terça-feira, 14 de abril de 2020

Comic Sans Serif

Mais uma do baú dos belos tesourinhos! Tintin regressa no Século 21, e depara-se com um mundo bizarro, minado pela estética dominante do repelente Comic Sans.

Um Haddock rendido à abominação; uma Castafiore proxeneta de profissionais ciberaumentadas; Dupond/t-Cops nos seus aero-Dupond/t-mobiles; um Milu embalsamado num skate voador; e para rematar, a horrível revelação e o destino final de Nestor e do Professor Girassol. Tudo isto envolto numa técnica narrativa Eisneriana que tanto gozo me deu escrever, e que o Carlos Pedro ilustrou na perfeição.

Isto foi publicado no fanzine temático do saudoso Geraldes Lino, e terá cerca de 10 anos, numa fase profundamente criativa da minha vida, em que disparava aparentemente (boas) ideias em todas as direcções. E perdoem-me aqui a imodéstia, mas sempre tive enorme orgulho nesta curta, em que eu e o Carlos usámos e demonstrámos as inúmeras técnicas narrativas que a BD permite.

E sim. De propósito, e uma vez na vida, legendei parcialmente uma BD a Comic Sans

Mário Freitas, 26/03/2020



Fanzine Efeméride: Tintim no Século XXI, que inclui o "clássico" (se não é, devia ser) Tintim e O Comic Sans Serif, de Mário Freitas, Carlos Pedro e Gisela Martins.

sábado, 11 de abril de 2020

Hergé, obra aberta

 Hergé, obra aberta

Um livro que estuda as influências de Júlio Verne sobre Hergé

TINTIN CHEZ JULES VERNE

Lefrancq Ed., 1998, 165 págs., 3830$00

EM 7 de Janeiro de 1989, a Revista do EXPRESSO evocava, através de uma longa cronologia comentada e ilustrada, os 60 anos da criação de Tintin que, ao tomar o comboio para o País dos Sovietes, estava longe de adivinhar o leque de aventuras em que se veria envolvido. E não só aventuras propriamente ditas, numa vasta geografia pluricontinental, que vai das profundezas dos mares até à Lua, doseando habilmente política, história, exotismo, fascínio pelos diferentes povos e civilizações, respeito etnográfico pelo Outro, problemas sociais de incidência universal, enriquecidas por um conjunto inesquecível de personagens tipificadas envolvidas em situações em que progressivamente sobressaem os valores humanistas sob um relativizante e fino fio de humor. Mas também a aventura do próprio século XX, que perpassa por toda a obra de Hergé, com uma meticulosidade, uma amplitude e um poder de síntese que lhe advêm de se enraizar profundamente no seu tempo e simultaneamente o transcender e sublimar.

Não menos fundamental foi a aventura estética que, se não fundou propriamente a BD europeia, lhe deu indiscutivelmente das primeiras, mais fecundas e sólidas «lettres de noblesse», numa meditada e feliz conjugação de legibilidade, «claridade», simplicidade, fluência, economia, atenção ao pormenor significativo e um espantoso sentido gráfico, cujas ramificações ainda hoje perduram, sem prejuízo do natural surgimento de mais escolas igualmente férteis.

E entre outras aventuras desencadeadas, permanece viva e inesgotável a aventura ensaística e crítica sobre o herói e o autor de BD objecto da mais vasta bibliografia de sempre. E que não esmorece.

Assim, 10 anos passados, a efeméride, assinalada um pouco por todo o lado e no EXPRESSO-Revista de 16/01, continua a justificar-se, não tanto na reevocação de dados básicos conhecidos (embora haja precisões e esclarecimentos novos importantes), não propriamente por chegar aos 70 anos o herói «dos 7 aos 77» (a expressão, aliás, foi criada por volta de 1950 como «slogan» da revista belga Tintin, «Le Journal des jeunes de 7 à 77 ans», que fora criado em 26/09/46), mas pelos imensos contributos que continuam a interrogar a obra e a tentar construir esse «puzzle» fugidio e enigmático, delicado e secreto, arguto e mistificador, pragmático e contraditório, que dá pelo nome de Hergé (22/05/1907 – 03/03/1983), pseudónimo, aliás, como se sabe, a partir das iniciais invertidas (RG), de Georges Prosper Remi Remi (é verdade, duas vezes - e, por favor, ao contrário do que saiu incorrectamente no recente EXPRESSO-Revista referido, escreva-se e leia-se REMI com e mudo e sem acento).

Estes 10 anos viram, entre tantas coisas, a edição integral portuguesa em álbum, pela Verbo, das «Aventuras de Tintin» (excepto Tintin au Pays des Soviets, há muito anunciado), viram a consolidação do «império hereditário» de Hergé nas mãos do inglês Rodwell, segundo marido da «segunda viúva» de Hergé, Fanny, viram obras que, se não trouxeram a síntese definitiva, juntaram mais umas pecinhas ao «puzzle» que persiste em permanecer incompleto.

Foi o caso, em 1996, da biografia de Pierre Assouline, algo polémica, que, apesar de ser uma referência obrigatória, não evitou uma excessiva «exterioridade», não inspirando total confiança quando as simples referências a Portugal balançam entre o erro e o improvável.

Mais estimulante e inovador é Tracé RG de H. van Opstal, tradução francesa de 1998 da edição neerlandesa de 94, que, embora com uma estrutura estranha, é iconográfica e documentalmente muito rico, atraente e importante.

Sirva no entanto de símbolo da obra de Hergé como «obra aberta» entre todas, projectada no futuro, sobre a qual nunca está tudo dito, a recentíssima e muito curiosa análise da significativa influência da obra de Júlio Verne (e, nomeadamente, a iconografia das primeiras edições) nas «Aventuras de Tintin», não tanto sobre o essencial, mas inspirando sequências, episódios, ideias, personagens, o lastro romanesco de que um universo ficcional também é feito. Mistificada pelo próprio Hergé e subestimada por praticamente toda a bibliografia com excepção de Les Amis de Hergé (a revista semestral desta associação criada em 1985 reúne um conjunto fundamental e inacreditável de informação, da mais importante à mais «louca»), a agora mais patente influência de Verne acaba por entreabrir mais um campo de investigação e reflexão, ficando no ar o que terá sido bebido directamente no escritor francês e o que poderá fazer parte da cultura e de um fundo comum de literatura de aventuras, de ciência, de descoberta do mundo, de viagens.

De qualquer forma, alguns confrontos são tão convincentes, que o que admira não é tanto a identidade entre os dois visionários, os dois «romancistas da viagem», mas a subestimação de Verne por Hergé, lembrando-nos a velha lição de que, se os testemunhos dos autores são interessantes, é tão importante o que dizem como o que escondem ou esquecem...

JOÃO P. BOLÉO, Expresso, 02/03/1999