domingo, 31 de janeiro de 1999

Desculpe, mas Hergé era antifascista

Assombra-me, embora não me indigne, a facilidade com que se acusa o criador de Tintim de simpatizante nazi, ou fascista, ou seja lá o que quiserem. Tudo isso me parece uma imensa baralhada própria, se calhar, do sistema mental do homem pós-guttenberguiano em que nos andamos a transformar. Devo lembrar aqui, em nome da justiça e da memória de Hergé, que durante a ocupação da Bélgica pelos nazis, Tintim foi vítima da censura. Foram proibidos os álbuns “Tintim na América”, “A ilha negra”, “O lótus azul” e interrompida a publicação de “No país do ouro negro”, já que se censurava tudo o que pudesse funcionar como propaganda à Inglaterra e aos Estados Unidos, onde se passam os dois primeiros álbuns citados. Quanto a “O lótus azul”, aí tratava-se mesmo de um libelo anti-imperialista e anti-japonês... Era natural que os nazis o censurassem! De facto, nada mais antifascista do que essa obra maravilhosa, desenhada em admirável estilo chinês tradicional, plena de sentimentos orientais pungentes, extremamente bem compreendidos e transmitidos na forma límpida como (quase) só eles, orientais, conseguem... Quanto às já triviais acusações de racismo que lhe fazem, parece-me importante não esquecer que em 1930 aquilo que hoje é tido por piadas racistas era, então, visto de forma tão inocente como é para nós contar anedotas sobre alentejanos. Talvez Tintim não seja propriamente o símbolo da esquerda política, as suas aventuras surgiram num jornal católico, anti-comunista e até demagógico... Tintim é certamente um bom súbdito, leal, quer seja do rei Otokar, do marajá de Rajapothalah, do emir Ben Kalish Ezab ou até do general Alcazar. Mas como esquecer a sempre presente sátira aos interesses dos grandes capitalistas, das multinacionais que provocam uma guerra na América Latina oara vender armas aos dois países beligerantes? Então porquê toda esta confusão? Quem deitou o grão de areia na engrenagem? Bem! Foi mais que noticiado que um amigo de infância de Hergé veio a ser, um dia, um importante nazi belga que, aliás, se exilou em Espanha no fim da guerra, se não me engano. É também verdade que o tal jornal católico onde saíam as aventuras de Tintim, colaborou com os nazis. Mas iria Hergé sacrificar o seu emprego por causa disso? Talvez, também, o autor de Tintim não fosse o género de pessoa que se zangasse com os amigos por causa da política... Que sabemos sobre isso? Que nos diz ele a esse respeito? Na verdade não é ele que nos responde a essa questão, mas sim o capitão Hadock quando aparece no fim de “No país do ouro negro”, o tal álbum que teve que ser interrompido em 1939 por ser passado na Palestina, a esse tempo território britânico, e onde se aludia já ao conflito israelo-árabe... É o capitão que diz: “É uma coisa ao mesmo tempo muito simples... pfff... e muito complicada... pff...” E a história acaba logo ali com um charuto explosivo armadilhado pelo jovem Abdalah. Quem consegue explicar porque razão aparece o capitão Hadock, sem fazer grande sentido, no fim de um álbum começado antes da guerra, em clima de ameaça de guerra e onde o mau é o Dr. Muller, um alemão comprometido em acções de sabotagem contra as companhias petrolíferas britânicas, se o capitão só conhece Tintim em “O caranguejo das tenazes de ouro”, esse sim, um álbum do tempo do governo de Vichy, passado no Saara francês? Eis pois um rico quebra-cabeças só para Tintimófilos! Imaginem, pois, a dor de cabeça de Hergé por lhe censurarem os álbuns... E o mais engraçado foi “O ceptro de Otokar”, onde havia uma referência implícita à política expansionista de Hitler e de Mussolini (através do anagrama “Mustler”, nome do fictício ditador da Bordúria, país igualmente fictício da Europa Central que planeia invadir um reino balcânico), passar despercebido aos censores!!! Tintim nazi? Não me façam rir!

 © 1999 Público