terça-feira, 1 de junho de 2010

A vida dos livros

A VIDA DOS LIVROS

De 12 a 18 de Janeiro de 2009.

Quando a personagem Tintim chega aos oitenta anos de vida, cumpre referir uma obra fundamental para o conhecimento do fenómeno. Falamos de “Hergé, Filho de Tintim” de Benoît Peeters (tradução de Paula Santana Leite; Verbo, 2007), livro publicado para assinalar o centenário do nascimento de Georges Remi. No ponto de partida desta biografia exaustiva, centrada na personalidade complexa do criador do herói de “Estrela Misteriosa” está a afirmação singularíssima de Hergé: “Tintim era eu, com tudo o que em mim existe de necessidade de heroísmo, de coragem, de sinceridade, de malícia e de desembaraço. Era eu, e garanto que nem perdia tempo a perguntar a mim mesmo se agradava ou não aos miúdos. E os temas que escolhia eram temas que me apaixonavam, sobre os quais havia algo a dizer, sobre os quais eu tinha algo a dizer”… E assim, na aparente simplicidade, Tintim é um caso especial.

 UM CASO À PARTE 

Tintim é, de facto, um caso à parte na história da banda desenhada. Em Portugal, “O Papagaio” em 1936 foi a revista que primeiro internacionalizou a personagem, graças ao Padre Abel Varzim e a Adolfo Simões Müller. As revistas “Diabrete”, “Cavaleiro Andante”, “Foguetão”, “Zorro” e “Tintin” continuaram depois essa tradição pioneira. A história é conhecida, está contada e reporta-se à estada do Padre Varzim em Louvaina (1930-1934), onde estudava Sociologia. O “Petit Vingtième” era o suplemento juvenil do jornal católico belga “Le Vingtème Siècle”, sendo dirigido pelo Padre Norbert Wallez, que o sacerdote português conhecia. Simões Müller, director de “O Papagaio”, revista juvenil da Rádio Renascença, foi alertado para a qualidade das aventuras de Tintim e assim apareceu “Tim-tim na América do Norte”. Foi a primeira tradução mundial e a primeira publicação a cores das aventuras do repórter do “Petit Vingtième”… Mas vamos ao que importa, no dia 10 de Janeiro de 1929, há 80 anos, nasceu Tintim e quando, na Bélgica, foram lançadas as aventuras deste jornalista de idade indefinida, mas com vontade muito determinada, Hergé (Georges Remi) estava convencido de que a nova figura era passageira e que talvez não tivesse vida longa. Surpreendentemente, o desenho impôs-se gradualmente por si e junto do público. E a verdade é que o autor teve a inteligência de abandonar o perfil amadorístico e incerto das primeiras produções, para passar a assumir, progressivamente, as marcas de uma nova escola e de uma nova arte. Nascia a “escola de Bruxelas” que viria a tornar-se inconfundível através da afirmação da “linha clara”, de que Hergé foi indiscutivelmente o chefe de fila. E a banda desenhada europeia ou as histórias de quadradinhos, como se dizia em Portugal desde as origens, ganhou autonomia artística e de público.

RAZÕES DE SUCESSO 

Pode dizer-se, simplificando, que há dez razões para o sucesso de Tintim. Antes de mais a ideia de aventura. Tintim representa, de facto, a emergência da aventura em estado puro – ora não temendo ir ao encontro das situações mais complicadas, ora garantindo estar à altura dos acontecimentos, agindo e vencendo. Além da aventura, mas fazendo parte desta, deve referir-se ainda a importância da viagem. O mundo é percorrido pelo jovem repórter, e Tintim é um viajante incansável, desde o início – o País dos Sovietes, a África (Congo) e a América. E depois vem o Egipto (“Os Charutos do Faraó”) e o fascínio do Oriente, em especial da China, e a adopção de uma nova técnica de pintura e de desenho que se baseia na antiga cultura oriental. Tchang Tchong Jen, um dos jovens estudantes chineses que Hergé conhece em Bruxelas, exerce uma influência decisiva na evolução da nova arte, no sentido da maturidade. E é a técnica chinesa de desenho e de preenchimento de todos os espaços nos quadradinhos que torna a banda desenhada numa arte extremamente atraente, actual e com grandes virtualidades artísticas – já que relaciona intimamente as pessoas, as ideias e os lugares, desde o Médio Oriente à América do Sul, passando pela China e pela Índia, pela Europa Oriental (representada por dois países imaginários, Sildávia e Bordúria), com um desvio de rota que chega à Lua. Mas “O Lótus Azul” representa a viragem na obra de Hergé, porque apresenta em substância uma nova perspectiva no tratamento de um tema, fruto de maior rigor documental.

ELIXIR DE JUVENTUDE

Mas há ainda a referir uma terceira razão de sucesso. Tintim representa a juventude (generosa e disponível) sem ter um discurso tradicional e moralista (apesar do começo…), com uma atitude alegre, aberta, capaz de entender a inovação e as diferenças. Trata-se de uma juventude de espírito e de atitude, que será caracterizada como indo dos 7 aos 77 anos. Por isso, Hergé fala de heroísmo, de coragem, de sinceridade, de malícia e de desembaraço… Mas se Tintim é jovem, usa a imaginação. Em cada aventura há novas ideias, novos ingredientes e uma quase loucura (saudável e inconformista) que o leva a arriscar tudo, generosamente. Aliás, não é possível fazer a história da pop-art sem referir Hergé, referido expressamente por Andy Warhol e Roy Lichtenstein. E quem fala de imaginação, terá de referir também a ligação íntima da banda desenhada ao cinema. Cada uma das pranchas e os respectivos quadradinhos têm um sentido e um ritmo propositadamente cinematográficos – desde os grandes planos ao uso dos balões para os diálogos, o campo e o contra-campo e, nos continuados, o corte das cenas para dar o “suspense”. A história mistura-se com a técnica de ilustração, e essa simbiose vai ser característica da “escola da linha clara”. A partir de 1946, as reedições a cores das obras dos anos 30 vão ser marcadas pela ligação muito feliz entre uma narrativa palpitante e uma estética cuidada (que chegará ao seu auge em “Tintim no Tibete”, no final dos anos cinquenta, onde Hergé faz a invocação do seu amigo Tchang, que perdera de vista, mas cujo contacto retomará). Refira-se ainda a participação fundamental, quanto ao cuidado formal, do desenhador e colorista Edgar P. Jacobs (o autor de Blake e Mortimer, amante de ópera, que levou à criação da inconfundível Bianca Castafiore com a sua ária das jóias do “Fausto” de Gounod) e do argumentista Jacques Van Melkebeke, quanto aos enredos e às referências históricas (por exemplo em “O Segredo do Licorne” e “O Tesouro de Rackham o Terrível”). A sexta razão de êxito tem a ver com o culto do ar puro, num sentido ecológico avant-la-lettre, que é uma das marcas de aventura de Tintim e dos seus companheiros. O sétimo motivo diz respeito à liberdade com sentido de justiça – como vários leitores têm referido (António Mega Ferreira tem insistido, e muito bem, neste tema). De facto, há um essencial sentido de autonomia e liberdade de espírito e de ideias no herói de Hergé, muito mais forte do que todas as tentativas de falar e insistir no suposto “colaboracionismo” do seu autor com os fascismos. Basta vermos o anti-racismo com Tchang ou lermos com atenção “O Ceptro de Otokar”, observando que o vilão se chama Müsstler, para percebermos que, apesar de qualquer cedência circunstancial, há na personagem Tintim marcas de inconformismo, universalismo e cosmopolitismo. Para essa liberdade contribui ainda a ironia (oitavo motivo), sempre bem presente, capaz de fazer compreender melhor o mundo e os outros (Haddock, Girassol, Oliveira da Figueira, etc. etc.). Por fim, a curiosidade resulta não da convergência de um sentido geral de modernidade, segundo o qual nada do que é humano nos pode ser estranho (lembre-se, de novo, o lugar de Tintim na pop-art). Esse mesmo sentido de modernidade leva-nos ainda à compreensão da complexidade, que Hergé cultiva, ligando vida e mundo, razão e emoção, e projectando na sua obra angústias e dificuldades existenciais, como em “Tintim no Tibete”… Benoît Peeters segue, a par e passo, o atribulado percurso de Hergé, que nos permite compreender a sua personalidade muito complexa, os seus dramas e o modo como estes se projectaram na figura de Tintim. E faz uma análise minuciosa, por exemplo, das vicissitudes pós-guerra em virtude de Hergé ter publicado vasta colaboração no “Le Soir”, cabendo um papel fundamental a Raymond Leblanc, editor vindo da Resistência, na ilibação de Georges Remi quanto às acusações de colaboracionismo. O rigor histórico dá-nos, assim, o “genoma mítico” de Tintim.

A VIDA DOS LIVROS

De 26 de Janeiro a 1 de Fevereiro de 2009.

Na sequência da referência em "A Vida dos Livros" à obra de Benoit Peeters "Hergé Filho de Tintim" recebi mensagem do Dr. João Paulo Paiva Boléo, a que respondo gostosamente:

Meu Prezado Amigo

Fico-lhe gratíssimo pela mensagem que me enviou (...). Permita-me que publique em "A Vida dos Livros" da próxima semana esta missiva, onde darei conta dos seus justíssimos reparos. 

Ora vejamos, diz-me que  "o livro de Peeters é interessante, e até se lerá mais fluentemente, mas a biografia do centenário é a de Philippe Goddin, Hergé -Lignes de vie (Moulinsart, 2007), essa sim fundamental do ponto de vista documental, e que consegue equilibrar razoavelmente ser de algum modo oficial e procurar ao mesmo tempo ser independente. A de Peeters - é uma opinião pessoal - é interessante sobre a obra mas nem sempre gere bem a admiração/distância e inclui factos não (com)provados". Estou de acordo, de facto a biografia do Peeters saiu aqui com essa referência da editora, que não é correcta. Erro meu. Também concordo com o seu elogio a Peeters, que tem luz própria no mundo e na história da BD (basta lembrarmo-nos da feliz associação com Schuiten).  Nada a acrescentar.

Segundo ponto. Diz-me ainda que "a propósito da Castafiore, noutro ponto importante, (...), a intervenção de Jacobs na versão a cores do Ceptro de Ottokar foi importantíssima, só que essa aventura ainda foi das que saíram primeiro no Petit XXème a preto-e-branco, em 1938/39, história onde surge, como sabemos, a Bianca Castafiore, precisamente no virar de um ano para o outro. Ora Hergé e Jacobs só se conheceram - segundo todas as fontes - em 1941, e só começaram a trabalhar juntos em 1944, pelo que a criação da soprano não teve naturalmente nada a ver com qualquer influência de Jacobs (que aliás seria perversa - Jacobs adorava ópera e Hergé detestava...)". Tem toda a razão, o lapso também é meu. De facto Edgar P. Jacobs aparece nesta história (a de Georges Remi) só em 1941. Conheço bem a versão a preto e branco de "O Ceptro". É, aliás, uma das provas da aversão anti-totalitária de Hergé (Musstler...). Na versão a cores, o próprio Jacobs, entre outros (Hergé, Germaine etc.), é retratado na festa do palácio do rei da Sildávia... 

Por fim, diz-me ainda: "Estes são os pontos principais, mas permito-me chamar ainda a atenção para outro de carácter geral. A expressão histórias aos quadradinhos não existe «desde as origens», mas ao que tudo indica apenas desde os anos 1940". Também tem razão. Aí trata-se de verdura minha, uma vez que sendo dos anos cinquenta, tenho a memória dos "quadradinhos" como expressão consagrada... Ninguém falava de BD. Só quando me tornei assinante da revista "Tintin" belga passei a usar essa expressão francófona. O seu a seu dono, e quem sabe sabe... 

Agradeço-lhe muito os seus comentários e reparos, Dr. João Paulo Paiva Boléo e devo-me declarar seu fiel leitor e modesto aluno nestes temas. De facto, estas afinidades electivas são um prazer, e o importante é o diálogo que proporcionam. Um forte abraço muito grato do