tintin em Angola. A obra posterior mostraria claramente que se há «gags» infelizes e povos vistos com simpatia e outros com antipatia, o humanismo, a concórdia, o interesse e respeito pelos diversos povos é o que emana e fica das leituras, não havendo sentimentos racistas subjacentes.

Em Tintin en Amérique a solidez começa a afirmar-se, embora a construção ainda misture várias histórias e preocupações numa só - e Hergé começa a baralhar os dados ao denunciar o capitalismo, aos defender os índios. Tutankhamon paira sobre Les Cigares du Pharaon, mas é a Índia, as seitas, os «complots» que nos fascinam, um percurso paralelo à Rota da Seda, incluindo o Mar Vermelho do autêntico Henry de Monfreid, e a «família» começa a constituir-se: os Dupondt, Rastapapoulos, Oliveira da Figueira.

Um dia, ao saber-se que Tintin ia à China, um jovem artista chinês a estudar na Bélgica com uma bolsa, Tchang Tchong Jen de seu nome, aparece a Hergé para o ajudar a documentar-se e a não ofender com estereótipos os sentimentos do seu povo. É a primeira e grande revolução, quer estética quer ética. Será um dos álbuns mais politizados, tomando claro partido pela China contra o invasor imperialista japonês. E um dos mais belos. E em que a amizade com Tchang arrasará quaisquer leituras sectárias e unívocas. É no Lotus Bleu que Tintin verdadeiramente nasce.

L'Oreille Cassée vai confirmar a justeza no caminho já definitivamente encontrado por Hergé. Aventura/perseguição alucinante, é das que melhor sintetizam toda a série, pela transposição de factos reais (a guerra do Grande Chaco = Grand Chapo = Grand Chapeau, o traficante de armas Bazaroff, que existiu...), pela importância etnográfica, pela denúncia das ditaduras e o desprezo pela vida humana, pelo jogo de aparências, falsidades e mistificações, pelo irrisório da busca se é a cobiça que a move.

L'Ile Noire, entre mitos ancestrais, falsários e novas tecnologias, ficará marcada por uma terceira versão dos anos 60, que retira toda a poesia à aventura. Devia ser reintroduzida na colecção a primeira versão a cores. A Guerra está à porta, e num espantoso jogo de aproximação entre ficção e História, Le Sceptre d'Ottokar simbolizará o «Anschluss», denunciando na primeira versão a preto e branco mais claramente os fascismos da Europa Central, e na da colecção normal todos os totalitarismos sintetizados pelo ditador Musstler (MUSSolini+HiTLER), com uma maior balcanização daquela que é, para lá do contexto político, uma das grandes criações de Hergé - o País da Sildávia, com a sua história, língua, tradições... e a entrada tonitruante da Castafiore.

O fim do «Petit Vingtième» implicará a interrupção de Au Pays de l'Or Noir, que só reaparecerá uma década depois e será objecto de várias versões. Le Crabe aux Pinces d'Or denuncia ainda nos anos 30 os traficantes de droga, mas poucas obras terão transmitido com tanta força o fascínio do deserto e da estética árabe, nesse percurso sob o signo da sede, ou não nos trouxesse ele a fabulosa figura do Capitão Haddock. É a primeira história publicada no «Le Soir (volé)» (controlado pelos alemães) e a última com álbum a preto e branco antes da adaptação uniformizadora à cor.

L'Étoile Mystérieuse é a aventura neutral por excelência (a começar pelo grupo de cientistas, em que se inclui um português), aparentemente fora da terrível realidade do momento. Mas mesmo dando-se o benefício da dúvida a Hergé, que o lamentaria, aquilo que noutro contexto (lido hoje) seria uma denúncia da alta finança simbolicamente representada por um judeu, sem que tal represente todos os judeus, em 1942 foi profundamente lamentável. O «pecado» de Hergé passa muito mais por aí do que pelas discussões entre direita e esquerda. Mas o que fica é a angústia, o profundo mal-estar, o ambiente de pesadelo que torna este álbum um dos mais inesquecíveis, por imagens como a da aranha, as maçãs gigantes, etc. A sua importância histórica viria, porém, do facto de ser o primeiro que, depois das tiras no jornal, foi directamente publicado em álbum com as consagradas 62 páginas.

E embora só alguns tenham autoridade moral para denunciar, e embora «Le Soir (volé)» não fosse dos mais agressivamente germanófilos, e embora seja legítimo procurar o ganha-pão, e embora se tivesse verificado o apelo ao regresso feito pelo rei que ele tanto venerava, Hergé privilegiou, de facto, a consolidação da sua carreira, a segurança, mesmo que isso implicasse um determinado grau de colaboracionismo. Não activo nem convicto, mas pragmático. Hergé, que não é um extremista, procurou sempre conciliar o que para muitos é inconciliável: uma distância crítica sobre as ideologias e os fanatismos a par de amizades (que nunca abandonará) predominantemente de direita e mesmo de extrema direita, algumas das quais se revelarão claramente pró-alemãs. Mas se ele, não renegando a família ideológica e sociológica da direita, não deu esse passo, será honesto afirmar que só não o fez por timidez ou que o fez «em espírito»?

A relação com o rexismo (fascismo belga) é disso exemplar. Hergé conheceu o futuro líder do movimento, Léon Degrelle, ainda nos anos 20, no «XXe Siècle», de quem ficou amigo, chegando a fazer ilustrações para a editora Rex. Mas quando o movimento se radicaliza, Hergé afasta-se. Quando é convidado a passar para o jornal do movimento, recusa. Segundo testemunho da própria Germaine, a primeira mulher, que fora secretária de Abbé Wallez, das raras vezes que Hergé a proibiu de algo foi de ir a um comício rexista.

É ainda em plena Guerra que Hergé vai não só adaptar às 62 páginas a cores a maior parte dos álbuns iniciais (com a decisiva colaboração de Jacobs), mas, em dois dípticos seguidos, solidificar a série no seu conjunto. Daí que eu as interligue já com as aventuras que se seguirão no pós-Guerra, apesar das peripécias que rodearão a passagem de Les 7 Boules de Cristal para Le Temple du Soleil. É que esta vai ser uma das histórias inaugurais de uma revista que marcará profundamente a BD belga e europeia - «Tintin» -, cujo responsável artístico inicial será precisamente Hergé. Ora para isso ser possível, para Hergé ter o atestado de civismo apesar da colaboração no «Le Soir (volé)», é porque foi defendido por resistentes como Raymond Leblanc, o impulsionador da nova revista, e por figuras morais como Jacobs. E por muito que admirassem Tintin, tê-lo-iam feito se Hergé fosse nazi/fascista?

Le Secret de La Licorne e Le Trésor de Rackham le Rouge. É não só a aventura em estado puro - e a história de maior sucesso do conjunto - mas a busca das raízes, seja nos antepassados seja no encontro de um espaço que acolherá toda a «família» - que, no essencial, agora se completa com a entrada fulgurante de Tournesol, sem esquecer a reabilitação de Nestor. E são incomparáveis as cenas em que o Capitão se identifica com o Cavaleiro de Hadoque. Les 7 Boules de Cristal e Le Temple du Soleil renviam para o fascínio das civilizações pré-colombianas como símbolo já não das nossas raízes pessoais, mas civilizacionais, a nostalgia de um mundo perdido, esotérico e honrado. E, mais uma vez, a amizade.

Au Pays de l'Or Noir é o mundo do petróleo e do conflito israelo-árabe, mas também o deserto, a cultura e os desentendimentos árabes, é o «sheik» de quem ficará amigo, mas é uma história sobre a qual pesam as vicissitudes por que passou, reforçadas pelas sucessivas alterações descontextualizadoras; é também a intervenção inenarrável de Oliveira da Figueira, e é o «gag» genial da inclusão do Capitão Haddock, que, na primeira versão incompleta, ainda não existia... Objectif Lune e On a Marché sur la Lune é o culminar verniano e brilhante de uma das muitas preocupações e atenções de Hergé que perpassam por toda a obra - a ciência, documentada antevisão de uma das sagas mais simbólicas da fé do Homem nele próprio, desmistificada pelo humor e pela poesia da imponderabilidade.

L'Affaire Tournesol mergulha-nos de novo nas angustiantes tensões do nosso tempo, em ambiente de Guerra Fria, e homenageia a Suíça que muitas vezes foi a tranquilidade acolhedora para as crises existenciais de Hergé. Coke en Stock são ainda os conflitos político-económicos do nosso tempo, os problemas do Médio-Oriente, os interesses inconfessáveis, a denúncia (que continua actual 30 anos depois!) da permanência da escravatura, é a síntese de toda a série, e é a descoberta fascinante de Petra mesmo antes de a saber nomear.

Tintin au Tibet, realizado na altura de um período difícil em que Hergé se separaria de Germaine para ir viver com Fanny, é o cume da série. Não no sentido de ser a única obra-prima, pois há mais, mas porque o simbolismo da montanha corporiza de facto algumas das linhas de força de toda a obra, na amizade e na busca de uma espiritualidade que só a pureza oriental e em particular budista/tibetana pode transmitir. Realizado premonitoriamente no mesmo ano da ocupação chinesa, o espantoso rigor etnográfico e documental transmite um acrescido fascínio e convida à solidariedade.

Vol 714 pour Sydney, publicado quatro anos depois da Castafiore, em 66, ainda tenta abrir outras pistas de reflexão sobre alienações do nosso tempo, ainda traz novas personagens, mas a desaceleração criativa é evidente, e sobretudo o desenho e o humor sofrem contaminações empobrecedoras. Ainda é um álbum com o seu encanto, mas já é de algum modo exógeno à obra.

Tintin et les Picaros, penosamente concluído quase uma década depois, tem interesse pela confirmação do cepticismo sobre os poderes políticos, reclamem-se eles de que ideologia for, mas apesar do potencial fascínio da revisitação de espaços outrora míticos, é já a falta de fôlego que impera. Nada adianta à série - não valeu a pena tanto esforço para substituir as calças à golfe por uns banais jeans. Mais prometedora, porém, era a história que ficou inacabada, Tintin et l'Alph-Art, passada nos meios da arte e dos falsários, tanto mais que Hergé era um grande apreciador e coleccionador de pintura contemporânea.

É tempo, pois, de deixar Hergé em paz, com os seus segredos e os seus valores, as suas fidelidades e infidelidades, as suas cumplicidades e as suas contradições, a sua solidão e a sua genialidade consciente. E retomarmos, entusiasmadamente e de coração puro, a leitura da obra, profundamente enraizada no seu e nosso tempo, progressivamente «descronologizada», perenemente intemporal.

Texto de JOÃO P. BOLÉO / Expresso, 16/01/1999

Há uma clara intenção de cruzada católica anticomunista e missionária. Daí que Hergé se veja constrangido a enviar o seu herói ao Congo Belga antes de o levar aos Estados Unidos


quinta-feira, 2 de dezembro de 1999

Edição nacional da primeira história do herói de Hergé é lançada hoje: “Tintim no País dos Sovietes” em português

Desta vez é mesmo certo: “Tintim no País dos Sovietes” tem a sua primeira edição completa em língua portuguesa e em álbum, depois de uma edição parcial na revista “Tintim” no princípio da década de 80.
A aventura que há quase 71 anos lançou o jovem repórter pelos caminhos da aventura e da fama é lançada hoje pela Verbo em Lisboa.
No ano em que apagou as velas do seu 70º aniversário, a primeira aventura do jovem repórter criado por Hergé, “Tintim no País dos Sovietes”, é lançada em Portugal. A iniciativa é do editor português da série, a Verbo, que apresenta o álbum esta tarde na Livraria Bertrand das Amoreiras, em Lisboa.
A partir de hoje, constitui o 23º título da colecção a chegar às mãos dos leitores portugueses, encabeçando a lista integral das aventuras da série. Ao contrário de outros episódios publicados muito cedo pela imprensa portuguesa, quase em simultâneo com o respectivo aparecimento europeu, este “Tintim no País dos Sovietes” tem uma história menos feliz para contar. Só no início da década de 70 — muito provavelmente em 1972 — é que o segundo número do fanzine “Saga”, editado pelo ABC Cineclube, divulga 11 pranchas da banda desenhada, numa edição amadora de pouca qualidade. Uma década depois, foi a vez da edição portuguesa da revista “Tintim” tentar publicar a mesma história. As primeiras pranchas surgem no número 12 (15º ano), de 31 de Julho de 1982, sem merecerem qualquer chamada de capa. A aventura interrompe a sua publicação com a da própria revista alguns meses mais tarde, naquele que foi o seu último número, com data de 2 de Outubro.
O álbum que agora sai para os escaparates apresenta a história original, a preto e branco e com o grafismo “tosco” em que os admiradores menos informados terão alguma dificuldade em reconhecer os tradicionais personagens de Hergé. Isto acontece porque esta foi a única aventura do personagem que o seu autor nunca quis submeter a qualquer intervenção narrativa ou estética. Mais ainda, durante décadas recusou-se a aceitar a sua comercialização normal por razões que se prendem, em grande parte, com a circunstância de a história transportar dentro de si uma poderosa carga político-ideológica que a transformou, para todos os efeitos, num panfleto anti-comunista. Esta “clandestinidade” só foi contrariada por umas quantas edições piratas que foram surgindo, por essa Europa fora, à revelia do autor e do seu editor de sempre, a Casterman. Hergé acabaria por autorizar, em 1973, a republicação do álbum (reeditado de novo, em “fac-símile”, no ano de 1981 com uma tiragem de 100 mil exemplares), posto de novo à venda em Janeiro passado para assinalar os 70 anos do aparecimento de Tintim. É a este “currículo” atribulado que a história aos quadradinhos deve a aura lendária e mítica que se lhe colou para sempre.

Viragem em 1928
Na “tentativa biográfica” publicada no número especial da revista “(À Suivre)” evocativa da morte de Hergé, em Abril de 1983, Pierre Sterckx conta que a viragem decisiva na obra do artista ocorre em 1928. Hergé descobre através de jornais mexicanos enviados para Bruxelas pelo correspondente do “XXème Siècle” (editado na Bélgica) a melhor banda desenhada da época — Krazy Kat, Bringing up Father, The Katzenjammer Kids. Ficou aqui selado o próximo passo do autor: uma verdadeira BD e não mais um mero texto suportado por imagens.
Nos primeiros dias de Janeiro de 1929 o “Petit Vingtième”, suplemento juvenil daquele jornal, termina a publicação de “L’Extraordinaire Aventure de Flup, Nénesse, Poussette et Cochonnet”. E é na mesma edição que surge um discreto desenho com uma extensa legenda anunciando a chegada dos novos personagens — Tintim e Milou.
Em fundo, as cúpulas russas. Em primeiro plano, um jovem de perfil, com uma cabeça redonda, nariz saliente, grandes sobrancelhas e cabelo rebelde caído para a testa. Calça sapatos enormes e usa um fato de golfe aos quadrados. Na legenda: “Acompanhem, a partir da próxima quinta-feira, as extraordinárias aventuras de Tintim, repórter, e do seu cão, Milou, ao País dos Sovietes. A foto acima, uma das últimas que nos foram enviadas, mostra-os a passear pelas ruas de Moscovo sob o olhar desconfiado de um camarada-cidadão-polícia-bolchevista”.
Hergé entrega duas pranchas por semana, articulando “gags” e situações durante 69 episódios semanais, sem saber verdadeiramente até onde a narrativa o levará e ao seu herói. Até 9 de Maio de 1930 o repórter belga vai mostrar toda a “verdade” sobre o “milagre soviético”. Tintim deixa atrás de si um rasto de atentados, prisões e perseguições antes de entrar em Moscovo. Observa depois a situação nos campos. Percorre as estepes e regressa de avião a Berlim. Com a recompensa de um criminoso que entrega à justiça, o herói compra um carro desportivo para regressar a Moscovo. Acaba metido num comboio que se dirige a Bruxelas, onde é recebido em apoteose. Malfeitorias do bolchevismo
A escolha da Rússia soviética como local da aventura é do padre Wallez, director do “Vingtième Siècle”, um jornal católico e visceralmente anti-comunista. O propósito é “pôr os jovens leitores ao corrente das malfeitorias do bolchevismo”, como sublinha Benoît Peeters em “Le Monde d’ Hergé”. Hergé aceita.
Sem a operação de cosmética a que outras aventuras foram submetidas, “Tintim no País dos Sovietes” é uma banda desenhada datada. Mas se o leitor conseguir esquecer por um momento o desenho ingénuo e “primitivo” e o enredo vacilante, talvez consiga vislumbrar o primeiro acto de invenção da BD segundo Hergé, para usar uma expressão feliz de Peeters. Os balões e outros signos da moderna BD europeia nascem um pouco aqui. E a própria história é um belíssimo exemplo da metamorfose e crescimento que o herói e o seu criador vão sofrendo ao longo da narrativa. O estilo e a personalidade gráfica de Hergé afirmam-se quadradinho a quadradinho, prancha a prancha, ao ponto de já não haver muito do Tintim que partira de Bruxelas no atrevido personagem que termina a sua epopeia, na mesma cidade, 138 pranchas depois.
© 1999 Público

sexta-feira, 17 de setembro de 1999

Uma aventura de Tintim

Acaba de se comemorar em quase todo o mundo o septuagésimo aniversário de Tintim, o famoso repórter, detective e herói da banda desenhada. Dos 7 aos 77, os velhos, os novos e os novíssimos seguidores das peripécias do imberbe e louro moço belga têm relembrado o trajecto dessa figura de um certo imaginário juvenil. Personagens inconfundíveis como o colérico capitão Archibald Haddock, Bianca Castafiore, a divina, a parelha eternamente redundante Dupond & Dupont, o distraído professor Tournesol, o inteligente cão Milú, ou ainda Oliveira de Figueira, comerciante expedito da praça de Lisboa - para além, claro, de Hergé, o criador desta tropa fandanga - aparecem por todo o lado a serem lembrados como verdadeiros notáveis. E são-no de facto, já que intervieram no processo de conhecimento do mundo de gerações inteiras. Mas nas referências que lhes são feitas recordam-se principalmente as aventuras rocambolescas do grupo. Nelas, e partindo sempre de eventos de um presumível interesse jornalístico, tudo evolui, necessária e inevitavelmente, para casos policiais que é preciso resolver. E que, claro, acabam resolvidos.

Aquilo que entretanto ninguém disse ou escreveu, talvez por uma inexplicável distracção colectiva, é que Tintim saiu das páginas dos álbuns e das revistas, ganhou vida própria. Mesmo após a morte de Hergé continuou a viajar, à procura de situações interessantes para contar aos seus leitores, e, fatalmente, envolvendo-se sempre em toda a sorte de factos passados nos países que visita. Para ser franco, posso até revelar que esteve há poucas semanas aqui em Portugal, por incumbência directa do chefe de redacção do seu jornal de Bruxelas. O objectivo era recolher informações sobre a situação criada com as últimas iniciativas do governo português em matéria de política ambiental e com as fortes reacções públicas que estas têm provocado.

Nessa altura, e por um mero acaso, encontrei-o. Com a sua gabardina clara e, tal como seria de esperar, com as suas inconfundíveis calças de golfe. Como tínhamos em tempos sido apresentados e ele tem boa memória, reconheceu-me imediatamente. Depois de um cordial abraço e de algumas daquelas generalidades próprias de duas pessoas que se reencontram depois de longos anos sem se verem, começou a contar-me aquilo que realmente andava por cá a fazer.

"Sabes, há já muito tempo que não vinha a este teu país e, de facto, isto está tudo muito mudado". Acenei que sim com a cabeça, lembrando-me que a última estadia de Tintim em terras lusitanas tinha sido ainda antes de 1974, e ia começar a dizer qualquer coisa a propósito. Mas ele nem sequer me deixou abrir a boca: "Repara que em dois dias estive em sítios diferentes, nos quais muitas pessoas contestavam medidas do governo, mas pareceu-me que havia uma certa desorganização. Estive numa reunião muito ordeira e bem composta, onde alguns cidadãos debateram empenhadamente o assunto. Depois estive numa localidade afectada pelas decisões do governo, e, no meio de grande confusão e de intervenções emocionais, nem sequer percebi bem o que é que as pessoas queriam ou onde pensavam chegar. Ah, e estive também numa cidade onde o protesto foi em forma de festival de música rap. Muito bonito, de facto, mas também não entendi lá muito bem o que é que dali poderia sair."

Comecei a achar que aquele Tintim do qual guardava uma grata recordação: bom moço, altruísta, um sujeito bem-disposto e afirmativo, se tinha tornado numa pessoa azeda, pouco tolerante, maledicente. Mas ainda assim achei que lhe deveria perguntar o que é que, na sua opinião, se deveria fazer numa situação deste género. Nem precisei porém de dizer fosse o que fosse, porque ele como que adivinhou os meus pensamentos. "Olha, parece-me que o vosso governo agiu bastante ao sabor de conveniências, mas também acho que os protestos têm sido um bocado descoordenados, e mais do lado do contra do que por alguma coisa. Fiquei com a impressão de que, para a maioria das pessoas que vi ou com quem falei, as questões do ambiente só lhe diz respeito quando os maus cheiros chegam mesmo ao quintal." Estava finalmente a começar a perceber a posição dele, e o resto da conversa confirmou a minha suposição. Tintim, com a sua sabedoria de adolescente de setenta anos e larga experiência de trotamundos encartado, garantiu-me que, independentemente das razões, os protestos dos cidadãos só perturbam realmente os governos e os forçam a alterar decisões quando aparecem organizados e se mostram intransigentes, quando sugerem alternativas e apontam em alguma precisa direcção.

"És capaz de ter razão, Tintim", disse-lhe, "mas se mesmo assim isso não for possível, o que é que achas que pode fazer-se para que os governos reparem melhor nas pessoas e nas coisas que as preocupam, que as afectam?". "Olha, eu muitas vezes achei aquele ali um exagerado e às vezes um valente chato, mas há momentos em que acabo por lhe dar razão". Enquanto dizia isto, indicava com a cabeça um grupo de pessoas que, alguns metros atrás, discutiam em alta voz. A todos eles se sobrepunha, falando vários decibéis acima dos restantes e usando os seus impropérios inconfundíveis, a figura barbuda de Haddock, o capitão de navios aposentado que é o inseparável companheiro de aventuras de Tintim. "Nessas alturas, realmente, o melhor é falar o mais alto possível. É protestar bem alto. É mostrar-se que se está por tudo. Para ver se alguém ouve." Senão - isto ele não me disse mas eu facilmente deduzi - tudo permanece na paz dos anjos. E, tal como no céu, a gerência passa a fazer só aquilo que muito bem lhe apetece. Ou aquilo que alguém lhe dita ao ouvido. 

[Jan.99]

Rui Bebiano, Non!, 07/02/1999 

Publicado também no Jornal de Coimbra

https://arquivo.pt/wayback/19990430063145/http://www.interacesso.pt/non/rb_004.html

quarta-feira, 28 de abril de 1999

O 25 de Abril na BD


"O 25 de Abril na BD", na Bedeteca de Lisboa

Quando Otelo foi um Lucky Luke

Patente até meados de Setembro na Bedeteca de Lisboa, "O 25 de abril na BD", exposição que depois de ter sido inaugurada nas antigas instalações da Manutenção Militar, em Coimbra, veio para Lisboa, onde foi um dos núcleos para a 2ª edição do Salão Lisboa de ilustração e BD.

Traçando o percurso, sobretudo gráfico, do que foi a BD nos tempos da revolução dos cravos, esta mostra foi co-organizada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra - a partir do convite de Boaventura Sousa Santos - e pela Bedeteca de Lisboa, para coincidir com as comemorações dos 25 anos do 25 de Abril.

Reunindo, em oito núcleos distintos, os traços essenciais das BD's daquele período, é no entanto mais abrangente, incluindo os tempos de ditadura e mostrando trabalhos visados pela censura política. Essa componente documental contou com a consulta a parte do espólio do Centro de Documentação 25 de Abril, assim como o recurso a colecções privadas. E quer se trate de álbuns, revistas, jornais, ou panfletos sindicais, houve uma aposta na divulgação, Em paralelo - vertente inédita - dá a conhecer a visão de 18 autores nacionais, decorrido um quarto de século sobre a revolução - numa sala contígua à exposição principal, estão trabalhos de Filipe Abranches, Rui Lacas, Relvas, Pedro Massano, Luís Differ, entre outros

"Foi uma união de vontades que permitiu cimentar um projecto destes em tão pouco tempo", salienta João Miguel Lameiras, que juntamente com João Ramalho Santos e João Paiva Boléo, foi um dos comissários da exposição. A partir da recolha a que procederam, surgiram visões únicas, obras inclassificáveis.

Exemplo de como a BD pode ser sinal dos tempos é a adaptação que Carlos Barradas fez de "O Capital", a obra de Karl Marx. Era a BD ao serviço do povo, para o povo. Também Mao Zedong foi personagem de BD, exaltando as massas ao trabalho. Às necessidades reais de propaganda política juntavam-se famosas e, na altura, não menos polémicas apropriações, como as trucagens que o cartoonista Manuel Vieira fez para a "Flama" por volta de 1975, de heróis, entre outros, da revista "Tintin", e onde se vê Otelo disfarçado de Lucky Luke ou Rosa Coutinho de melena e com os traços de Tintin. Hergé e a editora Casterman, ao tomarem conhecimento, terão obrigado a revista a um pedido de desculpas.

Para João Paiva Boléo, a obra que porventura melhor retrata os tempos de mudança de regime é "O País dos Cagados" de Artur Correia. "É a mais completa, até pela forma como goza com Américo Tomás; como a censura é lembrada, a alegria da libertação. É ainda uma visão crítica, quando dá atenção aos jogos de força", afirma. Concluindo que "era o resultado de uma luta que começa em 64, e que dura mais de dez anos; de uma luta clandestina"

Nuno Franco / Público, 27/04/1999

O 25 de Abril na BD

LISBOA Bedeteca, de terça a sábado, das 9h às 19h

domingo, 31 de janeiro de 1999

Desculpe, mas Hergé era antifascista

Assombra-me, embora não me indigne, a facilidade com que se acusa o criador de Tintim de simpatizante nazi, ou fascista, ou seja lá o que quiserem. Tudo isso me parece uma imensa baralhada própria, se calhar, do sistema mental do homem pós-guttenberguiano em que nos andamos a transformar. Devo lembrar aqui, em nome da justiça e da memória de Hergé, que durante a ocupação da Bélgica pelos nazis, Tintim foi vítima da censura. Foram proibidos os álbuns “Tintim na América”, “A ilha negra”, “O lótus azul” e interrompida a publicação de “No país do ouro negro”, já que se censurava tudo o que pudesse funcionar como propaganda à Inglaterra e aos Estados Unidos, onde se passam os dois primeiros álbuns citados. Quanto a “O lótus azul”, aí tratava-se mesmo de um libelo anti-imperialista e anti-japonês... Era natural que os nazis o censurassem! De facto, nada mais antifascista do que essa obra maravilhosa, desenhada em admirável estilo chinês tradicional, plena de sentimentos orientais pungentes, extremamente bem compreendidos e transmitidos na forma límpida como (quase) só eles, orientais, conseguem... Quanto às já triviais acusações de racismo que lhe fazem, parece-me importante não esquecer que em 1930 aquilo que hoje é tido por piadas racistas era, então, visto de forma tão inocente como é para nós contar anedotas sobre alentejanos. Talvez Tintim não seja propriamente o símbolo da esquerda política, as suas aventuras surgiram num jornal católico, anti-comunista e até demagógico... Tintim é certamente um bom súbdito, leal, quer seja do rei Otokar, do marajá de Rajapothalah, do emir Ben Kalish Ezab ou até do general Alcazar. Mas como esquecer a sempre presente sátira aos interesses dos grandes capitalistas, das multinacionais que provocam uma guerra na América Latina oara vender armas aos dois países beligerantes? Então porquê toda esta confusão? Quem deitou o grão de areia na engrenagem? Bem! Foi mais que noticiado que um amigo de infância de Hergé veio a ser, um dia, um importante nazi belga que, aliás, se exilou em Espanha no fim da guerra, se não me engano. É também verdade que o tal jornal católico onde saíam as aventuras de Tintim, colaborou com os nazis. Mas iria Hergé sacrificar o seu emprego por causa disso? Talvez, também, o autor de Tintim não fosse o género de pessoa que se zangasse com os amigos por causa da política... Que sabemos sobre isso? Que nos diz ele a esse respeito? Na verdade não é ele que nos responde a essa questão, mas sim o capitão Hadock quando aparece no fim de “No país do ouro negro”, o tal álbum que teve que ser interrompido em 1939 por ser passado na Palestina, a esse tempo território britânico, e onde se aludia já ao conflito israelo-árabe... É o capitão que diz: “É uma coisa ao mesmo tempo muito simples... pfff... e muito complicada... pff...” E a história acaba logo ali com um charuto explosivo armadilhado pelo jovem Abdalah. Quem consegue explicar porque razão aparece o capitão Hadock, sem fazer grande sentido, no fim de um álbum começado antes da guerra, em clima de ameaça de guerra e onde o mau é o Dr. Muller, um alemão comprometido em acções de sabotagem contra as companhias petrolíferas britânicas, se o capitão só conhece Tintim em “O caranguejo das tenazes de ouro”, esse sim, um álbum do tempo do governo de Vichy, passado no Saara francês? Eis pois um rico quebra-cabeças só para Tintimófilos! Imaginem, pois, a dor de cabeça de Hergé por lhe censurarem os álbuns... E o mais engraçado foi “O ceptro de Otokar”, onde havia uma referência implícita à política expansionista de Hitler e de Mussolini (através do anagrama “Mustler”, nome do fictício ditador da Bordúria, país igualmente fictício da Europa Central que planeia invadir um reino balcânico), passar despercebido aos censores!!! Tintim nazi? Não me façam rir!

 © 1999 Público

sábado, 10 de outubro de 1998

Amigo de Hergé que inspirou um personagem de Tintim morreu em Paris: A segunda morte de Tchang

Inspirou um personagem que fez chorar Tintim e esteve no centro de uma aventura que levou o herói de Hergé até ao Tibete. Chamava-se Tchang Tchong-Jen, foi um grande amigo do artista belga e morreu anteontem nos arredores de Paris, com 93 anos.


Há um momento na história “O Lótus Azul” em que Tintim chora, deixando cair a máscara do herói sem fraquezas nem emoções. Acontece depois de o herói criado por Hergé ter salvo das águas agitadas do rio Yang-Tsé um pequeno chinês órfão que pergunta por que razão ele lhe salvou a vida.
A China vivia tempos difíceis, literalmente dilacerada pela cupidez e ambição das potências estrangeiras que lhe sangram as riquezas e aniquilam as populações. Tintim chega ao país para descobrir o que se esconde por trás de uma enigmática mensagem que captou numa escuta de rádio. Cai em cheio num negócio de tráfico de ópio que quase lhe custa a vida. E Tchang tem oportunidade de, por mais de uma vez, saldar a sua dívida para com o herói, livrando-o de situações muito perigosas. Ambos colaboram no desmantelamento da rede de traficantes e Tintim parte, deixando atrás de um amigo para toda a vida.
Voltarão a encontrar-se anos mais tarde, em “Tintim no Tibete”. O herói tem um sonho premonitório, no qual vê o seu amigo numa situação de perigo de vida. No dia seguinte, lê nos jornais que o avião em que o seu amigo viajava se despenhou nas montanhas nevadas dos Himalaias. Sem registar sobreviventes. Tintim não se conforma e parte para o Tibete, apenas com o peso da sua convicção interior, para o salvar. E consegue-o, claro.

Conselheiro e amigo de Hergé
Há situações em que a ficção segue as pegadas da realidade. A estreita amizade estabelecida entre Tintim e Tchang é uma delas, reproduzindo de forma romanceada a história da cumplicidade entre Hergé e... Tchang. Escultor e pintor, este último conhece o autor de banda desenhada em Bruxelas no ano de 1934. Tchang tem 27 anos e frequenta há três a Academia Real das Belas Artes. Aguarelista de talentos reconhecidos no seu país, vai virar-se para a escultura, arte em que o seu pai já fizera algum nome. O autor de “Os Cigarros do Faraó” já tinha em mente há algum tempo levar o seu personagem até ao Extremo Oriente. Um certo padre Gosset, capelão dos estudantes chineses que frequentam a Universidade de Lovaina, sugere a Hergé que arranje um conselheiro em assuntos orientais. Convinha evitar os estereótipos racistas que marcaram de forma indelével a anterior aventura da série, “Tintim no Congo”, acrescenta. Esse conselheiro é Tchang, que contribui para fazer despontar em Hergé uma preocupação com a pesquisa documental que caracterizará as aventuras posteriores de Tintim. Fá-lo comungar das suas próprias recordações e participa mesmo no desenho traçando os ideogramas chineses inscritos nos cenários de “O Lótus Azul”. Hergé retribui com a figura do pequeno chinês, salvo “in extremis” das águas barrentas do Yang-Tsé, que considera Tintim o seu único verdadeiro amigo.
Em 1935 Tchang regressa à China, sendo apanhado no turbilhão da guerra sino-japonesa que antecedeu a II Grande Guerra Mundial. Sofre na pele e no coração estes dois conflitos, a tomada do poder pelos comunistas de Mao Tsé-Tung em 1949 e a Revolução Cultural nos anos 60. Quarenta anos depois é reabilitado e nomeado director da Academia de Belas Artes de Xangai.
Durante esse tempo, Hergé nunca soube nada do seu amigo. “Tintim no Tibete”, publicado em 1958-59 na revista “Tintim”, é tanto o fruto de uma profunda crise pessoal — Hergé tinha-se separado da sua primeira mulher e casado com Fanny Vlamynck —, como uma sentida homenagem ao personagem desaparecido na voragem do tempo e da história.
Só nos finais dos anos 70 é que Hergé vai ter de novo notícias de Tchang. O encontro dos dois em Bruxelas, no ano de 1981, é um momento de grande emoção. Dois anos depois, morria Hergé.
Em 1984 Tchang instala-se definitivamente em França com a filha, acolhido com todas as honras pelo então ministro da Cultura, Jack Lang. Tchang morreu na quinta-feira à noite na Casa dos Artistas de Nogent-sur-Marne, nos arredores de Paris. Tinha 93 anos. © 1998 Público/Carlos Pessoa

sexta-feira, 28 de agosto de 1998

Tintin no país de Hergé

Tintim é um dos símbolos do bem, mas o seu pai, Hergé, não tinha apenas talento e bonomia. Georges Remi foi um homem atormentado pelo mal. Ainda bem, porque dessa complexidade agora revelada por duas importantes biografias nasceu uma obra extraordinária. Dois meses antes de morrer, em 1983, aos 76 anos, Georges Prosper Remi Remi, um dos mais famosos autores de bd de sempre, confessava finalmente: "em Tintim pus toda a minha vida".


Herói e criador tinham mais de meio século de convivência e aquele que o havia salvo inúmeras vezes tinha agora o peso esmagador de um fenómeno. Em todo o mundo venderam-se já mais de 170 milhões de álbuns de Hergé. De Gaulle chegou a afirmar em público que o seu único rival era Tintim. Warhol dizia-se inspirado na "linha clara". Michel Serres tinha-lhe aberto as portas da Sorbonne com um ensaio sobre As Jóias de Castafiore. O pequeno planeta 1683 foi baptizado com o nome de Hergé e uma doença com o do professor Girassol (Tournesol). Spielberg insistia em passar a película o célebre repórter do Petit Vingtième.
Dificilmente poderia ser mais apropriado o título do suplemento infantil do jornal, católico e de direita, em cujas páginas, a 4 de Janeiro de 1929, e por sugestão de um omnipresente padre Norbert Wallez, um jovem belga francófono desenhava a viagem de um repórter e do seu cão ao País dos Sovietes. O século não seria o mesmo sem aquelas duas páginas semanais de um "muito mau desenho, muito, muito, muito mau", nas palavras do seu autor. Certo é que, completada a viagem, uma Bruxelas em delírio recebia um escuteiro disfarçado de Tintim. Nascia o fenómeno, mas a obra vinha de par. Quase por acaso. Para H. Van Opstal, autor de Tracé RG - Le Phénomène Hergé, o começo data, de facto, de Dezembro de 28 com uma tira de um "petit enfant sage", num outro jornal: Le Sifflet. Segundo Pierre Assouline, em Hergé, o desenho de imprensa não era a escolha de Georges, mais interessado em grafismo, disciplina que praticou, e tão fascinado pela pintura que para ela guardou o seu nome. Apesar de só tardiamente, já no pós-guerra e na sequência de profundas depressões, ter tentado pintar, para logo desistir tornando-se coleccionador contemplativo de autores como Miró ou Vasarely. Ainda assim, desde muito cedo Hergé se preocupou em preservar a integridade do seu trabalho e, o que é mais inusitado, em tratar de promover e divulgar... uma obra. As suas características são por demais conhecidas: narração em suspense de uma história onde o exotismo serve uma enorme atenção ao presente, por vezes antecipando o futuro, tendo o humor como mecanismo e horizonte um enorme esforço de clareza e extrema lisibilidade. Era obsessão, este medo de não ser compreendido. A moral nem era, afinal, tão didáctica quanto isso: tratava-se de transmitir aos jovens um certo espírito cavalheiresco, o gosto da acção e o sentido de humor. Eram valores de um escutismo bem comportado, mas individualista, atento ao mundo, mas perconceituoso, cheio de generosidade ingénua, e misógina virilidade. Acabou por se tornar ideologia. Adoptando a divisa "toda a convicção é uma prisão", Hergé, mestre da "linha clara" atravessará o seu presente carregando os seus lados obscuros e escondendo a todo o custo temas-tabu como o desconhecimento da identidade do seu avô paterno, provavelmente um membro da alta aristocracia belga; ou os últimos dias da sua mãe vividos num hospício; a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as suas longas e profundas depressões na fase final da vida, ou o período do colaboracionismo com a imprensa pró-alemã durante a Segunda Grande Guerra. De todos os tabus, talvez seja este, afinal, o mais discutido. Hergé, como bem o revela Assouline, é um produto do seu meio temperado com algum oportunismo. Sofre e procura continuamente a influência de figuras tutelares. Wallez, o padre reacionário e truculento, que se achou co-autor de Tintim, é a figura tutelar. Mas há outras, como Tchang, que lhe mudará a vida ao apresentar-lhe o Oriente espiritual. E um sem número de outros amigos, entre escritores e actores políticos tão perigosos como Léon Dégrelle, fundador do rexismo. (Este individualista nunca se deu bem sozinho e daí também o ter, desde cedo, composto uma equipa capaz de com ele recompôr e rever, também ideologicamente a maior parte dos álbuns). Só que Hergé nunca foi um activista. Se revela racismo com judeus e negros é porque se respira esse ar dos tempos, mas é igualmente capaz de defender os peles vermelhas ou um argumentista argentino ameaçado pela ditadura. Desde que esteja em questão mais o indíviduo do que um povo. Hergé nunca deu um passo ideológico. Foi amigo de muitos que os deram polemica e notoriamente, e manteve essa amizade mesmo no pós-guerra quando não era politicamente correcto sê-lo e só a criação, com ex-resistentes, da revista Tintim o salvou de maiores misérias do que a moral de ver parte do seu país tratá-lo como traidor. "Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintim", diz Assouline. "A começar pelo principal: são ambos produtos típicos das classes médias. Mas o que os separa é também notável. O repórter mete-se em tudo para o que não é chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia dos gatos." O quadro e as pinceladas Tanto se escreveu e continua a escrever sobre Hergé e Tintim que não é fácil reunir numa mesma obra interesse e novidade. Michel Serres dedicou-lhe profundos e delirantes ensaios filosóficos. Benoît Peeters tem no seu curriculum, além de vários álbuns da série As Cidades Obscuras, a qualidade de exegeta hergiano, com vários livros publicados e uma tese sobre o assunto, orientada por Roland Barthes. Autores houve que psicanalisaram Tintim, outros que encontraram nas suas aventuras matéria para análises sobre o álcool. Romances se assinaram a partir deste universo e dicionários há sobre aspectos de companheiros seus, como as asneiras do capitão Haddock. Biografias do autor, entrevistas e análises à obra, essas são incontáveis, mas ainda que não sejam hagiografias foram todas vigiadas. E autorizadas. É mais uma razão para considerar como importantes tanto Hergé, de Pierre Assouline, Folio, 1998 como Tracé RG - Le Phénomène Hergé, de H. Van Opstal, Lefrancq, 1998. Não que estes autores tenham escrito os seus livros ignorando guardiões do templo como a Fondation Hergé, mas porque, pelo contrário, tiveram acesso a tudo sem a vigilância de Georges Remi, que quis desenhar a vida de Hergé na mesma "linha clara" da sua obra, o resultado de ambos os trabalhos é tão fascinante quanto revelador. E mais: completam-se como peças de um mesmo puzzle. Se Assouline pôs no seu "quadro" um cuidado literário (o que já havia feito para o outro belga Simenon), Opstal recolhe com cuidado estético ímpar um número impressionante das "pinceladas" que fazem uma vida e uma obra. Tracé HG tem uma estrutura (curiosa e nem sempre fácil) de duas partes, uma primeira com cem parágrafos que traçam cronologicamente o percurso biobliográfico de Georges Remi, e uma segunda, de 62 parágrafos, que como que amplia o período 1907-30, aquele que era menos conhecido. Em paralelo, corre talvez o mais importante percurso: a primeira tira, influências, obra gráfica, assinaturas, fotografias de amigos e família, certidões de nascimento, mapas e gráficos nada escapa à verdadeira mania iconográfica de Opstal. O afã de Assouline é mais clássico, mas não menos interessante. A partir, sobretudo, dos arquivos de Hergé e de inúmeras entrevistas procura compôr, com notável sensibilidade, um homem para além do mito: generoso e vaidoso, mais oportunista que colaboracionista, tão dilacerado quanto obstinado, um individualista sempre sob influência. Dando, para isso, particular atenção aos seus períodos negros durante a Ocupação nazi da Bélgica e as sucessivas depressões no pós-guerra e no final da sua vida. Procura mais do que justificar ou explicar, entender e fazer entender convições ideológicas e percurso espiritual, sem esquecer uma evolução artística riquíssima, em técnicas, conteúdo e circunstâncias. Qualquer destes livros dizem ainda muito sobre o século XX, sobre a Europa Central em períodos também eles centrais, sobre, é claro, uma arte que é do século - a bd, mas o que resulta mais fascinante da sua leitura é darem-nos a ver, nota por nota, a composição de uma gigantesca sinfonia: a da criação d'As Aventuras de Tintim.

 Hergé Pierre Assouline, Folio, 1998 
 Tracé RG - Le Phénomène Hergé H. Van Opstal, Lefrancq, 1998

© 1998 O Independente/João Paulo Cotrim

sábado, 24 de janeiro de 1998

Um foguetão para o ano 2001

A BD continua viva e a vender-se bem. Mas nem toda: Tintim perdeu desde 1993, ano em que foram comprados três milhões de álbuns, um terço das suas vendas. Para relançar a série, a Fundação Hergé anunciou a construção, em Angoulême, de uma réplica do foguetão que levou Tintim à Lua. Ontem foram também divulgados os vencedores dos prémios em disputa.
Imaginem o cenário: um foguetão com 53 metros de altura, com a respectiva rampa de lançamento, instalado nas proximidades do Centro Nacional da Banda Desenhada e da Imagem (CNBDI). Por trás dos grandes quadrados brancos e vermelhos da fuselagem, espaços lúdicos, áreas de exposição, estúdios para a realização de desenhos animados e actividades multimédia.
É este o projecto que a Fundação Hergé e a empresa Moulinsart (gestora dos direitos relativos ao Tintim) anunciaram anteontem com grande pompa. A concretizar-se, o foguetão constituirá o maior monumento de atracções alguma vez construído a partir de uma obra imaginária.
A ideia é respeitar a escala imaginada por Hergé quando realizou “Tintim na Lua”. Aparentemente, toda a gente — entidades políticas e administrativas regionais, CNBDI e Fundação — está interessada no projecto. Foi assinado um protocolo entre o Conselho Geral da Charente (autoridade regional), a câmara de Angoulême e a empresa Moulinsart que permite avançar para um estudo de viabilização do foguetão. Nesse sentido foram disponibilizados 15 milhões de francos (cerca de 450 mil contos) para as “primeiras impressões”. Assim, até ao final do ano, serão realizados os estudos sobre as condições financeiras e os requisitos técnicos necessários para construir o monumento, bem como o modelo de exploração comercial. Se tudo correr bem, a inauguração oficial terá lugar no dia 1 de Janeiro de 2001.
Esta “ofensiva” da Fundação Hergé ocorre num momento particularmente difícil da instituição. Desde que assumiu a direcção dos negócios, o actual marido da viúva de Hergé, Nick Rodwell, adoptou uma filosofia de controlo muito apertado sobre o fundo Hergé, limitando a actividade dos investigadores e restringindo a possibilidade de utilização das imagens da obra. Os meios afectos à BD falam abertamente de censura e criticam com dureza o que consideram ser um desvirtuamento do espírito e das intenções expressas pelo criador de Tintim.
Se associarmos a esta degradação da imagem pública da Fundação Hergé a acentuada quebra de vendas desde os tempos áureos de 1992/93 (três milhões de álbuns vendidos por ano) — na ordem de um terço — compreendem-se melhor as razões que levam a apostar num projecto tão ambicioso. É neste contexto, aliás, que deve ser também enquadrada a decisão de expor em Angoulême, pela primeira vez, os esboços e desenhos originais da última história de Tintim, que Hergé já não conseguiu acabar (“Tintim et l’Alph-Art”).
As primeiras páginas da imprensa local e regional cobriram amplamente o anúncio daquele empreendimento, que é visto como uma mais-valia de peso para uma região há muito tempo associada à BD. Em contrapartida, a presença portuguesa tem passado razoavelmente despercebida. Além de uma citação no discurso da ministra francesa da Cultura, durante a cerimónia de entrega dos prémios “Alph-Art”, e da moderada curiosidade que suscitou a inauguração da mostra colectiva dos 17 desenhadores portugueses, pouco mais há a assinalar.
A organização do festival nem sequer se fez representar na abertura da exposição, ontem de manhã. E o enquadramento logístico da comitiva tem sido muito deficiente, com alguns aspectos lamentáveis (alojamento muito longe de Angoulême, viagem Lisboa/Angoulême em condições inacreditáveis, distribuição incompleta de convites para a cerimónia de actos públicos, etc.).
A criatividade e pluralidade de estilos e ideias propostos pelos autores portugueses merecia, sem chauvinismos de qualquer espécie, melhor atenção. A própria exposição é, na sua concepção e estrutura cenográficas, um exemplo de simplicidade e sobriedade, permitindo realçar as qualidades das pranchas. Tirando alguns pormenores de montagem, o único senão está no atraso da chegada dos catálogos, prevista para hoje.

© 1998 Público/Carlos Pessoa