domingo, 24 de outubro de 2021

As aventuras de Tintin

Será o que há 100 anos Tintin fazia no Congo belga – acordando os nativos adormecidos para as letras da civilização e para as novidades da modernidade – assim tão diferente do que hoje fazem as ONGs?

Quando comecei a ler, aí por 1952, o Mundo de Aventuras saía às Quintas-Feiras e trazia uma grande colecção de heróis. O Flash Gordon, o Fantasma e o Mandrake eram os meus preferidos, os que eu ia logo ler mal saía do quiosque. O Flash Gordon tinha uma namorada linda, a Dale, e havia o Dr. Zarkov, um cientista de barbas, que os acompanhava em aventuras espaciais, no Planeta Mongo, onde lutavam contra o Imperador Ming.

O Fantasma tinha sido criado por Lee Falk em 1936, nos anos dourados da BD na América, os anos das pulp magazines e da primeira Ficção Científica. O Fantasma vivia num ambiente africano e era amigo dos pigmeus que o protegiam. Era um justiceiro implacável, sem novidades tecnológicas, mas incansável na luta contra o Mal e os maus.

O Mandrake era diferente do Flash Gordon e do Fantasma. Era uma espécie de mago que, pela indumentária, lembrava o Arsène Lupin, “Gentleman Cambrioleur”: smoking Belle Époque, cartola, capa e um bigodinho fino em serrilha. Tinha um ajudante, um negro gigantesco, o Lotário, que envergava uma pele de leopardo e que, quando era preciso recorrer a formas superiores de luta, intervinha para apoiar o patrão, já que o patrão só lutava através de truques de magia. Mandrake tinha sido imaginado também por Lee Falk, que, em meados de 1934, propusera a série, com desenhos de Phil Davis, ao King Features Syndicate. Mas Mandrake só apareceu por cá, no Mundo de Aventuras, em Outubro de 1950.

Dois anos depois, em Janeiro de 1952, dava entrada nos quiosques portugueses o CavaleiroAndante, dirigido por Adolfo Simões Müller. Simões Müller fora um pioneiro dos quadradinhos em Portugal, com O Papagaio, que fundara em 1935, e depois com o Diabrete.

Tintin em Portugal

Tintin apareceu em Portugal em 1936 no Papagaio, pela mão do padre Abel Varzim, que conhecera o boneco de Hergé em Lovaina, onde se doutorara. Foi adaptado ao colorido local e até colorido localmente, quando os desenhos (e o mundo) ainda eram a preto e branco. Tintin au Congo, de 1930, iria chamar-se aqui Tim-tim em Angola e Tintin en Amérique, a história com que O Papagaio apresentava o repórter em Portugal, Tim-Tim na América do Norte. O primeiro Tintin, Tintin au pays des Soviets, um retrato da Rússia dos sovietes e das suas selvajarias num desenho ainda incerto e grosseiro, não entrou no Papagaio.

George Remi, Hergé (RG), colaborador do jornal Le Vingtième Siècle, pode ter-se inspirado em Léon Degrelle, então repórter do Vingtième, para criar o Tintin. Na segunda metade dos anos 20, Degrelle percorrera o México insurgente dos camponeses católicos, da Cristiada, revoltados contra a política anti-religiosa de Plutarco Elías Calles e escrevera Mes Aventures au Mexique. Vindo, como Hergé, dos Escuteiros e da Acção Católica, Degrelle vai ser o fundador do Rex, um movimento de direita revolucionária e radical que se torna o rosto belga do fascismo. E Degrelle que, em 1934, se dizia próximo de Maurras e Mussolini mas hostil ao nacional-socialismo alemão, acaba na Legião Wallonie dos Waffen-SS.  Um curriculum pouco recomendável para alguém que, em Tintin mon Copain, um livro póstumo, proibido na Bélgica e em França, se reclama o inspirador da personagem de Hergé.

Tintin, como toda a ficção, é susceptível de interpretações políticas e é, por vezes, explicitamente político: do anticomunismo de Tintin au pays des Soviets ao colonialismo paternalista do Tintin au Congo ou ao anti-imperialismo de Le lotus bleu. Não é, assim, de estranhar que Tintin e o seu criador, Hergé, sejam agora um dos muitos alvos da perseguição e da purga da nova polícia da moral e dos bons costumes presentes e passados, sempre atenta às supostas susceptibilidades das suas vítimas de eleição e sempre alheada de tudo o resto.

No contexto histórico do final dos anos 20, princípios dos anos 30, a Europa, ainda e sempre consciente da sua “missão civilizacional”, estava também radicalizada internamente, debatendo-se com “o perigo comunista”, um perigo real que contribuíra à partida para essa mesma radicalização. E o Petit Vingtième, o suplemento juvenil do católico Le Vingtième Siècle, do padre Norbert Wallez, era declaradamente anticomunista: daí que a história pioneira do repórter de Hergé tenha lugar no país dos sovietes.

Tintin e os censores

A incursão de Tintin no Congo Belga, em 1930, apresenta uma imagem de inequívoco colonialismo paternalista, imagem que, logo no imediato pós-guerra, Hergé não deixa de corrigir. E a caçada-massacre de animais selvagens também fere o espírito do nosso tempo, mais tolerante para com outros massacres. De qualquer forma, “os maus” da história não são ali os negros do Congo mas uns gangsters brancos, ligados a Al Capone, que pretendem controlar o comércio de diamantes da colónia.

A história de Tintin no Congo tem, agora, quase cem anos; mas como para os novos apóstolos da higienização histórica e ficcional nunca é tarde para um bom auto de fé, tal não impediu que os álbuns de Hergé fossem recentemente queimados no Canadá.

Todos nós, os que pertencemos à geração que acabou por fazer a transição entre a África colonial, de dominação europeia, e a África independente, estamos conscientes dos clichés que eram então dominantes entre colonizadores e colonizados. Os clichés que pintavam os colonizadores como imaculados civilizadores e os colonizados como seres tribalizados, fragmentados em etnias e clãs, ignorantes, primitivos, infantis, preguiçosos. Mas quem, senão um grande escritor, como Céline, em Voyage au bout de la nuit, ou um Henrique Galvão ou um Castro Soromenho, ou o ocasional missionário ou antropólogo escapava então a estes clichés? Hergé seguia a tradição e a norma que dava aos brancos a superioridade moral e o exclusivo domínio da técnica. Uma tradição agora inconscientemente continuada e exacerbada pelos novos censores, cuja sobranceria moral, a fúria “civilizadora”, o franco arremesso de rótulos, a autocontemplação da própria bondade e o paternalismo para com “as vítimas” a quem se arrogam “dar voz” ultrapassam largamente a cegueira dos antigos “opressores”. E será o que Tintin então fazia no Congo – pregando, leccionando, iluminando, disciplinando, enfim, acordando ou despertando os povos “adormecidos” para valores mais modernos e civilizados – assim tão diferente do que agora fazem grande parte das ONGs?

Não restam dúvidas de que a imagem do antigo feudo do rei Leopoldo, genialmente retratado em toda a sua crueza no Heart of Darkness de Conrad, sai melhorada nos quadradinhos de Tintin. Hergé não fora ao Congo mas visitara o museu de Tervuren. Tinha 23 anos e talvez fosse cedo para aquele exercício fundamental de se pôr na pele do outro e de pensar como experimentaria esse “outro” as nossas bondosas e por vezes insensíveis percepções.

Talvez por isso, num súbito e deslocado ataque de consciência racial e social e com a cega fúria inquisitória e compensatória dos recém-convertidos, o grupo Borders arrumou Tintin au Congo na secção de “leituras para Adultos”. Curiosamente, não foi o que se passou no bem mais pragmático, realista e complacente ex-Congo Belga, o território visado pela história: na antiga Léopoldville, hoje Kinshasa, há restaurantes e ateliers Tintin e os intelectuais locais não mostram especial animosidade em relação ao retrato histórico-fantasista de Hergé. Em Madagáscar há até um Tintin negro.

Assim, em nome da nossa humanidade comum – e curiosidade e ludicidade e desejo de aventura – Hergé e Tintin lá vão sobrevivendo à fúria inquisitória daqueles a quem todos teremos de resistir, sob pena de termos o nosso património comum, da Odisseia à Bíblia, de Dante a Shakespeare, de Dostoiévski a Eça de Queirós, censurado e mutilado pela descoberta de infindáveis “micro-agressões”, “apropriações culturais” e demonstrações de “sexismo” e de “racismo”.

Ao longo de duas dúzias de álbuns, Hergé vai-nos contando histórias, ou seja, vai-se apropriando culturalmente de tudo e de todos e micro-agredindo a torto e a direito, oferecendo matéria de sobra para o entretenimento de várias gerações de jovens dos sete aos setenta e sete anos (incluindo os que agora andam à cata de lenha para o queimarem). Assim, Milou, o cão do eterno e sempre casto adolescente Tintin, do repórter que, como todos os repórteres, não noticia, é colaboracionista como todos os animais vilmente domesticados; o capitão Haddock, fonte inesgotável de palavroso discurso de ódio, é grosseiro e bêbado como todos os capitães; os Dupont, ineficazes e repetitivos como todos os detectives; o professor Tournesol, louco e explosivo como todos os cientistas; o senhor Oliveira da Figueira, vendilhão como todos os portugueses; e os negros, os asiáticos, os esquimós, os índios, os aborígenes, parte da paisagem e mero cenário de aventura como todos os “nativos”.

Neste mundo ou mundos, além das “agressões e apropriações” de que se faz a ficção, há intrigas geopolíticas ou geoeconómicas, como em  Tintin au pays de l’or noir; há desconstrução de tiranias, como nas incursões na Sildávia; e denúncia de autocracias, como com sucessão dos generais Alcazar e Tapioca, representantes do poder pretoriano na Hispanidade.

De um modo geral, Tintin é independente, em termos de direita e de esquerda. É um jovem “europeu” em cruzada divertida por mundos exóticos – balcânicos, africanos, asiáticos e americanos. Ou só um jovem à procura de um mundo maior e confrontado com a diferença. Hergé vai, entretanto, criando personagens que encarnam o bem e o mal, como o sinistro Roberto Rastapopoulos, um capitalista sem alma nem escrúpulos, que começa por aparecer em Tintin en Amérique, que depois trafica ópio no Lotus bleu e que acaba mal no Vol 714 pour Sydney. Ao combatê-lo no Lotus azul, surge um Tintin justiceiro, defensor dos fracos e oprimidos, no caso, vítimas do imperialismo britânico.

Como toda a personagem capaz de ganhar vida e de se tornar universal, Tintin está profundamente enraizado na sua cultura e no seu chão. E o facto de ser claramente “europeu” – confiante na superioridade da ciência e da tecnologia, que, nos dois volumes da viagem à Lua, preparam o feito da NASA – não o impede de respeitar conforme pode e sabe a identidade e a individualidade de culturas que lhe são estranhas e que o fascinam.

Perdido e achado nas traduções

De acordo com o Index Translationum, Les Aventures de Tintin estão no oitavo lugar das obras de expressão francesa mais traduzidas – depois de Jules Verne, Alexandre Dumas, Georges Simenon, René Goscinny, Honoré de Balzac, Charles Perrault e Antoine de Saint-Exupéry.

Esta expansão, fez-se também através da rede dos jornais da Acção Católica na Europa. Em Portugal chegou com o padre Abel Varzim e Simões Muller, no Papagaio, e a primeira experiência das tiras a cores foi portuguesa. Curiosamente, na primeira versão lusitana, Oliveira da Figueira, o comerciante de Les cigares du pharaon, passa a ser espanhol. Não terá sido considerado um bom representante da nossa raça e, pioneiros na deteção da micro-agressão, os tradutores (mas não traidores) portugueses trataram de redireccionar para Espanha o insulto. Também – colónia por colónia e metrópole por metrópole –, em vez de ir ao Congo belga, Tintin começa aqui por ir a Angola, com o mapa da Bélgica substituído pelo de Portugal. O Papagaio publicou oito aventuras de Tintin.

Hoje as aventuras de Tintin estão traduzidas em mais de 80 línguas, dando conta da qualidade e da universalidade do herói e dos seus companheiros de aventura, dos desenhos, dos enredos e, sobretudo, do humor – garantia contra todas as inquisições.

Hergé na Gulbenkian

A Gulbenkian, em colaboração com o Museu  Hergé de Louvain-la-Neuve, tem em exposição, até ao dia 10 de Janeiro, uma selecção de documentos e obras do autor de Tintin, que se dedicou à banda desenhada, mas que também fez publicidade e desenho de moda e se aventurou nas artes plásticas. A mostra chama-se Hergé e vale a pena visitá-la para conhecer ou revisitar o multifacetado criador de Tintin.

Jaime Nogueira Pinto in Observador


quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Gouveia e Melo


Chico Alcagoita tem sido muitas vezes acompanhado por Milou nas suas "venturas e desventuras" que são publicadas no blog Largo dos Correios.

Destacamos o episódio 225, de 18/09/2021, onde refere que o Vice-Almirante Gouveia e Melo também é amigo de Haddock.  https://largodoscorreios.wordpress.com/2021/09/18/venturas-e-desventuras-do-chico-alcagoita-duzentos-e-vinte-e-cinco/

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Artigo de opinião de António Araújo

No pasarán

A culpa foi toda de um padre. No dia 9 de Julho de 1931, com tremendo aparato mediático, uma chusma de gente acorreu à Gare du Nord, em Bruxelas, para esperar um jovem repórter acabado de chegar das Áfricas. Na varanda da gare, um adolescente louro, fardado de branco e de chapéu colonial, dirigiu-se à multidão expectante, de megafone em punho, agradecendo-lhe a presença e o apoio nessa sua nova aventura. Nas fotografias da época, vemos crianças de colo, jovens iguais ao repórter, mulheres de sorriso aberto, senhores de chapéus de palhinha. Talvez ele ainda não fosse o fenómeno de popularidade mundial entre os "jovens dos 7 aos 77 anos", como viria a tornar-se mais tarde, mas Tintim já tinha à época uma quantidade apreciável de fãs, que acorreram prontamente ao chamamento do jornal Le Vingtième Siècle. Num golpe de génio, o seu director, o padre Wallez, decidira promover o novo álbum do herói organizando uma grande festa e publicando como suplemento daquela revista um convite para celebrar o regresso de Tintim a casa. A campanha publicitária passou pela contratação do actor Henri De Doncker, um jovem sósia do repórter, e pela oferta de "uma valiosa peça artística congolesa" aos primeiros compradores do livro, além de um cortejo com animais exóticos alugados a um zoo. Não era, contudo, uma novidade absoluta, pois no ano anterior já se ensaiara um regresso hollywoodesco de Tintim à Bélgica, vindo do País dos Sovietes, com um sósia de carne e osso a desembarcar na place Rogier. Agora, no entanto, a coisa funcionou melhor, com mais adesão de público, e Tintin au Congo converteu-se num best-seller juvenil da década de 30, sendo reeditado várias vezes. Em 1934, a editora Casternan assumiu a publicação das obras de Hergé e, dez anos depois, deu-se à estampa a última edição do álbum a preto e branco.

No pós-guerra, em 1946, a obra foi reformulada, sendo expurgada das suas referências colonialistas mais óbvias, e, das 110 páginas originais, a preto e branco, fez-se uma nova edição a cores, com 62 páginas. Nos anos 60, o livro caiu num relativo esquecimento, ante a vaga descolonizadora que então corria o mundo, e, numa entrevista radiofónica de 1966, Hergé explicaria a sua génese, dizendo que Tintin au Congo nascera de uma sugestão do seu patrão da altura, o padre Norbert Wallez, director do jornal católico ultraconservador Le Vingtième Siècle (e um admirador de Maurras e de Mussolini, preso no pós-guerra por colaboracionismo com os nazis...), que se considerava coautor das aventuras de Tintin e que, não por acaso, recebia uma percentagem dos respectivos direitos. Fora dele a ideia de enviar o repórter à Rússia dos sovietes, para denúncia dos males do comunismo, como fora ele que, logo a seguir, instara Hergé a mandar Tintim ao Congo, para promover o esforço dos missionários católicos no território e para despertar novas vocações entre a juventude. Para o efeito, o desenhador muniu-se da literatura de viagens da época, foi à secção de artigos coloniais dos armazéns Bon Marché, passou horas no Museu de Tervueren a copiar os trajes dos Aniota, os "homens-leopardo" que se rebelavam contra o poder dos brancos. O resultado final, como o próprio reconhecerá, foi um álbum "paternalista", mas que só involuntariamente reflectia o espírito colonizador do seu tempo. Na verdade, Tintin no Congo é, inquestionavelmente, uma obra colonialista latu sensu, mas não constitui, de forma alguma, uma apologia militante da dominação belga do Congo, à sombra da qual se tinham cometido atrocidades horríveis num período anterior, o tempo de Leopoldo II e da "febre da borracha", como foi denunciado por muitos, com destaque para Conan Doyle ou por Mark Twain, com O Fantasma do Rei Leopoldo.

Então com 23 anos e em início de carreira, a tentar ganhar a vida como ilustrador de um jornal católico, Hergé passou completamente à margem dessas controvérsias. Diria mais tarde que Tintim no Congo foi um "pecado de juventude", uma fantasia infantojuvenil ligeira, e que, se a pudesse refazer de novo, criaria uma obra inteiramente diferente, desde logo com mais conhecimento da realidade africana. No entanto, e como seria notado pela revista africana Zaïre em 1969, em Tintim no Congo os negros são, na esmagadora maioria dos casos, os bons da fita e o jovem repórter luta, isso sim, contra o mal incarnado pelos brancos. De resto, em livros posteriores, como Coke en stock, de 1958, Hergé denunciara o tráfico negreiro que persistia no mundo e, na reedição de Le crabe aux pinces d'or, saído originalmente em 1940-1941, terá o cuidado de alterar a fisionomia de um dos vilões que atacam o capitão Haddock, que deixou de ser negro para assumir traços caucasianos.

Em Maio de 1970, quando Tintim no Congo foi novamente reeditado, apenas se ouviu uma voz crítica, a do anarquista belga Jan Bucquoy, que denunciou o livro como um "clássico da era colonial" e moldou um busto satírico de Tintim com feições negras. A provocação, no entanto, passaria quase despercebida. A bomba estourou apenas em 2007, quando Steven Spielberg quis fazer uma adaptação cinematográfica das aventuras do jovem repórter. Um advogado de Londres solicitou à comissão britânica para a igualdade racial que proibisse a venda de Tintin no Congo nas livrarias e, apesar da contestação de nomes de vulto, como o do desenhador congolês Barly Baruti, fundador de Afro-BD, a polémica estava lançada. Em Inglaterra, na Austrália, na Nova Zelândia, o álbum foi transferido nas livrarias para as secções de adultos, como se de obra pornográfica se tratasse; em Estocolmo foi intentada, sem sucesso, uma acção judicial para impedir a sua venda; o conselho representativo das associações negras de França considerou o livro "ofensivo", mas não conseguiu que o mesmo fosse imediatamente proibido de circular. Na América, a biblioteca municipal de Brooklyn decidiu retirá-lo das estantes, colocando-o numa secção de reservados, só acessível a investigadores ou a leitores informados, mediante marcação prévia. Na África do Sul, numa decisão equilibrada e sensata, impôs-se que o livro fosse vendido com uma cinta vermelha, advertindo que se tratava de uma obra potencialmente ofensiva para os leitores mais sensíveis. Um jovem congolês que estudava na Bélgica, Bienvenu Mbutu Mondondo, apresentou um queixa-crime contra o livro em Bruxelas, mas uma decisão judicial de 2010 considerou que ele não era uma obra intimidante ou geradora de violência.

Anos antes, em 1975, Hergé aceitara mudar uma das cenas da saga, a pedido do seu editor sueco, redesenhando o episódio bárbaro em que Tintim mata um rinoceronte a golpes de dinamite. O desenhador reconheceria, aliás, que o livro "retratava os africanos com os estereótipos burgueses e paternalistas da época", mas nem isso aplacou uma fúria censória que, note-se, alastrou por contágio mimético em vários pontos do globo, no espaço de poucos meses. Até ao filme de Spielberg, e durante décadas, ninguém se lembrara do "livro racista" de Hergé, que a maioria dos especialistas, de resto, consideram ser uma das suas obras menos conseguidas.

No mundo anglo-saxónico, especialmente nos Estados Unidos, Tintim no Congo é hoje um proscrito: à última hora, o editor norte-americano desistiu da sua publicação e a colecção das aventuras de Tintim é vendida e publicitada como se aquele título maldito nunca tivesse existido. Noutros países, e no que parece ser uma decisão sensata, o livro é comercializado envolto em celofane, com uma advertência sobre o seu conteúdo. Para esta solução muito contribuiu a prudência da justiça: na Bélgica, concluiu-se que a obra, podendo ofender alguns, não merecia ser proibida de circular numa sociedade livre, tal qual a literatura pornográfica e escandalosa ou as caricaturas de Maomé; na Suécia, o procurador-geral mandou arquivar uma queixa contra o livro de Hergé baseando-se num argumento formal, a prescrição do delito, mas dizendo, ainda assim, que a obra se encontrava protegida pelo princípio da liberdade de expressão - o que não impediu a biblioteca infantil da Kulturhuset, de Estocolmo, de a retirar das suas estantes, em Setembro de 2011, gesto que abriu um amplo debate no país, o "Tintim-gate".

Descrita ao pormenor num informativo livrinho das Éditions Moulinsart, as mesmas que publicam as aventuras de Hergé (Tintin au Congo de Papa, 2012), a história de Tintim no Congo é, apesar de tudo, uma história feliz, pois demonstra que, mesmo no seio da mais acesa polémica, é possível encontrar soluções moderadas e de compromisso, não enveredando por proibicionismos muito típicos no nosso tempo.

Há dias, soube-se que, no Ontário, no Canadá, as autoridades fizeram uma purga nas bibliotecas escolares, destruindo mais de 5000 mil livros, entre os quais de Tintim, Astérix e Lucky Luke, considerados "racistas" e "ofensivos para os povos autóctones". Foram ainda destruídas diversas enciclopédias e outros títulos, fazendo-se, à boa maneira da Inquisição ou do nazismo, fogueiras a céu aberto, a que os imbecis chamaram "cerimónias de purificação pelas chamas". As "cerimónias" tiveram lugar à porta de cada escola, para que os alunos vissem ao vivo e pudessem participar num gesto de barbárie que, doravante, mancha irreparavelmente a imagem do Canadá no mundo. A coisa, parece, não ficará por aqui, pois a comissão inquisitorial ainda só analisou metade das obras sob escrutínio, num total de 200 títulos suspeitos. Por outro lado, a pandemia atrasou algumas das "cerimónias" pirómanas, que irão recomeçar em breve (outras notícias dão conta de que os trabalhos foram suspensos sine die). E, como uma imbecilidade nunca vem só, o conselho escolar do Ontário decidiu usar as cinzas da chacina no plantio de árvores que simbolizassem um "país inclusivo onde todos podem viver em prosperidade e segurança". Num país onde se queimam livros, fazendo disso espectáculo, nada nem ninguém pode viver em segurança. A responsável por tudo isto, uma idiota de nome Suzy Klies, acabou vitimada pelas novas leis de Nuremberga e teve de se demitir há dias do conselho dos povos autóctones quando se descobriu afinal que... não tinha sangue autóctone a correr-lhe nas veias.

Todas as semanas surgem notícias cada vez mais aterradoras sobre os desmandos da cultura woke: censuras, proibições, policiamentos do discurso, destruições de estátuas, vandalismos no espaço público, académicos voluntariamente castrados, intelectuais cobardes, amedrontados, incapazes de resistirem à primeira provocação (como sucedeu, por exemplo, no lamentável episódio das traduções dos poemas de Amanda Gorman). Devemos combater o neofascismo cultural com o mesmo vigor com que enfrentamos os extremismos políticos, de direita ou de esquerda, pois eles são em tudo iguais, absolutamente idênticos no seu propósito de destruição da democracia liberal em que vivemos e da sociedade tolerante que tanto nos custou a erguer. É tempo de percebermos, de uma vez por todas, que André Ventura e Mamadou Bá são gémeos da mesma estirpe, têm ambos o mesmo intuito de provocar e de insultar, de semear ódios que impeçam o diálogo moderado, as soluções de bom senso e consenso. Por muito que se digam ou julguem diferentes, um e outro são iguaizinhos no pulsar tirânico − e, por isso, nossos mortais inimigos.

Para António José Cabral, com muita amizade

António Araújo (Historiador), Diário de Notícias, 18 Setembro 2021

EXTRA (2020)

Não há coincidências? Poças, só há. Ontem, no dia de aniversário de António Cabral, o maior tintinólogo que conheço (além de uma pessoa extraordinária, claro), no dia do aniversário de António Cabral, dizia, surgiu a notícia de que o original do Lótus Azul, de Hergé, foi descoberto num caixote ou caixa ou lá o que é e vai ser leiloado em grande, com previsões de 3 milhões. Não tendo, de momento, disponibilidade para oferecer um presente tão vultuoso, junto envio a imagem acima, que não é o original mas imita bem e até anda lá perto, tão perto como o meu abraço, de parabéns e muita amizade (quanto ao mais, é só imprimir, recortar e emoldurar)

António Araújo, Malomil, 23/07/2020

Meu caríssimo António Araújo. Muito obrigado! Cheguei a uma idade em que aceito, sem hesitar, o que se diga de bem a meu respeito, mesmo que seja exagerado, quiçá imerecido, como é o caso.

Gosto imenso do Lotus Bleu. Das várias edições que me fazem companhia gosto especialmente da primeira, a preto e branco com extra-textos de cores deslumbrantes, uma assinada pelo Hergé e pelo Tchang, quando se encontraram em Bruxelas em 1981 e a do nosso "O Papagaio", algo iconoclasta mas belíssima.

Abraço muito apertado deste seu amigo, agora muito sensibilizado

António C

António José Cabral, 23 de julho de 2020

https://malomil.blogspot.com/search?q=herg%C3%A9


quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Conversas À Quinta


Programa semanal da Rádio Observador moderado por José Manuel Fernandes e com os comentadores Jaime Nogueira Pinto e Jaime Gama. Pode ser ouvido em podcast em https://observador.pt/programas/conversas-2/

A emissão do dia 07/10/2021 teve por tema "Tintin, Hergé: as nossas infâncias são eternas".

«Tintin está em Lisboa numa exposição e nós viajámos até ao seu mundo com muitas recordações de como conhecemos o pequeno herói (e o seu Milou) e algum debate sobre as controvérsias da vida de Hergé.»

https://observador.pt/programas/conversas-2/tintin-herge-as-nossas-infancias-sao-eternas

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Tintin, um grande belga

Graças à ambição desmedida de Leopoldo II, que agiu a título individual, a pequena Bélgica acabou por se dotar, no final do século XIX, de um enorme império colonial, a atual República Democrática do Congo, também conhecida por ex-Zaire ou por antigo Congo Belga. E enquanto, até 1908, o território foi propriedade pessoal do monarca, sob o nome de Estado Livre do Congo, ganhou fama de exercer uma violência sobre as populações africanas que batia a de qualquer outra colónia detida por europeus. O lucro era o objetivo, e quase tudo valia para se maximizar esse lucro, como afirma o americano Robert Harms, autor do agora publicado em Portugal Terra de Lágrimas, uma história da colonização da África Equatorial, em grande medida o tal Estado Livre do Congo.

Entrevistei Harms na mesma semana em que em Lisboa aconteceu a inauguração de uma exposição dedicada a Tintin. Eternamente jovem, irreverente e corajoso, o jornalista criado por Hergé continua a convencer geração após geração: veja-se as vendas dos livros, o sucesso dos filmes e até mesmo a popularidade da memorabilia, comprada em Bruxelas ou mundo fora numa qualquer livraria especializada em BD. Ora, Tintin no Congo, segundo livro da série, já chegou a ser criticado por infantilizar os africanos, e Hergé foi acusado de ser racista, o que acabou por ser resolvido por um tribunal belga, que se pronunciou contra a proibição de reeditar o título e enquadrou o autor na sua época - 1931 foi o ano da primeira edição. Triunfou o bom senso, foi a conclusão então, de alívio, e felizmente Tintin pode continuar a ser apreciado em toda a sua genialidade. Que o diga a Gulbenkian, que tem já bilhetes esgotados para alguns dos próximos dias. Portugal, onde Tintin teve a primeira tradução, é um país rendido ao repórter de poupa loira.

Uma palavra para a pátria de Leopoldo II e de Tintin, perdão, de Hergé, essa Bélgica que por vezes parece tão frágil, ameaçada pelo secessionismo flamengo, mas que é um país pujante, seja pela economia, seja pela cultura, e que empresta à Europa a sua capital como capital também do continente. Com uma população semelhante à portuguesa, mas num terço do território, está hoje nas 25 maiores economias do mundo e dentro do grupo dos 15 países com maior índice de desenvolvimento humano, segundo as estatísticas das Nações Unidas.

Constituída por valões, de língua francesa, flamengos, que falam neerlandês, e ainda uma pequena comunidade de língua alemã, a Bélgica moderna nasceu na primeira metade do século XIX, mas a sua história é bem mais antiga, com os próprios romanos a identificarem os habitantes como diferentes dos gauleses, a sul. Por ironia, dois mil anos depois nem sempre essa diferença é percebida, a ponto de um grande nome da chamada chanson française ser Jacques Brel, belga nascido em Schaerbeek, na região de Bruxelas.

Hergé, de seu verdadeiro nome Georges Remi, conseguiu que Tintin fosse sempre reconhecido como belga. E ele próprio, de pai valão e mãe flamenga, encarna muito bem a belgicidade que seria uma pena acabasse vítima do nacionalismo dos ricos.

Um dia escrevi um artigo com o título "A rainha heroína dos belgas filha de uma portuguesa". Tratava da história de Isabel da Baviera, bisavó do atual rei Filipe, uma monarca que resistiu à invasão alemã na Primeira Guerra Mundial e salvou judeus na Segunda. O avô dela era D. Miguel, a mãe D. Maria José de Bragança. Hoje realço antes o marido de Isabel, o rei Alberto I, pelo que fez pelo seu país em 1914: recusou o ultimato alemão para deixar passar as tropas que invadiriam a França contornando as defesas gaulesas; depois de violada a neutralidade do seu país, encabeçou a resistência e permaneceu numa parcela de território nunca tomada pelo inimigo; figurou entre os vencedores quando a Primeira Guerra Mundial terminou, em 1918.

Alberto I era sobrinho de Leopoldo II e deu uma nova aura à coroa e à Bélgica. Morreu em 1934, ano da edição de Os Charutos do Faraó, o quarto álbum de Tintin, onde surge o nosso Oliveira da Figueira.

Leonídio Paulo Ferreira in DN

sábado, 2 de outubro de 2021

Hergé no Expresso e Público

  


Público, Suplemento Ypsilon, 1 de Outubro de 2021


Expresso, Revista E, 1 de Outubro de 2021

Exposição Hergé na Fundação Calouste Gulbenkian

 



















Catálogo da Exposição Hergé em Portugal

 No âmbito da exposição Hergé, a decorrer na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, foi editado a  versão portuguesa do Catálogo da exposição, contendo uma surpreendente separata intitulada "Hergé em Portugal".



Hergé (Catálogo de exposição), Moulinsart/Fundação Calouste Gulbenkian, 48 + separata "Hergé em Portugal", cor, capa dura, 15€