sexta-feira, 28 de agosto de 1998

Tintin no país de Hergé

Tintim é um dos símbolos do bem, mas o seu pai, Hergé, não tinha apenas talento e bonomia. Georges Remi foi um homem atormentado pelo mal. Ainda bem, porque dessa complexidade agora revelada por duas importantes biografias nasceu uma obra extraordinária. Dois meses antes de morrer, em 1983, aos 76 anos, Georges Prosper Remi Remi, um dos mais famosos autores de bd de sempre, confessava finalmente: "em Tintim pus toda a minha vida".


Herói e criador tinham mais de meio século de convivência e aquele que o havia salvo inúmeras vezes tinha agora o peso esmagador de um fenómeno. Em todo o mundo venderam-se já mais de 170 milhões de álbuns de Hergé. De Gaulle chegou a afirmar em público que o seu único rival era Tintim. Warhol dizia-se inspirado na "linha clara". Michel Serres tinha-lhe aberto as portas da Sorbonne com um ensaio sobre As Jóias de Castafiore. O pequeno planeta 1683 foi baptizado com o nome de Hergé e uma doença com o do professor Girassol (Tournesol). Spielberg insistia em passar a película o célebre repórter do Petit Vingtième.
Dificilmente poderia ser mais apropriado o título do suplemento infantil do jornal, católico e de direita, em cujas páginas, a 4 de Janeiro de 1929, e por sugestão de um omnipresente padre Norbert Wallez, um jovem belga francófono desenhava a viagem de um repórter e do seu cão ao País dos Sovietes. O século não seria o mesmo sem aquelas duas páginas semanais de um "muito mau desenho, muito, muito, muito mau", nas palavras do seu autor. Certo é que, completada a viagem, uma Bruxelas em delírio recebia um escuteiro disfarçado de Tintim. Nascia o fenómeno, mas a obra vinha de par. Quase por acaso. Para H. Van Opstal, autor de Tracé RG - Le Phénomène Hergé, o começo data, de facto, de Dezembro de 28 com uma tira de um "petit enfant sage", num outro jornal: Le Sifflet. Segundo Pierre Assouline, em Hergé, o desenho de imprensa não era a escolha de Georges, mais interessado em grafismo, disciplina que praticou, e tão fascinado pela pintura que para ela guardou o seu nome. Apesar de só tardiamente, já no pós-guerra e na sequência de profundas depressões, ter tentado pintar, para logo desistir tornando-se coleccionador contemplativo de autores como Miró ou Vasarely. Ainda assim, desde muito cedo Hergé se preocupou em preservar a integridade do seu trabalho e, o que é mais inusitado, em tratar de promover e divulgar... uma obra. As suas características são por demais conhecidas: narração em suspense de uma história onde o exotismo serve uma enorme atenção ao presente, por vezes antecipando o futuro, tendo o humor como mecanismo e horizonte um enorme esforço de clareza e extrema lisibilidade. Era obsessão, este medo de não ser compreendido. A moral nem era, afinal, tão didáctica quanto isso: tratava-se de transmitir aos jovens um certo espírito cavalheiresco, o gosto da acção e o sentido de humor. Eram valores de um escutismo bem comportado, mas individualista, atento ao mundo, mas perconceituoso, cheio de generosidade ingénua, e misógina virilidade. Acabou por se tornar ideologia. Adoptando a divisa "toda a convicção é uma prisão", Hergé, mestre da "linha clara" atravessará o seu presente carregando os seus lados obscuros e escondendo a todo o custo temas-tabu como o desconhecimento da identidade do seu avô paterno, provavelmente um membro da alta aristocracia belga; ou os últimos dias da sua mãe vividos num hospício; a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as suas longas e profundas depressões na fase final da vida, ou o período do colaboracionismo com a imprensa pró-alemã durante a Segunda Grande Guerra. De todos os tabus, talvez seja este, afinal, o mais discutido. Hergé, como bem o revela Assouline, é um produto do seu meio temperado com algum oportunismo. Sofre e procura continuamente a influência de figuras tutelares. Wallez, o padre reacionário e truculento, que se achou co-autor de Tintim, é a figura tutelar. Mas há outras, como Tchang, que lhe mudará a vida ao apresentar-lhe o Oriente espiritual. E um sem número de outros amigos, entre escritores e actores políticos tão perigosos como Léon Dégrelle, fundador do rexismo. (Este individualista nunca se deu bem sozinho e daí também o ter, desde cedo, composto uma equipa capaz de com ele recompôr e rever, também ideologicamente a maior parte dos álbuns). Só que Hergé nunca foi um activista. Se revela racismo com judeus e negros é porque se respira esse ar dos tempos, mas é igualmente capaz de defender os peles vermelhas ou um argumentista argentino ameaçado pela ditadura. Desde que esteja em questão mais o indíviduo do que um povo. Hergé nunca deu um passo ideológico. Foi amigo de muitos que os deram polemica e notoriamente, e manteve essa amizade mesmo no pós-guerra quando não era politicamente correcto sê-lo e só a criação, com ex-resistentes, da revista Tintim o salvou de maiores misérias do que a moral de ver parte do seu país tratá-lo como traidor. "Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintim", diz Assouline. "A começar pelo principal: são ambos produtos típicos das classes médias. Mas o que os separa é também notável. O repórter mete-se em tudo para o que não é chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia dos gatos." O quadro e as pinceladas Tanto se escreveu e continua a escrever sobre Hergé e Tintim que não é fácil reunir numa mesma obra interesse e novidade. Michel Serres dedicou-lhe profundos e delirantes ensaios filosóficos. Benoît Peeters tem no seu curriculum, além de vários álbuns da série As Cidades Obscuras, a qualidade de exegeta hergiano, com vários livros publicados e uma tese sobre o assunto, orientada por Roland Barthes. Autores houve que psicanalisaram Tintim, outros que encontraram nas suas aventuras matéria para análises sobre o álcool. Romances se assinaram a partir deste universo e dicionários há sobre aspectos de companheiros seus, como as asneiras do capitão Haddock. Biografias do autor, entrevistas e análises à obra, essas são incontáveis, mas ainda que não sejam hagiografias foram todas vigiadas. E autorizadas. É mais uma razão para considerar como importantes tanto Hergé, de Pierre Assouline, Folio, 1998 como Tracé RG - Le Phénomène Hergé, de H. Van Opstal, Lefrancq, 1998. Não que estes autores tenham escrito os seus livros ignorando guardiões do templo como a Fondation Hergé, mas porque, pelo contrário, tiveram acesso a tudo sem a vigilância de Georges Remi, que quis desenhar a vida de Hergé na mesma "linha clara" da sua obra, o resultado de ambos os trabalhos é tão fascinante quanto revelador. E mais: completam-se como peças de um mesmo puzzle. Se Assouline pôs no seu "quadro" um cuidado literário (o que já havia feito para o outro belga Simenon), Opstal recolhe com cuidado estético ímpar um número impressionante das "pinceladas" que fazem uma vida e uma obra. Tracé HG tem uma estrutura (curiosa e nem sempre fácil) de duas partes, uma primeira com cem parágrafos que traçam cronologicamente o percurso biobliográfico de Georges Remi, e uma segunda, de 62 parágrafos, que como que amplia o período 1907-30, aquele que era menos conhecido. Em paralelo, corre talvez o mais importante percurso: a primeira tira, influências, obra gráfica, assinaturas, fotografias de amigos e família, certidões de nascimento, mapas e gráficos nada escapa à verdadeira mania iconográfica de Opstal. O afã de Assouline é mais clássico, mas não menos interessante. A partir, sobretudo, dos arquivos de Hergé e de inúmeras entrevistas procura compôr, com notável sensibilidade, um homem para além do mito: generoso e vaidoso, mais oportunista que colaboracionista, tão dilacerado quanto obstinado, um individualista sempre sob influência. Dando, para isso, particular atenção aos seus períodos negros durante a Ocupação nazi da Bélgica e as sucessivas depressões no pós-guerra e no final da sua vida. Procura mais do que justificar ou explicar, entender e fazer entender convições ideológicas e percurso espiritual, sem esquecer uma evolução artística riquíssima, em técnicas, conteúdo e circunstâncias. Qualquer destes livros dizem ainda muito sobre o século XX, sobre a Europa Central em períodos também eles centrais, sobre, é claro, uma arte que é do século - a bd, mas o que resulta mais fascinante da sua leitura é darem-nos a ver, nota por nota, a composição de uma gigantesca sinfonia: a da criação d'As Aventuras de Tintim.

 Hergé Pierre Assouline, Folio, 1998 
 Tracé RG - Le Phénomène Hergé H. Van Opstal, Lefrancq, 1998

© 1998 O Independente/João Paulo Cotrim