sábado, 25 de setembro de 2021

Tintin Entre Os Bárbaros

     


Em 1959, Tintin partiu para os Himalaias em busca do seu amigo Tchang, dado como morto num acidente aéreo mas que o repórter pressentia estar vivo e em dificuldades. Guiado somente por um sonho, a intuição e a amizade ao jovem chinês, Tintin no Tibete é a sua 20.ª aventura e a preferida do criador belga Hergé. Trata-se, a todos os níveis, de uma história notável e é indiscutivelmente uma obra-prima da arte em qualquer dos seus domínios. O enredo, de uma pungência, simplicidade e delicadeza extremas, entrelaça alguns dos mais edificantes valores humanos, personificados desde sempre por Tintin mas aqui condensados e postos ao serviço de um drama mais profundo e essencial. A cada página, os sentimentos são postos à prova, questionados, revolvidos; as fraquezas e os paradoxos das personagens vão-se sucedendo, revelando as contradições com que todos nós, afinal, nos cruzamos amiúde pela vida fora; os diálogos com o leitor sobrepõem-se tira a tira, alimentando a dúvida, a curiosidade, o desespero, a comoção, a esperança, suportados por uma tenaz força de carácter.

     A viagem com Tintin ao Tibete revelou um Hergé mais sensível e, até certo ponto, mais exposto. As imensas paisagens de neve retratadas com minúcia e rigor transmitem, mais do que a candura do branco, a transparência das qualidades que ele ainda deposita no ser humano. É a sua “ode à amizade”, como lhe chama o artista, mas vai além disso. O amor entre dois rapazes (fraternal ou nem por isso – Hergé era demasiado pudico para clarificá-lo) deveria servir de exemplo a muitos dos activistas actuais. O respeito pelas minorias e o desprezo, irónico mas cru, pelo civilizador e colonizador homem branco (a cor dominante neste livro) dão quilómetros de avanço aos alegados defensores dos direitos humanos deste século, numa altura em que mal se falava no assunto e em que abordá-lo quase valia a proscrição. O apego à justiça social, a busca pela verdade a todo o custo, a intransigente defesa da liberdade individual e da autodeterminação dos povos e o insistente erguer de diálogos e pontes transformam Tintin num marco intemporal merecedor de integrar, por exemplo, os programas escolares de Cidadania. Nesta perspectiva, Tintin é, de facto, subversivo.

     Foi precisamente essa sua capacidade de subverter o sistema, minando-o de dentro para fora, que o transformou em herói de muitas gerações. A coragem com que enfrentava o poder, desmascarava os corruptos, defendia os mais fracos e reparava as injustiças, grandes e pequenas, faziam dele o exemplo a seguir. A sua verticalidade sempre se mostrou inabalável, servindo de farol condutor pelos escolhos e espinhos ao longo da vida. Nunca os seus leitores puderam invocá-lo para justificar os próprios erros, as decisões mal formadas, os desvios. É claro que nem tudo são rosas nos 23 álbuns protagonizados pelo jovem repórter. Hervé cometeu lapsos de que se foi penitenciando com o passar dos anos, que se tornaram mais evidentes com o crescimento, a evolução e o aperfeiçoamento das narrativas posteriores e que só lhe foram assacados pela cada vez maior precisão e perfeição da sua obra. Mas até nisso Tintin subverte o cânone e fura o establishment.

     Entretanto, no Canadá, em 2021, grupos de activistas (dos direitos humanos?) promovem autos-de-fé para queimar livros que classificam de reaccionários, racistas ou colonialistas. Entre centenas de títulos estão o Asterix, o Lucky Luke, a Pocahontas e, claro, o Tintin. Ao mesmo tempo, bibliotecas públicas e escolares decidiram também banir esses volumes das suas prateleiras. Mais grave ainda é a complacência – ou seja, a cumplicidade – do primeiro-ministro, Justin Trudeau, em todo este processo. E não é de admirar. Trudeau é um dos icónicos representantes da classe política contemporânea: sem ideias, sem visão, sem horizontes, sobeja-lhe a ambição e a vaidade, que alimenta abraçando as causas de grupos onde espera angariar simpatizantes e, por conseguinte, votos. A nível interno, adquiriu tiques autoritários, tão comuns em estadistas medíocres; a nível externo, vai submetendo o Canadá às vontades dos poderosos, retocando a pintura com discursos de vitórias e vantagens que existem apenas na sua cabeça. Mandou agora, quase secretamente, construir centros de internamento (compulsivo, presume-se) para vítimas de fenómenos pandémicos, mas a arquitectura escolhida, a lembrar Auschwitz, não augura nada que fuja à sua pequenez mental. Um exemplo de como “o fraco rei faz fraca a forte gente” (Camões).

     E por falar em Camões… Em Portugal, também já se anunciam autos-de-fé. E até já se começaram a fazer listas de nomes. O autor d’ Os Lusíadas, claro, mas também António Vieira, Eça de Queiroz ou Fernando Pessoa. De repente, voltamos a ser um país de Dantas. Em cem anos, não progredimos um dia. Estamos nisto. Um país que não sabe ler, não quer ler, não gosta de ler e odeia aqueles que lêem. Um país em que muitos professores mal sabem escrever, poucos lêem e o que lêem são incapazes de interpretar. Um país de políticos carreiristas e formalmente iletrados. Um país de bárbaros. Um mundo de bárbaros. E destes já nem o Tintin nos consegue salvar.

Victor Alves, Ponta Delgada, 19/09/2021

[PUBLICAÇÃO AO ABRIGO DO N.º 1 DO ARTIGO 37.° DA C.R.P.]

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