Quem apostaria que um personagem graficamente tão “datado”, que partia de comboio, em 1929, de Bruxelas para Moscovo numa cruzada anti-comunista sem precedentes, viria a transformar-se no herói imorredouro dos nossos dias? Naqueles primeiros tempos, Tintim é de uma linearidade absoluta, de um esquematismo gráfico e mesmo narrativo nos quais é difícil reconhecer o herói “moderno” de histórias posteriores...
Como personagem, é um repórter, nascido para correr mundo e viver as aventuras que o imortalizaram. Talvez por isso mesmo, nunca é surpreendido a escrever um artigo — quando muito, há os registos impressos das suas vivências em jornais —, mas quem se importa com isso se as suas histórias exprimem de forma tão eloquente esse desejo absoluto de justiça e humanidade que impregna cada quadradinho e cada prancha?
Por detrás de cada acto de criação está, muitas vezes, uma explicação singela. Visto à distância de mais de 70 anos, e de acordo com a confissão do próprio autor numa carta enviada a um admirador, em Novembro de 19996, o acto fundador de Tintim é de um despojamento tocante: “A ‘ideia’ da personagem Tintim e do tipo de aventuras que ele ia viver ocorreu-me, creio, em cinco minutos, no momento de esboçar pela primeira vez a silhueta desse herói: isso quer dizer que ele não tinha habitado os meus verdes anos, nem mesmo em sonhos”. Mas Hergé tem o cuidado de acrescentar mais qualquer coisa: “É possível que eu me tenha imaginado, em criança, na pele de uma espécie de Tintim: nisso, mas apenas nisso, haveria uma cristalização de um sonho, sonho que é um pouco o de todas as crianças e não pertença em exclusivo do futuro Hergé”.
Depois, há as razões sociais e culturais da época que viu surgir o jovem repórter. O padre Norbert Wallez, director do jornal belga “Vingtième”, encomenda ao seu jovem colaborador — Hergé tem então 22 anos e manifesta uma admiração pelo eclesiástico que nunca sofreu a menor quebra — uma história que metesse um adolescente e um cão. A ideia era “passar” valores católicos para os leitores, que se pretendia educar no culto da virtude e do espírito missionário. O envio do jovem repórter à Rússia soviética, um reino satânico onde impera a pobreza, a fome, o terror e a repressão, era uma solução que se adequava às mil maravilhas ao desejo do padre conservador.
Antes de Tintim, Hergé dera vida às aventuras de Totor, um escuteiro chefe de patrulha de quem o jovem repórter foi imaginado como um “irmão” mais pequeno. O autor veste-o com um fato de golfe apenas porque era uma indumentária que ele próprio gostava de utilizar com frequência. O resto é a expressão natural de uma desejo de diferenciação de todas as demais personagens conhecidas. Assim surge o topete, que se tornou numa imagem de marca para todo o sempre.
A seu lado encontramos desde a primeira hora Milou, um cão inteligente que é um companheiro e um cúmplice de todas as aventuras. Não é inteiramente animal, pois Hergé confere-lhe o dom da palavra e algumas das características que habitualmente se podem encontrar nos humanos: realismo, coragem e preocupação com o seu conforto, mas também instinto batalhador... e muita gulodice.
O êxito desta primeira aventura fará com que Tintim vá ao Congo, numa homenagem de recorte inconfundivelmente colonialista à acção da Bélgica no seu antigo território africano. E, logo a seguir, à América, onde Hergé desejara levar o seu repórter num contraponto crítico à incursão soviética, mas frustrado pela vontade do padre Wallez.
Virão, ainda, mais 20 histórias, através das quais a personagem ganha espessura, é rodeada de uma notável galeria de personagens “secundárias” (Haddock, Tournesol, irmãos Dupond(t), Castafiore, etc.. etc.), ganha o sortilégio da cor e um traço cada vez mais moderno e maturado.
Poderá sempre dizer-se que tudo o que Tintim é já estava contido naquela primeira e primordial aventura. Sim, é verdade que os balões e outros signos da moderna BD europeia nascem um pouco ali. Mas também é certo que as narrativas ganham uma solidez e uma segurança que ainda mal se vislumbrava naquela história.
Lendo “Tintim no País dos Sovietes”, descobre-se também, com surpresa, que o herói não nutre uma atitude muito compassiva perante o género humano, é mesmo cruel e implacável. Mas com o passar dos anos essa atitude conhece uma subtil metamorfose, dando lugar a um herói mais positivo e fraterno, disponível para defender e ajudar os fracos e oprimidos. Quem disse que os heróis de papel não crescem e amadurecem?
http://www.tintin.be
http://www.tintin.org
http://www.multimania.com/herge/frame.htm
http://perso.worldonline.fr/Tintin
http://guillaume.belloncle.online.fr/Tintin/index.html
Nome: Tintim
Criador: Hergé
Data de nascimento: 10-01-1929
Local: “Le Petit Vingtième”, Bélgica
Época: século XX
Série: banda desenhada de aventuras e um dos grandes clássicos do género, que influenciou de forma muito vincada uma parte significativa da criação europeia contemporânea de BD
Sinais particulares: Tintim é um jovem repórter, sempre vestido com calças de golfe e ostentando um inconfundível topete no alto da cabeça. É dono de um fiel e inteligente cão “fox-terrier”, chamado Milou, e tem como companheiro inseparável, a partir de 1940, Haddock, um capitão de marinha colérico, beberrão e temperamental.
© 2000 Público/Carlos Pessoa
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