sábado, 11 de abril de 2020

Hergé, obra aberta

 Hergé, obra aberta

Um livro que estuda as influências de Júlio Verne sobre Hergé

TINTIN CHEZ JULES VERNE

Lefrancq Ed., 1998, 165 págs., 3830$00

EM 7 de Janeiro de 1989, a Revista do EXPRESSO evocava, através de uma longa cronologia comentada e ilustrada, os 60 anos da criação de Tintin que, ao tomar o comboio para o País dos Sovietes, estava longe de adivinhar o leque de aventuras em que se veria envolvido. E não só aventuras propriamente ditas, numa vasta geografia pluricontinental, que vai das profundezas dos mares até à Lua, doseando habilmente política, história, exotismo, fascínio pelos diferentes povos e civilizações, respeito etnográfico pelo Outro, problemas sociais de incidência universal, enriquecidas por um conjunto inesquecível de personagens tipificadas envolvidas em situações em que progressivamente sobressaem os valores humanistas sob um relativizante e fino fio de humor. Mas também a aventura do próprio século XX, que perpassa por toda a obra de Hergé, com uma meticulosidade, uma amplitude e um poder de síntese que lhe advêm de se enraizar profundamente no seu tempo e simultaneamente o transcender e sublimar.

Não menos fundamental foi a aventura estética que, se não fundou propriamente a BD europeia, lhe deu indiscutivelmente das primeiras, mais fecundas e sólidas «lettres de noblesse», numa meditada e feliz conjugação de legibilidade, «claridade», simplicidade, fluência, economia, atenção ao pormenor significativo e um espantoso sentido gráfico, cujas ramificações ainda hoje perduram, sem prejuízo do natural surgimento de mais escolas igualmente férteis.

E entre outras aventuras desencadeadas, permanece viva e inesgotável a aventura ensaística e crítica sobre o herói e o autor de BD objecto da mais vasta bibliografia de sempre. E que não esmorece.

Assim, 10 anos passados, a efeméride, assinalada um pouco por todo o lado e no EXPRESSO-Revista de 16/01, continua a justificar-se, não tanto na reevocação de dados básicos conhecidos (embora haja precisões e esclarecimentos novos importantes), não propriamente por chegar aos 70 anos o herói «dos 7 aos 77» (a expressão, aliás, foi criada por volta de 1950 como «slogan» da revista belga Tintin, «Le Journal des jeunes de 7 à 77 ans», que fora criado em 26/09/46), mas pelos imensos contributos que continuam a interrogar a obra e a tentar construir esse «puzzle» fugidio e enigmático, delicado e secreto, arguto e mistificador, pragmático e contraditório, que dá pelo nome de Hergé (22/05/1907 – 03/03/1983), pseudónimo, aliás, como se sabe, a partir das iniciais invertidas (RG), de Georges Prosper Remi Remi (é verdade, duas vezes - e, por favor, ao contrário do que saiu incorrectamente no recente EXPRESSO-Revista referido, escreva-se e leia-se REMI com e mudo e sem acento).

Estes 10 anos viram, entre tantas coisas, a edição integral portuguesa em álbum, pela Verbo, das «Aventuras de Tintin» (excepto Tintin au Pays des Soviets, há muito anunciado), viram a consolidação do «império hereditário» de Hergé nas mãos do inglês Rodwell, segundo marido da «segunda viúva» de Hergé, Fanny, viram obras que, se não trouxeram a síntese definitiva, juntaram mais umas pecinhas ao «puzzle» que persiste em permanecer incompleto.

Foi o caso, em 1996, da biografia de Pierre Assouline, algo polémica, que, apesar de ser uma referência obrigatória, não evitou uma excessiva «exterioridade», não inspirando total confiança quando as simples referências a Portugal balançam entre o erro e o improvável.

Mais estimulante e inovador é Tracé RG de H. van Opstal, tradução francesa de 1998 da edição neerlandesa de 94, que, embora com uma estrutura estranha, é iconográfica e documentalmente muito rico, atraente e importante.

Sirva no entanto de símbolo da obra de Hergé como «obra aberta» entre todas, projectada no futuro, sobre a qual nunca está tudo dito, a recentíssima e muito curiosa análise da significativa influência da obra de Júlio Verne (e, nomeadamente, a iconografia das primeiras edições) nas «Aventuras de Tintin», não tanto sobre o essencial, mas inspirando sequências, episódios, ideias, personagens, o lastro romanesco de que um universo ficcional também é feito. Mistificada pelo próprio Hergé e subestimada por praticamente toda a bibliografia com excepção de Les Amis de Hergé (a revista semestral desta associação criada em 1985 reúne um conjunto fundamental e inacreditável de informação, da mais importante à mais «louca»), a agora mais patente influência de Verne acaba por entreabrir mais um campo de investigação e reflexão, ficando no ar o que terá sido bebido directamente no escritor francês e o que poderá fazer parte da cultura e de um fundo comum de literatura de aventuras, de ciência, de descoberta do mundo, de viagens.

De qualquer forma, alguns confrontos são tão convincentes, que o que admira não é tanto a identidade entre os dois visionários, os dois «romancistas da viagem», mas a subestimação de Verne por Hergé, lembrando-nos a velha lição de que, se os testemunhos dos autores são interessantes, é tão importante o que dizem como o que escondem ou esquecem...

JOÃO P. BOLÉO, Expresso, 02/03/1999

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