sexta-feira, 17 de setembro de 1999

Uma aventura de Tintim

Acaba de se comemorar em quase todo o mundo o septuagésimo aniversário de Tintim, o famoso repórter, detective e herói da banda desenhada. Dos 7 aos 77, os velhos, os novos e os novíssimos seguidores das peripécias do imberbe e louro moço belga têm relembrado o trajecto dessa figura de um certo imaginário juvenil. Personagens inconfundíveis como o colérico capitão Archibald Haddock, Bianca Castafiore, a divina, a parelha eternamente redundante Dupond & Dupont, o distraído professor Tournesol, o inteligente cão Milú, ou ainda Oliveira de Figueira, comerciante expedito da praça de Lisboa - para além, claro, de Hergé, o criador desta tropa fandanga - aparecem por todo o lado a serem lembrados como verdadeiros notáveis. E são-no de facto, já que intervieram no processo de conhecimento do mundo de gerações inteiras. Mas nas referências que lhes são feitas recordam-se principalmente as aventuras rocambolescas do grupo. Nelas, e partindo sempre de eventos de um presumível interesse jornalístico, tudo evolui, necessária e inevitavelmente, para casos policiais que é preciso resolver. E que, claro, acabam resolvidos.

Aquilo que entretanto ninguém disse ou escreveu, talvez por uma inexplicável distracção colectiva, é que Tintim saiu das páginas dos álbuns e das revistas, ganhou vida própria. Mesmo após a morte de Hergé continuou a viajar, à procura de situações interessantes para contar aos seus leitores, e, fatalmente, envolvendo-se sempre em toda a sorte de factos passados nos países que visita. Para ser franco, posso até revelar que esteve há poucas semanas aqui em Portugal, por incumbência directa do chefe de redacção do seu jornal de Bruxelas. O objectivo era recolher informações sobre a situação criada com as últimas iniciativas do governo português em matéria de política ambiental e com as fortes reacções públicas que estas têm provocado.

Nessa altura, e por um mero acaso, encontrei-o. Com a sua gabardina clara e, tal como seria de esperar, com as suas inconfundíveis calças de golfe. Como tínhamos em tempos sido apresentados e ele tem boa memória, reconheceu-me imediatamente. Depois de um cordial abraço e de algumas daquelas generalidades próprias de duas pessoas que se reencontram depois de longos anos sem se verem, começou a contar-me aquilo que realmente andava por cá a fazer.

"Sabes, há já muito tempo que não vinha a este teu país e, de facto, isto está tudo muito mudado". Acenei que sim com a cabeça, lembrando-me que a última estadia de Tintim em terras lusitanas tinha sido ainda antes de 1974, e ia começar a dizer qualquer coisa a propósito. Mas ele nem sequer me deixou abrir a boca: "Repara que em dois dias estive em sítios diferentes, nos quais muitas pessoas contestavam medidas do governo, mas pareceu-me que havia uma certa desorganização. Estive numa reunião muito ordeira e bem composta, onde alguns cidadãos debateram empenhadamente o assunto. Depois estive numa localidade afectada pelas decisões do governo, e, no meio de grande confusão e de intervenções emocionais, nem sequer percebi bem o que é que as pessoas queriam ou onde pensavam chegar. Ah, e estive também numa cidade onde o protesto foi em forma de festival de música rap. Muito bonito, de facto, mas também não entendi lá muito bem o que é que dali poderia sair."

Comecei a achar que aquele Tintim do qual guardava uma grata recordação: bom moço, altruísta, um sujeito bem-disposto e afirmativo, se tinha tornado numa pessoa azeda, pouco tolerante, maledicente. Mas ainda assim achei que lhe deveria perguntar o que é que, na sua opinião, se deveria fazer numa situação deste género. Nem precisei porém de dizer fosse o que fosse, porque ele como que adivinhou os meus pensamentos. "Olha, parece-me que o vosso governo agiu bastante ao sabor de conveniências, mas também acho que os protestos têm sido um bocado descoordenados, e mais do lado do contra do que por alguma coisa. Fiquei com a impressão de que, para a maioria das pessoas que vi ou com quem falei, as questões do ambiente só lhe diz respeito quando os maus cheiros chegam mesmo ao quintal." Estava finalmente a começar a perceber a posição dele, e o resto da conversa confirmou a minha suposição. Tintim, com a sua sabedoria de adolescente de setenta anos e larga experiência de trotamundos encartado, garantiu-me que, independentemente das razões, os protestos dos cidadãos só perturbam realmente os governos e os forçam a alterar decisões quando aparecem organizados e se mostram intransigentes, quando sugerem alternativas e apontam em alguma precisa direcção.

"És capaz de ter razão, Tintim", disse-lhe, "mas se mesmo assim isso não for possível, o que é que achas que pode fazer-se para que os governos reparem melhor nas pessoas e nas coisas que as preocupam, que as afectam?". "Olha, eu muitas vezes achei aquele ali um exagerado e às vezes um valente chato, mas há momentos em que acabo por lhe dar razão". Enquanto dizia isto, indicava com a cabeça um grupo de pessoas que, alguns metros atrás, discutiam em alta voz. A todos eles se sobrepunha, falando vários decibéis acima dos restantes e usando os seus impropérios inconfundíveis, a figura barbuda de Haddock, o capitão de navios aposentado que é o inseparável companheiro de aventuras de Tintim. "Nessas alturas, realmente, o melhor é falar o mais alto possível. É protestar bem alto. É mostrar-se que se está por tudo. Para ver se alguém ouve." Senão - isto ele não me disse mas eu facilmente deduzi - tudo permanece na paz dos anjos. E, tal como no céu, a gerência passa a fazer só aquilo que muito bem lhe apetece. Ou aquilo que alguém lhe dita ao ouvido. 

[Jan.99]

Rui Bebiano, Non!, 07/02/1999 

Publicado também no Jornal de Coimbra

https://arquivo.pt/wayback/19990430063145/http://www.interacesso.pt/non/rb_004.html