"Não faz ideia de quanto eu odeio Tintim...", confessou certo dia Hergé a Jacques Martin, autor de Alix e um dos seus mais próximos colaboradores. Mais ou menos na mesma altura, em meados dos anos 60, quando trabalhava na BD "Voo 714 para Sydney", Michael Turner, tradutor inglês das aventuras do jovem repórter, ouviu o artista desabafar: "Já não gosto de Tintim. De facto, nem o posso ver".
O contraste entre a fragilidade de Hergé e a força positiva de Tintim não podia ser mais gritante. Para quem foi habituado, através de aventuras sucessivas, a ver naquele herói da banda desenhada europeia um modelo de qualidades imutáveis, estes momentos de fraqueza pessoal são estranhos e, porventura, insuportáveis. Dizer que Tintim foi uma espécie de "alter-ego" superlativo e mesmo transcendente do desenhador - exprimindo, para todos os efeitos, o melhor do artista belga, mas sem estar sujeito às mesmas leis humanas que regeram a sua existência -, pouco ajuda a esclarecer este enigma fundamental: quem era Hergé e o que procurava ele exprimir através do seu herói?
Possivelmente, nenhum outro autor da BD mundial foi alvo de tantos estudos e análises académicas, ou de trabalhos jornalísticos. A reconstituição, ao longo dos anos, da história de vida do desenhador e argumentista belga parece não deixar espaço para zonas de sombra ou tempos de incerteza: sabe-se tudo sobre Hergé e nada se ignora sobre Tintim. E, contudo, continuam a surgir, com regularidade, livros centradas na obra e na vida do mestre belga. Um deles é este "As Aventuras de Hergé", com o qual o seu editor português decidiu assinalar, simultaneamente, os 20 anos da morte do autor (Março de 1983) e os 75 anos do aparecimento de Tintim, a celebrar no final de Janeiro do próximo ano.
O que singulariza este trabalho em relação aos demais é ser ele próprio uma banda desenhada, cujo protagonista, como o título sugere, é o próprio Hergé e não o seu personagem. Por outras palavras, os autores propuseram-se - e conseguiram-no plenamente, diga-se desde já - revisitar a vida do criador de Tintim numa sequência de quadros que traçam, de forma subjectiva e afectiva, o essencial do percurso do homem e do artista.
Vê-se claramente que Stanislas, Boucquet e Fromental estão afectiva e intelectualmente próximos de Hergé, que há uma aceitação e um esforço de demonstração da tremenda humanidade do artista, com as suas mais elevadas qualidades e mais densas fraquezas. Para quem pouco ou nada conhece do homem, esta é uma boa iniciação; para os outros, a leitura do livro permite estabelecer algumas cumplicidades em torno das diversas aventuras de Tintim, aqui e ali citadas ou apenas sugeridas. Para todos, esta excelente edição pode constituir um "aperitivo" à fruição dos álbuns que o PÚBLICO está a oferecer aos seus leitores.
As Aventuras de Hergé
AUTORES Stanislas (desenho), Boucquet e Fromental (texto)
EDITOR Mais BD
64 págs., € 16,95
© 2003 Público; Carlos Pessoa
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