sábado, 10 de outubro de 1998

Amigo de Hergé que inspirou um personagem de Tintim morreu em Paris: A segunda morte de Tchang

Inspirou um personagem que fez chorar Tintim e esteve no centro de uma aventura que levou o herói de Hergé até ao Tibete. Chamava-se Tchang Tchong-Jen, foi um grande amigo do artista belga e morreu anteontem nos arredores de Paris, com 93 anos.


Há um momento na história “O Lótus Azul” em que Tintim chora, deixando cair a máscara do herói sem fraquezas nem emoções. Acontece depois de o herói criado por Hergé ter salvo das águas agitadas do rio Yang-Tsé um pequeno chinês órfão que pergunta por que razão ele lhe salvou a vida.
A China vivia tempos difíceis, literalmente dilacerada pela cupidez e ambição das potências estrangeiras que lhe sangram as riquezas e aniquilam as populações. Tintim chega ao país para descobrir o que se esconde por trás de uma enigmática mensagem que captou numa escuta de rádio. Cai em cheio num negócio de tráfico de ópio que quase lhe custa a vida. E Tchang tem oportunidade de, por mais de uma vez, saldar a sua dívida para com o herói, livrando-o de situações muito perigosas. Ambos colaboram no desmantelamento da rede de traficantes e Tintim parte, deixando atrás de um amigo para toda a vida.
Voltarão a encontrar-se anos mais tarde, em “Tintim no Tibete”. O herói tem um sonho premonitório, no qual vê o seu amigo numa situação de perigo de vida. No dia seguinte, lê nos jornais que o avião em que o seu amigo viajava se despenhou nas montanhas nevadas dos Himalaias. Sem registar sobreviventes. Tintim não se conforma e parte para o Tibete, apenas com o peso da sua convicção interior, para o salvar. E consegue-o, claro.

Conselheiro e amigo de Hergé
Há situações em que a ficção segue as pegadas da realidade. A estreita amizade estabelecida entre Tintim e Tchang é uma delas, reproduzindo de forma romanceada a história da cumplicidade entre Hergé e... Tchang. Escultor e pintor, este último conhece o autor de banda desenhada em Bruxelas no ano de 1934. Tchang tem 27 anos e frequenta há três a Academia Real das Belas Artes. Aguarelista de talentos reconhecidos no seu país, vai virar-se para a escultura, arte em que o seu pai já fizera algum nome. O autor de “Os Cigarros do Faraó” já tinha em mente há algum tempo levar o seu personagem até ao Extremo Oriente. Um certo padre Gosset, capelão dos estudantes chineses que frequentam a Universidade de Lovaina, sugere a Hergé que arranje um conselheiro em assuntos orientais. Convinha evitar os estereótipos racistas que marcaram de forma indelével a anterior aventura da série, “Tintim no Congo”, acrescenta. Esse conselheiro é Tchang, que contribui para fazer despontar em Hergé uma preocupação com a pesquisa documental que caracterizará as aventuras posteriores de Tintim. Fá-lo comungar das suas próprias recordações e participa mesmo no desenho traçando os ideogramas chineses inscritos nos cenários de “O Lótus Azul”. Hergé retribui com a figura do pequeno chinês, salvo “in extremis” das águas barrentas do Yang-Tsé, que considera Tintim o seu único verdadeiro amigo.
Em 1935 Tchang regressa à China, sendo apanhado no turbilhão da guerra sino-japonesa que antecedeu a II Grande Guerra Mundial. Sofre na pele e no coração estes dois conflitos, a tomada do poder pelos comunistas de Mao Tsé-Tung em 1949 e a Revolução Cultural nos anos 60. Quarenta anos depois é reabilitado e nomeado director da Academia de Belas Artes de Xangai.
Durante esse tempo, Hergé nunca soube nada do seu amigo. “Tintim no Tibete”, publicado em 1958-59 na revista “Tintim”, é tanto o fruto de uma profunda crise pessoal — Hergé tinha-se separado da sua primeira mulher e casado com Fanny Vlamynck —, como uma sentida homenagem ao personagem desaparecido na voragem do tempo e da história.
Só nos finais dos anos 70 é que Hergé vai ter de novo notícias de Tchang. O encontro dos dois em Bruxelas, no ano de 1981, é um momento de grande emoção. Dois anos depois, morria Hergé.
Em 1984 Tchang instala-se definitivamente em França com a filha, acolhido com todas as honras pelo então ministro da Cultura, Jack Lang. Tchang morreu na quinta-feira à noite na Casa dos Artistas de Nogent-sur-Marne, nos arredores de Paris. Tinha 93 anos. © 1998 Público/Carlos Pessoa

sexta-feira, 28 de agosto de 1998

Tintin no país de Hergé

Tintim é um dos símbolos do bem, mas o seu pai, Hergé, não tinha apenas talento e bonomia. Georges Remi foi um homem atormentado pelo mal. Ainda bem, porque dessa complexidade agora revelada por duas importantes biografias nasceu uma obra extraordinária. Dois meses antes de morrer, em 1983, aos 76 anos, Georges Prosper Remi Remi, um dos mais famosos autores de bd de sempre, confessava finalmente: "em Tintim pus toda a minha vida".


Herói e criador tinham mais de meio século de convivência e aquele que o havia salvo inúmeras vezes tinha agora o peso esmagador de um fenómeno. Em todo o mundo venderam-se já mais de 170 milhões de álbuns de Hergé. De Gaulle chegou a afirmar em público que o seu único rival era Tintim. Warhol dizia-se inspirado na "linha clara". Michel Serres tinha-lhe aberto as portas da Sorbonne com um ensaio sobre As Jóias de Castafiore. O pequeno planeta 1683 foi baptizado com o nome de Hergé e uma doença com o do professor Girassol (Tournesol). Spielberg insistia em passar a película o célebre repórter do Petit Vingtième.
Dificilmente poderia ser mais apropriado o título do suplemento infantil do jornal, católico e de direita, em cujas páginas, a 4 de Janeiro de 1929, e por sugestão de um omnipresente padre Norbert Wallez, um jovem belga francófono desenhava a viagem de um repórter e do seu cão ao País dos Sovietes. O século não seria o mesmo sem aquelas duas páginas semanais de um "muito mau desenho, muito, muito, muito mau", nas palavras do seu autor. Certo é que, completada a viagem, uma Bruxelas em delírio recebia um escuteiro disfarçado de Tintim. Nascia o fenómeno, mas a obra vinha de par. Quase por acaso. Para H. Van Opstal, autor de Tracé RG - Le Phénomène Hergé, o começo data, de facto, de Dezembro de 28 com uma tira de um "petit enfant sage", num outro jornal: Le Sifflet. Segundo Pierre Assouline, em Hergé, o desenho de imprensa não era a escolha de Georges, mais interessado em grafismo, disciplina que praticou, e tão fascinado pela pintura que para ela guardou o seu nome. Apesar de só tardiamente, já no pós-guerra e na sequência de profundas depressões, ter tentado pintar, para logo desistir tornando-se coleccionador contemplativo de autores como Miró ou Vasarely. Ainda assim, desde muito cedo Hergé se preocupou em preservar a integridade do seu trabalho e, o que é mais inusitado, em tratar de promover e divulgar... uma obra. As suas características são por demais conhecidas: narração em suspense de uma história onde o exotismo serve uma enorme atenção ao presente, por vezes antecipando o futuro, tendo o humor como mecanismo e horizonte um enorme esforço de clareza e extrema lisibilidade. Era obsessão, este medo de não ser compreendido. A moral nem era, afinal, tão didáctica quanto isso: tratava-se de transmitir aos jovens um certo espírito cavalheiresco, o gosto da acção e o sentido de humor. Eram valores de um escutismo bem comportado, mas individualista, atento ao mundo, mas perconceituoso, cheio de generosidade ingénua, e misógina virilidade. Acabou por se tornar ideologia. Adoptando a divisa "toda a convicção é uma prisão", Hergé, mestre da "linha clara" atravessará o seu presente carregando os seus lados obscuros e escondendo a todo o custo temas-tabu como o desconhecimento da identidade do seu avô paterno, provavelmente um membro da alta aristocracia belga; ou os últimos dias da sua mãe vividos num hospício; a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as suas longas e profundas depressões na fase final da vida, ou o período do colaboracionismo com a imprensa pró-alemã durante a Segunda Grande Guerra. De todos os tabus, talvez seja este, afinal, o mais discutido. Hergé, como bem o revela Assouline, é um produto do seu meio temperado com algum oportunismo. Sofre e procura continuamente a influência de figuras tutelares. Wallez, o padre reacionário e truculento, que se achou co-autor de Tintim, é a figura tutelar. Mas há outras, como Tchang, que lhe mudará a vida ao apresentar-lhe o Oriente espiritual. E um sem número de outros amigos, entre escritores e actores políticos tão perigosos como Léon Dégrelle, fundador do rexismo. (Este individualista nunca se deu bem sozinho e daí também o ter, desde cedo, composto uma equipa capaz de com ele recompôr e rever, também ideologicamente a maior parte dos álbuns). Só que Hergé nunca foi um activista. Se revela racismo com judeus e negros é porque se respira esse ar dos tempos, mas é igualmente capaz de defender os peles vermelhas ou um argumentista argentino ameaçado pela ditadura. Desde que esteja em questão mais o indíviduo do que um povo. Hergé nunca deu um passo ideológico. Foi amigo de muitos que os deram polemica e notoriamente, e manteve essa amizade mesmo no pós-guerra quando não era politicamente correcto sê-lo e só a criação, com ex-resistentes, da revista Tintim o salvou de maiores misérias do que a moral de ver parte do seu país tratá-lo como traidor. "Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintim", diz Assouline. "A começar pelo principal: são ambos produtos típicos das classes médias. Mas o que os separa é também notável. O repórter mete-se em tudo para o que não é chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia dos gatos." O quadro e as pinceladas Tanto se escreveu e continua a escrever sobre Hergé e Tintim que não é fácil reunir numa mesma obra interesse e novidade. Michel Serres dedicou-lhe profundos e delirantes ensaios filosóficos. Benoît Peeters tem no seu curriculum, além de vários álbuns da série As Cidades Obscuras, a qualidade de exegeta hergiano, com vários livros publicados e uma tese sobre o assunto, orientada por Roland Barthes. Autores houve que psicanalisaram Tintim, outros que encontraram nas suas aventuras matéria para análises sobre o álcool. Romances se assinaram a partir deste universo e dicionários há sobre aspectos de companheiros seus, como as asneiras do capitão Haddock. Biografias do autor, entrevistas e análises à obra, essas são incontáveis, mas ainda que não sejam hagiografias foram todas vigiadas. E autorizadas. É mais uma razão para considerar como importantes tanto Hergé, de Pierre Assouline, Folio, 1998 como Tracé RG - Le Phénomène Hergé, de H. Van Opstal, Lefrancq, 1998. Não que estes autores tenham escrito os seus livros ignorando guardiões do templo como a Fondation Hergé, mas porque, pelo contrário, tiveram acesso a tudo sem a vigilância de Georges Remi, que quis desenhar a vida de Hergé na mesma "linha clara" da sua obra, o resultado de ambos os trabalhos é tão fascinante quanto revelador. E mais: completam-se como peças de um mesmo puzzle. Se Assouline pôs no seu "quadro" um cuidado literário (o que já havia feito para o outro belga Simenon), Opstal recolhe com cuidado estético ímpar um número impressionante das "pinceladas" que fazem uma vida e uma obra. Tracé HG tem uma estrutura (curiosa e nem sempre fácil) de duas partes, uma primeira com cem parágrafos que traçam cronologicamente o percurso biobliográfico de Georges Remi, e uma segunda, de 62 parágrafos, que como que amplia o período 1907-30, aquele que era menos conhecido. Em paralelo, corre talvez o mais importante percurso: a primeira tira, influências, obra gráfica, assinaturas, fotografias de amigos e família, certidões de nascimento, mapas e gráficos nada escapa à verdadeira mania iconográfica de Opstal. O afã de Assouline é mais clássico, mas não menos interessante. A partir, sobretudo, dos arquivos de Hergé e de inúmeras entrevistas procura compôr, com notável sensibilidade, um homem para além do mito: generoso e vaidoso, mais oportunista que colaboracionista, tão dilacerado quanto obstinado, um individualista sempre sob influência. Dando, para isso, particular atenção aos seus períodos negros durante a Ocupação nazi da Bélgica e as sucessivas depressões no pós-guerra e no final da sua vida. Procura mais do que justificar ou explicar, entender e fazer entender convições ideológicas e percurso espiritual, sem esquecer uma evolução artística riquíssima, em técnicas, conteúdo e circunstâncias. Qualquer destes livros dizem ainda muito sobre o século XX, sobre a Europa Central em períodos também eles centrais, sobre, é claro, uma arte que é do século - a bd, mas o que resulta mais fascinante da sua leitura é darem-nos a ver, nota por nota, a composição de uma gigantesca sinfonia: a da criação d'As Aventuras de Tintim.

 Hergé Pierre Assouline, Folio, 1998 
 Tracé RG - Le Phénomène Hergé H. Van Opstal, Lefrancq, 1998

© 1998 O Independente/João Paulo Cotrim

sábado, 24 de janeiro de 1998

Um foguetão para o ano 2001

A BD continua viva e a vender-se bem. Mas nem toda: Tintim perdeu desde 1993, ano em que foram comprados três milhões de álbuns, um terço das suas vendas. Para relançar a série, a Fundação Hergé anunciou a construção, em Angoulême, de uma réplica do foguetão que levou Tintim à Lua. Ontem foram também divulgados os vencedores dos prémios em disputa.
Imaginem o cenário: um foguetão com 53 metros de altura, com a respectiva rampa de lançamento, instalado nas proximidades do Centro Nacional da Banda Desenhada e da Imagem (CNBDI). Por trás dos grandes quadrados brancos e vermelhos da fuselagem, espaços lúdicos, áreas de exposição, estúdios para a realização de desenhos animados e actividades multimédia.
É este o projecto que a Fundação Hergé e a empresa Moulinsart (gestora dos direitos relativos ao Tintim) anunciaram anteontem com grande pompa. A concretizar-se, o foguetão constituirá o maior monumento de atracções alguma vez construído a partir de uma obra imaginária.
A ideia é respeitar a escala imaginada por Hergé quando realizou “Tintim na Lua”. Aparentemente, toda a gente — entidades políticas e administrativas regionais, CNBDI e Fundação — está interessada no projecto. Foi assinado um protocolo entre o Conselho Geral da Charente (autoridade regional), a câmara de Angoulême e a empresa Moulinsart que permite avançar para um estudo de viabilização do foguetão. Nesse sentido foram disponibilizados 15 milhões de francos (cerca de 450 mil contos) para as “primeiras impressões”. Assim, até ao final do ano, serão realizados os estudos sobre as condições financeiras e os requisitos técnicos necessários para construir o monumento, bem como o modelo de exploração comercial. Se tudo correr bem, a inauguração oficial terá lugar no dia 1 de Janeiro de 2001.
Esta “ofensiva” da Fundação Hergé ocorre num momento particularmente difícil da instituição. Desde que assumiu a direcção dos negócios, o actual marido da viúva de Hergé, Nick Rodwell, adoptou uma filosofia de controlo muito apertado sobre o fundo Hergé, limitando a actividade dos investigadores e restringindo a possibilidade de utilização das imagens da obra. Os meios afectos à BD falam abertamente de censura e criticam com dureza o que consideram ser um desvirtuamento do espírito e das intenções expressas pelo criador de Tintim.
Se associarmos a esta degradação da imagem pública da Fundação Hergé a acentuada quebra de vendas desde os tempos áureos de 1992/93 (três milhões de álbuns vendidos por ano) — na ordem de um terço — compreendem-se melhor as razões que levam a apostar num projecto tão ambicioso. É neste contexto, aliás, que deve ser também enquadrada a decisão de expor em Angoulême, pela primeira vez, os esboços e desenhos originais da última história de Tintim, que Hergé já não conseguiu acabar (“Tintim et l’Alph-Art”).
As primeiras páginas da imprensa local e regional cobriram amplamente o anúncio daquele empreendimento, que é visto como uma mais-valia de peso para uma região há muito tempo associada à BD. Em contrapartida, a presença portuguesa tem passado razoavelmente despercebida. Além de uma citação no discurso da ministra francesa da Cultura, durante a cerimónia de entrega dos prémios “Alph-Art”, e da moderada curiosidade que suscitou a inauguração da mostra colectiva dos 17 desenhadores portugueses, pouco mais há a assinalar.
A organização do festival nem sequer se fez representar na abertura da exposição, ontem de manhã. E o enquadramento logístico da comitiva tem sido muito deficiente, com alguns aspectos lamentáveis (alojamento muito longe de Angoulême, viagem Lisboa/Angoulême em condições inacreditáveis, distribuição incompleta de convites para a cerimónia de actos públicos, etc.).
A criatividade e pluralidade de estilos e ideias propostos pelos autores portugueses merecia, sem chauvinismos de qualquer espécie, melhor atenção. A própria exposição é, na sua concepção e estrutura cenográficas, um exemplo de simplicidade e sobriedade, permitindo realçar as qualidades das pranchas. Tirando alguns pormenores de montagem, o único senão está no atraso da chegada dos catálogos, prevista para hoje.

© 1998 Público/Carlos Pessoa