sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Tintin em liberdade

O professor universitário e antigo ministro, Rui Pereira, publicou no jornal «Correio de Manhã» de ontem um artigo de opinião sobre o acórdão do tribunal de Bruxelas referente ao episódio «Tintin no Congo».


O cidadão congolês Bienvenu Mbutu Mondondo dedica-se, desde 2007, a uma empresa singular: conseguir que o álbum ‘Tintim no Congo’, de Hergé, seja ilegalizado. Assim, intentou num tribunal belga uma acção em que acusa a banda desenhada de racismo, por, nas palavras do seu advogado, "fazer a apologia da colonização e defender a supremacia da raça branca sobre a raça negra". Felizmente, o bom senso prevaleceu, e o tribunal julgou improcedente o pedido, frisando que é necessário ter em conta o contexto histórico da publicação e a intenção do autor.


Acompanho, desde os meus seis anos, as aventuras do célebre repórter e viajante, que constituem uma das pérolas da banda desenhada, e, em particular, da escola franco-belga. ‘Tintim no Congo’ não é, garantidamente, o melhor Hergé, perdendo na comparação com álbuns como ‘O lótus azul, ‘A orelha quebrada’, ‘O segredo do Licorne’ ou ‘O Templo do Sol’. Porém, a pretensão de ilegalizar um livro ingénuo, que difunde o estereótipo rousseauniano do ‘bom selvagem’, é, para além de ridícula, algo assustadora, pelo seu cunho intolerante e censório.


É bem conhecida a tentação ‘revisionista’ de condicionar não apenas a arte futura mas também a arte do passado, podando-a dos aspectos ‘incorrectos’. Morris foi obrigado a substituir o cigarro de Lucky Luke por uma palha ao canto da boca, em nome do antitabagismo, e não me espantaria que, por obra de efeitos especiais, Humphrey Bogart aparecesse um dia destes a cortejar Ingrid Bergman de chupa-chupa na mão. Com a legitimidade de quem abandonou quatro maços de tabaco diários há mais de dez anos, dispenso uma tal ‘actualização’ artística.


Perante todas estas investidas contra a liberdade de expressão e de criação artística, devemos recordar uma lição importante. A luta contra o racismo e a xenofobia envolve medidas políticas de natureza variada, que não se confinam ao plano penal e mesmo jurídico em geral. Porém, só o incitamento intencional à discriminação pode legitimar restrições à liberdade ou a criação de crimes. É esse o sentido da Decisão-quadro de 28 de Novembro de 2008 do Conselho da União Europeia e também do artigo 240º do Código Penal, na versão dada pela reforma de 1998.


http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/opiniao/rui-pereira/tintim-em-liberdade

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Tribunal belga decidiu que Hergé não era racista e “Tintin no Congo” continuará nas livrarias

Acusar Hergé de racismo sem ter em conta o contexto histórico em que foi publicada a aventura “Tintin no Congo” é absurdo. Foi este, em substância, o entendimento da justiça belga na acção colocada por Bienvenu Mbutu Mondondo, um cidadão da República Democrática do Congo a residir na Bélgica que pedia a retirada do mercado daquela banda desenhada.O tribunal considerou que a pretensão do queixoso só podia ser aceite se fosse feita prova de que aquela obra de Hergé tinha “uma intenção discriminatória”. “Tendo em conta o contexto da época, Hergé não podia estar animado de uma tal vontade”, considera a sentença. 

O advogado da Casterman (editor franco-belga de Tintin) e da Moulinsart (detentora dos direitos da obra do artista belga) saudou a sentença dos juízes. “É uma decisão sã e plena de bom senso, segundo a qual é necessário olhar para uma obra no seu contexto e compará-la com as informações e ‘clichés’ da sua época”, afirmou Alain Berenboom. “É a época da ‘revista negra’ de Josephine Baker e da exposição colonial de Paris. Hergé está sintonizado com o seu tempo, não há racismo, mas um paternalismo amável.”

Desde 2007 que Mbutu Mondondo está empenhado em conseguir que a aventura “Tintin no Congo” seja proibida ou, pelo menos, seja incluído um texto introdutório que explique o contexto cultural da época em que foi publicada, nos anos 30 do século passado. É isto o que acontece no Reino Unido desde 1991, com o álbum a ser arrumado nas livrarias nas secções para adultos e não na área infanto-juvenil.

A acusação defende que Hergé apresentou o homem negro como “preguiçoso, dócil ou idiota” e, para cúmulo, “incapaz de se exprimir num francês correcto”. Segundo Ahmed L’Hedim, advogado de Mondondo, “é uma banda desenhada racista, que faz a apologia da colonização e da superioridade da raça branca sobre a raça negra”. “Ponham-se no lugar de uma menina negra de sete anos que descobre ‘Tintin no Congo’ com os seus colegas de classe.” Esta campanha contra a segunda aventura de Tintin – e também a que tem um enredo mais controverso, quando lida à luz do nosso tempo – tem merecido regularmente destaque nos média, onde detractores e defensores de Hergé esgrimem argumentos. No passado mês de Novembro, Valery de Theux de Meylandt, procurador do rei belga, tornou pública a sua posição sobre o assunto, considerando que aquela aventura não tinha nada de racista. Para o advogado de Mondondo, pelo contrário, é “claro que os estereótipos que figuram neste livro lido por um número considerável de crianças, têm consequências no seu comportamento actual”. E concluí: “O racismo encontra o seu ponto de apoio neste género de estereótipos”.

Imagem caricatural faz rir... os negros

Em Outubro de 2010, o então ministro congolês da Cultura defendeu a perspectiva veiculada por Hergé nesta aventura: “Quando o livro foi escrito, os congoleses não sabiam de facto falar francês. Na época descrita na obra era efectivamente preciso usar o bastão para pôr os congoleses a trabalhar ou mais simplesmente para os impelir ao trabalho.” Daniel Couveur, jornalista do diário belga “Le Soir”, é autor de um livro sobre o tema (“Tintin au Congo de Papa”) no qual propõe a introdução nos álbuns de uma advertência sobre as circunstâncias e contexto que a tornaram possível aquela aventura, sublinhando ao mesmo tempo o seu valor pedagógico. Cita o que foi publicado em 1969 pela revista “Zaire”: “Há uma coisa que os brancos que suspenderam a circulação de ‘Tintin no Congo’ não compreenderam (...) Se certas imagens caricaturais do povo congolês (...) provocam um sorriso dos brancos, elas fazem rir abertamente os locais, porque os congoleses encontram aí matéria para fazer pouco do homem branco ‘que os via daquela maneira’!” Quem não encontrou motivo para rir em todo este processo foi o Conselho Representativo das Associações Negras em França. Louis-Georges Tin, o seu presidente, diz que a questão central é a de saber se “Tintin no Congo” difunde ou não uma mensagem racista ainda hoje, o que é dificilmente contestável”: “A partir deste julgamento, qualquer um pode afirmar que não é racista, anti-semita, sexista ou homofóbico escudando-se atrás do ‘contexto de época’”. Os advogados de defesa contra-argumentam: “Sim, a liberdade de expressão pode ser limitada e o racismo pode ser um fundamento dessa medida, mas nesse caso é preciso poder explicar por que se torna necessário proibir esta publicação para bem da nossa sociedade. Ora, nada disso ficou demonstrado.”

Carlos Pessoa in Público