sexta-feira, 29 de julho de 1994

O Tibete contado aos ocidentais

Em Março de 1959, a capital do Tibete, Lhassa, estava a ferro e fogo, na sequência de uma insurreição contra a presença chinesa no país. Na mesma altura, corria a publicação de “Tintin no Tibete”, na edição belga da revista “Tintin”. Trinta e cinco anos depois destes eventos, uma importante exposição dá a conhecer em Bruxelas, até 14 de Agosto — e no próximo mês de Outubro, em Paris —, muito da realidade quotidiana de um povo amordaçado e em vias de rápida descaracterização social e cultural. “No Tibete com Tintin” é uma fascinante viagem pelo país do tecto do mundo, com os desenhos de Hergé à mistura.
De madrugada, a mulher acende o lume com algumas folhas secas e põe água a ferver. O homem abastece as lâmpadas a manteiga no altar dedicado às divindades tutelares, queima um pouco de incenso, renova a água das oferendas e faz uma fumigação destinada a purificar o espaço doméstico e a alimentar as entidades invisíveis que habitam a sua casa. Em seguida, reúnem-se todos os membros da família para a primeira refeição do dia, composta de “tsampa”, farinha de cevada torrada e principal alimento dos tibetanos, de um caldo de carne e de chá, um líquido rosado e a escaldar, que chega a ser beberricado umas 50 vezes por dia.
Depois, vêm as tarefas quotidianas. A mulher ocupa-se das crianças, prepara os alimentos e as refeições, tece a lã, apanha os excrementos que servirão de combustível e põe-os a secar, recolhe água, cuida dos animais e executa a maior parte dos trabalhos agrícolas quotidianos.
O homem, por seu lado, participa nas tarefas mais pesadas — sementeiras e colheitas —, mas a sua vida é principalmente itinerante: vai à cidade fazer compras, negoceia as trocas com as aldeias vizinhas, recolhe o sal e caça os animais que asseguram os rendimentos suplementares do agregado familiar.
Na residência, o mobiliário é sumário. Móveis em madeira ou metal, armários com as peças de loiça de cobre, por vezes com incrustações de prata. Junto às janelas, ao longo das paredes e atrás de mesas baixas em madeira esculpida e pintada com dragões e motivos florais, pequenas almofadas muito duras estão dispostas em cima de tapetes e servem de assento durante o dia, e de cama à noite. Os bens da família podem ver-se nas paredes: selas, armas, a albarda do iaque e os arreios dos cavalos, um tear e, sobretudo, numerosos sacos que contêm alimentos, peles e tecidos, que servirão para fazer novas compras. Foi com esta visão que Alexandra David-Néel, a primeira mulher ocidental a ter entrado no Tibete, poderá ter-se deparado, em 1924, quando chegou ao país. Aos 56 anos, e depois de cinco meses de viagem pelas mais áridas regiões asiáticas na companhia do lama Yongdem, contemplava pela primeira vez a imponente massa do Potala, o palácio dos dalai-lama em Lhassa. Mais tarde, voltaria de novo ao Tibete, e dessas viagens e estadas resultaram obras preciosas para conhecer as tradições, usos e costumes do povo tibetano.
Tradicionalmente, o Tibete foi sempre um país fechado ao olhar estrangeiro. Longe do mar, protegido por extensos desertos e pelas montanhas mais altas do mundo, compreende-se facilmente porque motivo a presença de ocidentais foi esparsa. Tanto quanto se sabe, coube a dois portugueses — os missionários jesuítas António de Andrada e Manuel Marques — o privilégio de serem os primeiros ocidentais a entrarem no Tibete, no século XVII. Outros exploradores e viajantes passariam pelo país; já neste século, durante a década passada, vários milhares de turistas procuraram satisfazer a curiosidade e o fascínio que o “país das neves” tem gerado secularmente nos espíritos europeus.
O interesse pela região cresceu nas últimas décadas, em virtude de uma política muito agressiva por parte da República Popular da China, que tem vindo a ser denunciada nas instâncias internacionais. Todavia, continua a saber-se muito pouco sobre o Tibete. Por isso, a exposição organizada pela Fundação Hergé, e que pode ser vista nos Museus Reais de Arte e História, em Bruxelas, constitui a todos os títulos uma excelente oportunidade de travar conhecimento com uma civilização antiquíssima e, para os ocidentais, tão estranha quanto fascinante.
Entre a cadeia montanhosa dos Kun-Lun, a norte, e o Grande Himalaia, a sul, o Tibete é um enorme país de 2.500.000 quilómetros quadrados, situado a uma altitude média de 4000 metros acima do nível do mar. Ao contrário de uma ideia muito difundida, o país não é uma desoladora e hostil extensão de frio e neve. É certo que a parte norte é atingida por ventos violentos e está “semeada” de lagos salgados, onde vive pouca gente — na maioria caçadores e famílias nómadas. Mas a leste e a sul, a natureza foi mais benevolente. Irrigado pelo Brahmaputra e pelos seus afluentes, o Tibete Central é o núcleo central do país e o berço da civilização tibetana. A fertilidade dos terrenos contribuiu para a fixação de uma população agrícola que cultiva a cevada, o trigo, a mostarda e alguns legumes. Lhassa, na margem do rio Kyichu, a 3730 metros de altitude, é a capital desde o século VII, função que mantém na Região Autónoma do Tibete, como foi baptizada pelos chineses em 1965.
A visão que a cidade dá hoje de si é perturbadora, como se pode verificar pelas imagens expostas em Bruxelas. Importantes bairros tradicionais foram pura e simplesmente arrasados pelos chineses, para darem lugar a “modernos” bairros de avenidas largas e casas de betão. São as zonas habitadas pelos quadros enviados por Pequim, que empreendeu uma política de povoamento que visa transformar os tibetanos numa minoria na sua própria terra. Ao mesmo tempo, liquida-se uma referência cultural perene e faz-se desaparecer o dédalo de ruas que serviram, em outras alturas, para abrigar os habitantes que contestavam a presença chinesa e ali encontravam refúgio contra a repressão.
No resto do país, e consoante as características da paisagem e do clima, são visíveis diversos tipos de povoamento: casas de tijolo cru com tectos-terraço no Tibete Central, casas de madeira com telhado inclinado no Sul, torres e residências de pedra na região de Kham, edifícios chineses junto à fronteira, sólidas tendas de cor castanha escura — está uma montada num dos núcleos da exposição — feitas de pele de iaque, utilizadas pelos nómadas do Tibete Ocidental e Setentrional.
A casa ou a tenda reflectem, em todo o caso, a visão do mundo e do universo característica deste povo: a entrada principal está sempre virada a leste, e o interior é dividido em três níveis hierárquicos, de acordo com um princípio que identifica o “alto” com o “puro” e o “baixo” com o “impuro”. O rés-do-chão é para os animais, alfaias agrícolas e adubos de origem animal ou vegetal; o andar intermédio é a residência humana propriamente dita; e o nível superior é dedicado aos deuses, encontrando-se aqui a capela doméstica, onde a família presta honras às divindades do panteão búdico. Quanto à residência — ou, no caso dos nómadas, a tenda — divide-se em duas metades: à esquerda o domínio das mulheres e à direita o dos homens e dos convidados. O altar, onde estes colocam o seu relicário, fica situado ao fundo.
A religião constitui uma referência vital — e, mais do que nunca, desde a ocupação pelos comunistas chineses — de toda a sociedade. Introduzido no país no século VIII, o budismo tibetano — uma “variante” do budismo indiano — disseminou-se graças ao apoio da corte e de todas as camadas sociais, tornando-se a religião oficial. A queda da dinastia real, no século seguinte, arrastou consigo o budismo, que voltou a ser objecto de uma “segunda acção de propaganda” no início do século XI.
Foi seu motor o monge indiano Atisha, que insistiu, a partir de 1042, na necessidade de instaurar a ordem monástica e a obediência do discípulo ao seu mestre espiritual ou “lama”. Desenvolvem-se diferentes escolas, que enfatizam aspectos particulares da doutrina ou da prática budistas: acento tónico nas práticas tântricas, nas quais a meditação e as fórmulas mágicas desempenham um papel decisivo; ou privilegiar do estudo dos textos dogmáticos e nomeadamente da dialéctica.
A escola dos “gelugpa” (literalmente, “os virtuosos”), fundada no século XIV e conhecida no Ocidente pela designação de “gorros amarelos”, regista um processo de implantação mais rápido, tornando-se hegemónica no conjunto do território no século XVII. Os seus líderes espirituais, os dalai-lama, tornam-se também os dirigentes temporais do “país das neves”. A sua presença na vida quotidiana traduz-se na necessidade de observância, por parte dos fiéis, de práticas que tornem propícios os espíritos do mundo e de honrar as divindades através de oferendas e orações. Donativos aos mosteiros, encomendas de estátuas e de monumentos religiosos, peregrinações ou simples deambulações em torno de edifícios sagrados são actos de devoção aconselhados para garantir um melhor nascimento na “roda da existência”.
A exposição “No Tibete com Tintin” dá uma enorme ênfase a esta dimensão religiosa da vida. É que esse inervamento da sociedade é tão profundo que se faz sentir nas manifestações de ordem literária e artística. A arte tibetana é, antes de tudo, uma arte sacra cuja razão de existir é a reprodução das imagens, assuntos e princípios da religião. As obras raramente são assinadas, pois os artistas não se consideram como criadores, mas como artesãos, “fabricantes de divindades”.
A exuberância das cores, o ouro das estátuas, a opulência das formas, o brilho dos brocados e a prodigalidade da ornamentação dos interiores — à vista de todos, nomeadamente na reconstituição do templo budista patente na parte final da exposição — disfarçam o reduzido lugar concedido à imaginação dos artistas e contrastam vigorosamente com a incrível sobriedade dos edifícios que acolhem aquelas peças. Do mesmo modo, a literatura é praticamente toda de cariz religioso.
O livro é alvo de uma profunda veneração, pois é considerado o terceiro corpo — verbal — do próprio Buda, a par do corpo físico (as imagens) e do corpo espiritual (a “mandala” ou o santuário). Deixar um livro no chão, passar por cima dele ou tocar-lhe com o pé são gestos interditos. Por maioria de razão, deitá-lo fora ou destruí-lo são actos absolutamente proibidos. As peças de teatro, a dança ou a música — e como ela é lindíssima e inspirada, a avaliar pelas gravações que ecoam pelo espaço da exposição — são outras tantas manifestações culturais impregnadas pelo mesmo sentimento de respeito e veneração pela divindade.
A proclamação da República Popular da China em 1 de Outubro de 1949 por Mao Tsé Tung teve um eco muito leve em Lhassa. Todavia, um ano mais tarde, a profecia que o 13º Dalai-Lama fizera em 1933 iria tornar-se realidade: “Poderá suceder que aqui, no centro do Tibete, a religião e a administração secular sejam atacadas simultaneamente do exterior e do interior... As terras e os bens dos mosteiros e dos monges serão destruídos. Os costumes administrativos dos três reis religiosos serão enfraquecidos. Os quadros do Estado, eclesiásticos e seculares, verão as suas terras serem apreendidas e os seus bens confiscados, e eles próprios serão obrigados a servir o inimigo ou a errar através do país, como o fazem os mendigos. Todos os seres passarão por terríveis provas e serão invadidos pelo medo; os dias e as noites alongar-se-ão lentamente no sofrimento.” No dia 7 de Outubro de 1950, 80.000 soldados chineses invadem o Tibete. Apesar da resistência encarniçada dos habitantes, o país é ocupado.
Num primeiro momento, as autoridades comunistas ainda apostam na via do compromisso. Uma delegação tibetana assina em Pequim, a 23 de Maio de 1951, um acordo em 17 pontos, nos termos do qual os tibetanos renunciam à sua soberania e admitem que o país faz parte integrante da China. Esta, por seu lado, compromete-se a não alterar o sistema político, nem o estatuto do Dalai-Lama e o papel dos mosteiros. A comunização acelerada do país põe a nu a estratégia comunista e os actos de rebelião surgem um pouco por todo o país. O exército chinês afoga a resistência em sangue e, em Março de 1959, o actual Dalai-Lama abandona o país. No mês seguinte, Lhassa insurge-se em peso e a repressão é brutal, causando milhares de mortos. Algumas raras imagens registadas na época, exibidas em contínuo numa das salas dos Museus Reais de Arte e História, dão conta da brutalidade dos soldados chineses. Segue-se um êxodo calculado em mais de 100.000 habitantes.
As perseguições contra os monges tibetanos tornam-se mais violentas que nunca. As terras são distribuídas aos que a propaganda chinesa apresenta como os “servos e escravos libertados das suas grilhetas”. Mas o pior estava para chegar, e chegou em 1966 com a Revolução Cultural. Ainda hoje está por fazer o balanço global da fúria destruidora dos comunistas chineses nos dez anos que se seguiram. Milhares de lamas e dirigentes tibetanos são sistematicamente submetidos à “crítica das massas populares” e, em seguida, enviados para campos de “reforma pelo trabalho”, torturados e, em alguns casos, executados.
A desorganização da economia, por força de uma colectivização forçada dos campos, provoca uma onda de fome que causa milhares de vítimas.
Os chineses investem também contra o património cultural e religioso do Tibete. Mosteiros e outros locais de culto são criminosamente pilhados e destruídos. Os objectos de ouro e prata são inventariados e enviados para o interior da China. Jóias preciosas são, pura e simplesmente, fundidas e contrabandeadas como ouro em Hong Kong e noutras cidades. Em 1976, quando a Revolução Cultural chegou ao fim, restavam apenas dez dos cerca de 6000 mosteiros tibetanos de outrora. O Potala e o templo de Jokhang só se salvaram porque o primeiro-ministro chinês na altura, Chu En-Lai, deu ordens expressas nesse sentido.
A chegada ao poder de Deng Xiaoping traduziu-se num abrandamento da atitude dura de Pequim para com o Tibete. Foram aplicadas reformas económicas que, para terem êxito, exigiam uma relativa tolerância política e religiosa. Foi autorizada a abertura de alguns mosteiros e os monges puderam regressar. Nos anos 80, o país abriu-se progressivamente ao exterior e o turismo foi encorajado pelas autoridades chinesas. A partir de Katmandu, mais de 40.000 turistas ocidentais visitaram o Tibete em 1987.
Com estes gestos de boa vontade, as autoridades chinesas esperavam enterrar os traumas de mais de dez anos de terror, que fizeram, segundo as autoridades tibetanas no exílio, cerca de 1,2 milhões de mortos. No entanto, a abertura ao mundo permitiu o conhecimento no exterior do drama tibetano e, simultaneamente, encorajou a resistência local.
Em Setembro de 1987, 26 lamas desafiam a polícia chinesa desfilando pelas ruas de Lhassa com uma bandeira nacional tibetana e exigindo a independência do país. As manifestações sucedem-se um pouco por todo o país e tornam-se famosas as imagens dos monges tibetanos que enfrentam com pedras na mão as armas ligeiras e os carros de combate da polícia chinesa.
Desta vez, a China não recorre de novo aos métodos maoístas de repressão maciça. Sem deixar de reprimir as manifestações públicas — com a repressão a causar muitos mortos —, o Governo envereda por um processo de “sinisação” da sociedade tibetana, que não deixa de fora nenhum aspecto: os modos de vestir, a alimentação, o ambiente arquitectónico, os tempos livres adquirem o rosto da aculturação imposta pelo ocupante. A língua chinesa passa a ser o idioma oficial, ensinado nas escolas e usado na vida quotidiana. E as emissões de televisão, feitas por satélite para o Tibete, contribuem para modificar lenta, mas seguramente, os espíritos, chegando à mais recôndita e ínfima aldeia do país.
Por fim, a China põe em marcha uma gigantesca operação demográfica, que consiste em incentivar e encorajar a migração de chineses para o Tibete. Apesar de muitas zonas serem proibidas a estrangeiros, é possível notar o peso da presença chinesa nos grandes centros. Segundo observadores independentes, dois terços dos habitantes da capital são oriundos da China. E os colonos continuam a chegar em grandes quantidades, o que leva o Dalai-Lama a falar, a propósito deste programa de esmagamento da cultura e da população tibetana, de “solução final”. Haverá futuro para o Tibete? Pierre-Antoine Donnet, autor de um dos textos do excelente catálogo da exposição “No Tibete com Tintin”, responde afirmando que a sobrevivência depende de duas condições indispensáveis: “A capacidade de os tibetanos entrosarem harmoniosamente o budismo e a modernidade, e a vontade das gerações tibetana e chinesa ascendentes em forjarem um diálogo autêntico e fecundo

© 1994 Público/Carlos Pessoa

quinta-feira, 28 de julho de 1994

“Os meus sonhos eram todos brancos”

No final dos anos 50, a popularidade de Hergé e do seu personagem Tintin iam de vento em popa. As tiragens multiplicavam-se e a fasquia do milhão de exemplares foi pela primeira vez ultrapassada. Mas nem tudo corria no melhor dos mundos: em 1958, Hergé foi afectado por uma grave crise pessoal que atingiu seriamente o seu trabalho criativo. “Tintin no Tibete” é, no seu todo, a expressão sublimada, e sublime, desse conflito interior.
“Naquela época, eu atravessava uma séria crise e os meus sonhos eram quase todos em tons de branco. E eram muito angustiantes. Tomava nota deles e recordo-me de um em que me encontrava numa espécie de torre constituída por rampas sucessivas. Folhas mortas caíam e cobriam tudo. A uma dada altura, numa espécie de alcova de uma brancura imaculada, aparecia um esqueleto todo branco que tentava apanhar-me. E nesse instante, à minha volta, o mundo tornou-se branco, branco. E eu punha-me em fuga, uma fuga desvairada...” Na série de entrevistas concedidas por Hergé a Numa Sadoul (“Entretiens avec Hergé”, de Numa Sadoul, Editions Casterman), é assim que o criador de Tintin recorda esse crítico ano de 1958. Nessa época, o autor dava forma, com grande esforço, a “Tintin no Tibete”, uma aventura que começou a ser publicada na revista “Tintin” (Bélgica) em 17 de Setembro de 1958, prolongando-se até 25 de Novembro do ano seguinte.
Há quase 35 anos.
O que os leitores actuais do álbum editado em Portugal pela Difusão Verbo não podem saber — a menos que procurem “por detrás” da obra as circunstâncias em que ela foi gerada e produzida — é que o psicanalista junguiano com quem Hergé fazia terapia o aconselhou vivamente a abandonar o trabalho quando ouviu a descrição daquele sonho.
Felizmente para nós, Hergé não lhe deu ouvidos, e assim surgiu “Tintin no Tibete”.
A atenção e a curiosidade que a obra do mestre belga têm despertado entre os estudiosos — é curioso constatar que o seu “rival” Astérix, apesar de constituir hoje um êxito de tiragens e vendas muito superior ao de Tintin, nunca suscitou tanto interesse por parte dos analistas e críticos — encontra nesta banda desenhada um terreno de trabalho de uma fertilidade quase sem limites. Na edição especial da revista francesa “(À Suivre)” de Abril de 1983, publicada um mês após a morte de Hergé, Benoît Peeters — o “tintinófilo” que é, simultaneamente, o argumentista do ciclo das Cidades Obscuras, em conjunto com o desenhador Schuiten — refere-se a esta obra como uma “forma de exorcismo”, o que na sua opinião lhe conferiria “esse tom tão particular, muito mais sério do que o das outras aventuras de Tintin”. De facto, há uma intensidade dramática em toda a narrativa que não cessa de aumentar até ao clímax — o momento em que o herói encontra o seu amigo Tchang, que todos julgam morto ou vítima do Yéti. E Numa Sadoul, nas já citadas “Entretiens avec Hergé”, sugere que esta história é como uma “espécie de ‘hino ao amor’”. “Digamos uma espécie de canto dedicado à amizade”, responde Hergé. O ponto de partida deste episódio — um sonho premonitório que leva Tintin, contra ventos e marés, a voar em socorro do seu amigo, quando há todas as probabilidades de Tchang estar morto — tem ocupado mais de um crítico. Os fenómenos paranormais atravessam com uma certa constância a obra de Hergé e são inventariados pelo mesmo Numa Sadoul num artigo publicado na desaparecida revista “Cahiers de la BD”, inteiramente consagrado ao autor belga. Premonições, telepatia, intervenções extraterrestres, simbolismos mais ou menos “obscuros” e outros fenómenos subjectivos têm o seu lugar, discreto por vezes, mais aberto em outras, nas histórias de Tintin. Acima de todos, porém, está o sonho. Para mais, premonitório...
“Mas eu acredito nos sonhos premonitórios”, respondeu Hergé a Sadoul. “No mesmo álbum, há também o fenómeno de levitação, que foi referenciado por um significativo número de autores dignos de crédito, como Alexandra David-Neel e Fosco Maraini [exploradores do Tibete no começo deste século], que passaram longas estadias no Tibete.”
O modo como Hergé trabalha este material ressalta claramente em “Tintin no Tibete”: entregando-se ao sonho, o autor selecciona entre os elementos os que são mais utilizáveis de um ponto de vista gráfico. Mas, ao contrário do que se poderia concluir, não é apenas esta dimensão do onirismo que interessa ao artista: “Eu utilizo a sua lógica [do sonho] ou, melhor ainda, a sua aparente falta de lógica. Os sonhos que habitualmente temos são tão vagos e de tal modo fluidos que é difícil desenhá-los: sente-se que é mais ou menos aquilo, mas quando lhes queremos dar uma forma, eles escapam-se-nos. É por isso que se torna necessário acrescentar ou suprimir coisas, ou seja, reconstruir o sonho.”
Como veículo e criador de símbolos, o sonho tem de qualquer modo um significado que pode ser associado à aventura individual. Por esse motivo, e por estar tão profundamente alojado no âmago da consciência, ele escapa ao seu próprio criador, surgindo como a expressão mais secreta e mais exposta de cada um. É isso que Hergé faz de forma mais ou menos explícita através dos comportamentos e acções do seu herói. E, mais do que em qualquer outra aventura, o simbolismo de “Tintin no Tibete” tem de ser avaliado à luz do percurso do próprio autor. A presença tutelar e avassaladora do branco — neste caso, a neve dos Himalaias por onde Tintin, Haddock, Milú e o “sherpa” se aventuram — tem tudo a ver com as “visões” e os sonhos-pesadelos de Hergé.
Significando tanto a ausência de cor, como a soma de todas as cores, o branco surge associado ao começo e ao fim da vida diurna e do mundo tal como ele se manifesta. Em numerosas tradições, o branco é a cor do “candidato”, ou seja, daquele que vai mudar de condição. Por isso, tem um valor limite, constituindo uma cor de passagem, no sentido em que essa ideia se associa aos ritos de passagem, que assinalam a morte de uma condição e o renascimento em e para outra. A esta luz, compreende-se perfeitamente que Hergé, numa fase de transição e mudança profunda na sua vida — de que o seu divórcio e posterior casamento com Fanny Vlamynck é apenas um aspecto —, tenha sido levado a “glosar” em todas as direcções o tema do branco.
Daí que a neve seja simultaneamente algo de sufocante e perigoso, mas que contém também em si mesmo uma dimensão redentora. Ora, se Tintin e os seus pares aceitam correr os riscos, enfrentar os perigos e lidar com as ameaças de uma dura prova, é porque sabem que no final há um prémio para a sua coragem, abnegação e amor: o encontro com Tchang. “Tintin no Tibete” é, de facto, o comovente hino à amizade de que Hergé falou um dia.

© 1994 Público/Carlos Pessoa

quarta-feira, 9 de fevereiro de 1994

Como se diz Tintin em russo?

A internacionalização de Tintin já não é de agora. Traduzido em dezenas de línguas e países, continua a ser o mais universal dos heróis europeus de banda desenhada. Mas havia uma fronteira a franquear, ainda na Europa: a da Rússia.
A tradução para russo e distribuição naquele país pela Casterman dos dois primeiros álbuns das aventuras do personagem de Hergé — “O Templo do Sol e “As Sete Bolas de Cristal” —, divulgada no passado mês de Janeiro, é o primeiro grande acontecimento editorial do ano de 1994. Aquela editora francófona testa deste modo as potencialidades de um mercado vastíssimo, alimentando expectativas quanto a uma eventual adesão dos leitores nos outros países da ex-União Soviética.
Considerado durante décadas um herói reaccionário, viu a difusão das suas histórias interdita naquele país ex-socialista onde, curiosamente, viveu a sua primeira e polémica aventura. De facto, o próprio Hergé se recusou a alimentar a polémica em torno dessa primeira aventura, proibindo a reedição de “Tintin no País dos Sovietes”. Apesar disso, ela continuou a ser objecto de reedições piratas no Ocidente, que circularam com maior ou menor facilidade. Curiosamente, esta é também a única aventura de Tintin que o seu autor nunca recuperou, como fez com as restantes bandas desenhadas inicialmente publicadas a preto e branco e alvo de um “restyling” gráfico e introdução de cor, após o fim da segunda Guerra Mundial.

© 1994 Público/Carlos Pessoa