Recolhidas da publicação Bittercomix, título fundamental da BD sul-africana, que Kannemeyer fundou em 1992 com Conrad Botes, surgem em formatos e estilos diversos. Há realismo, apropriação, autobiografia, imagens autónomas que formam cartazes, os contornos, as formas do “tipo de desenho” baptizado de ligne claire. E como um fantasma, a máscara que assombra (quase) todo o livro, eis Tintim, agora envelhecido, com careca de homem. Algumas das pranchas do livro de Hergé são, aliás, redesenhadas pelo autor com óbvios fins satíricos: a personagem não dispara repetidamente sobre um antílope teimoso, antes de descobrir que, afinal, abateu um número incontável de animais, mas sobre um africano negro; e depois de curar o membro de uma tribo, não sai, discreto (ainda que orgulhoso), de cena, mas cobra o serviço, prostituindo a mulher daquele que salvou.
Estas estratégias não serão as mais subtis, mas acertam nos alvos: o colonialismo e, sobretudo, a sociedade e a cultura afrikaner em que Kannemeyer cresceu. É com o seu passado, com a sua História, que o autor ajusta contas, sem sacrificar o seu didactismo irónico: leiam-se Preto e Die Tall, em que o afrikaans é apresentado como língua da violência e do racismo, e a história curta Sonny: o abuso sexual é a metáfora de outros abusos. Kennemeyer não perdoa a sociedade afrikaner como Thomas Bernhard não perdoava a austríaca. Os tabus, os traumas, os medos atravessa, na condição de protagonistas, 1974 (o pesadelo não cessa depois acordar) ou Cucu. Mas na sua violência, nos seus excessos, o livro escorrega para sentidos e a leituras que contrariam as intenções do autor. Quando recorre à iconografia de Hergé para desenhar fisionomia de todos os negros (Coco, o menino africano de Tintin no Congo, é o outro signo deste livro), os riscos são evidentes; aceita-se a vontade de fustigar os leitores, mas o terreno fica livre para interpretações contaminadas pela racismo e o preconceito. É um risco que o autor continua a correr, mesmo depois de atrair a curiosidade de grupos de extrema-direita (têm solicitado entrevistas). Pode até dizer-se que esse é o objectivo: recuperar a perversidade de um imaginário e de uma linguagem para mostrar o quanto dela ainda persiste na cultura e nos indivíduos. Como efeitos previsíveis: nos últimos anos, aos aplausos sucederam-se as acusações, o desconforto. Na África do Sul pós-apartheid, as séries da Bittercomix (já) são consideradas provocatórias, chocantes, racistas, mas Kannemeyer deleita-se na ambiguidade: “leiam o que quiserem, como quiserem”, é o que parece segredar na vinheta da mulher que está prestes a ser violada ou na ilustração “C de Culpa”. Os novos poderes (políticos) da África do Sul, a sedução do capitalismo global são visados e sem misericórdia. A violência, a corrupção, a repetição de erros históricos esfregam-se na cara do leitor, não há redenção, apenas a constatação de que o homem continua a flagelar-se a si mesmo e aos outros. É essa realidade que Kannemeyer nos devolve na corda bamba, entre o uso da caricatura e o registo mais realista, mais seco que caracteriza a melhor e a mais complexa banda desenhada do livro: A Corredora: aqui, a vítima e o algoz, se não se confundem, habitam o mesmo mundo: absurdo e injusto. Sem fim.
José Marmeleira in Público
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