terça-feira, 22 de maio de 2007

Ana Bravo

Por que é que não há mulheres no mundo de Tintin

"Um círculo para a cara, dois pontos para os olhos, um traço para a boca, um 'U' faz o nariz e já está!". Assim definiu Hergé, certa vez, Tintin. A esta simplicidade gráfica - que o transformou num dos símbolos mais fortes do século XX -, assente num traço límpido, servido por cores planas e luminosas, para o qual foi necessário inventar a designação "linha clara", podemos acrescentar o seu carácter decidido e aventuroso, a defesa de valores como a justiça, a amizade e o combate eterno pelos mais fracos.

O universo Tintin - de longe a mais célebre criação do belga, também autor de Quim e Filipe, e do trio Joana, João e o Macaco Simão - é feito de 23 álbuns e neles reside o essencial de Hergé. Mas, quando hoje passa um século sobre o nascimento do criador belga, há um pormenor de que muitos nunca se terão apercebido são muito poucas as mulheres na vida de Tintin e, quando as há, surgem sempre reduzidas, em todos os aspectos, a uma condição menor.

Um ano a ver BD à lupa

Foi esta ausência feminina, nunca investigada nas seis teses francesas existentes sobre o herói de Hergé, que serviu de base à primeira tese portuguesa sobre Tintin, agora editada em livro "A invisibilidade do género feminino em Tintin - A conspiração do silêncio". O volume, que já estará disponível nas Feiras do Livro de Lisboa e Porto que arrancam esta semana, envolveu num trabalho estóico a sua autora, Ana Bravo, que esquadrinhou milhares de vinhetas.

Após a análise, a conclusão foi a esperada "As mulheres em Tintin estão conformadas a papéis secundarizantes na acção, com ocupações tradicionais e formatadas em traços de caracteres comuns de uma sensibilidade e fragilidade feminina aliadas à arte de atrair problemas".

Mulher estereotipada

Depois de uma dar perspectiva alargada da evolução da BD, Ana Bravo analisa a relação de Hergé com as mulheres - as de papel e as de carne e osso -, de onde se percebe que "se as mulheres lograram adquirir algum protagonismo no seu círculo profissional, constata-se uma intencionalidade de ordem religiosa, social, cultural, ideológica e de público-alvo na invisibilidade das mulheres no seu universo ficcional, assim como uma inusitada incorporação de género em personagens modeladas de animalidade", concretamente da cadela Milu.

Como curiosidade, regista "a tendência para discriminar salarialmente as colaboradoras em 1977, quando o seu secretário se afastou, vítima de uma trombose, e foi substituído pela mulher, Hergé convencionou-lhe um salário 2/3 inferior ao do marido".

Ana Bravo analisou ao pormenor as dezenas de mulheres que Hergé desenhou (n.º de aparições, vestuário, atitudes, falas), quase sempre meros figurantes, e verifica que em dois álbuns ("Tintin no País dos Sovietes" e "Explorando a Lua"), aventuras de temática política e científica, a mulher não entra de todo. E de todas, só Bianca Castafiore, "o rouxinol milanês", se destaca, surgindo em sete dos 23 álbuns, mas apenas como protagonista em "As Jóias de Castafiore", onde, apesar disso, "mais uma vez, Hergé não foi generoso com o universo feminino", pois mesmo "elevando a personagem ao estatuto de protagonista, não logrou fugir ao estereótipo da feminilidade histérica, incorporada numa Castafiore narcísica, obcecada pela imagem e embriagada pelo poder mágico da música, 'leit-motiv' da sua acção".

No reino da amizade viril

Esta ausência no feminino, é para José Abrantes, autor de BD e admirador de Hergé "um dado que denuncia alguma antiguidade do seu universo; hoje em dia não seria admissível uma série não ter personagens femininas com relevância na história".

A ausência é justificada pelo autor em entrevista a Numa Sadoul ("Tintin et moi - Entretiens avec Hergé", Casterman, 2000) "Não é misogenia, mas simplesmente pelo facto de, para mim, as mulheres não terem lugar num mundo como o de Tintin, onde reina uma amizade viril, sem nada de equívoco (?) Se eu introduzisse uma rapariga bonita, que faria ela num mundo onde todos são caricaturas? Gosto demasiado das mulheres para as caricaturar!".

Ana Bravo aceita a justificação "A imagem das mulheres como obstáculo ficcional, ainda que reflectindo a visão ideológica de Hergé, fixada nos valores de uma sociedade patriarcal, tem a legitimidade da liberdade de todo o acto criativo".

Apesar do conforto de um ombro feminino, hoje quase octogenário, Tintin tem envelhecido bem, porque "é muito actual, tanto em termos gráficos como no conteúdo da sua mensagem", afirma Abrantes. Opinião corroborada por Ana Bravo que acrescenta que "o herói mítico não envelhece. É intemporal e exerce um fascínio intacto sobre leitores de várias gerações, devido à profundidade da obra e à inteligência da construção das personagens. Hergé foi um desenhador de génio e um grande contador de histórias".

F. Cleto e Pina, JN, 22/05/2007

Excerto de um artigo intitulado "Por que é que não há mulheres no mundo de Tintin", publicado no Jornal de Notícias:

(...) há um pormenor de que muitos nunca se terão apercebido são muito poucas as mulheres na vida de Tintin e, quando as há, surgem sempre reduzidas, em todos os aspectos, a uma condição menor.

Um ano a ver BD à lupa

Foi esta ausência feminina, nunca investigada nas seis teses francesas existentes sobre o herói de Hergé, que serviu de base à primeira tese portuguesa sobre Tintin, agora editada em livro "A invisibilidade do género feminino em Tintin - A conspiração do silêncio". O volume, que já estará disponível nas Feiras do Livro de Lisboa e Porto que arrancam esta semana, envolveu num trabalho estóico a sua autora, Ana Bravo, que esquadrinhou milhares de vinhetas.

Após a análise, a conclusão foi a esperada "As mulheres em Tintin estão conformadas a papéis secundarizantes na acção, com ocupações tradicionais e formatadas em traços de caracteres comuns de uma sensibilidade e fragilidade feminina aliadas à arte de atrair problemas".

Mulher estereotipada

Depois de uma dar perspectiva alargada da evolução da BD, Ana Bravo analisa a relação de Hergé com as mulheres - as de papel e as de carne e osso -, de onde se percebe que "se as mulheres lograram adquirir algum protagonismo no seu círculo profissional, constata-se uma intencionalidade de ordem religiosa, social, cultural, ideológica e de público-alvo na invisibilidade das mulheres no seu universo ficcional, assim como uma inusitada incorporação de género em personagens modeladas de animalidade", concretamente da cadela Milu.

Como curiosidade, regista "a tendência para discriminar salarialmente as colaboradoras em 1977, quando o seu secretário se afastou, vítima de uma trombose, e foi substituído pela mulher, Hergé convencionou-lhe um salário 2/3 inferior ao do marido".

Ana Bravo analisou ao pormenor as dezenas de mulheres que Hergé desenhou (n.º de aparições, vestuário, atitudes, falas), quase sempre meros figurantes, e verifica que em dois álbuns ("Tintin no País dos Sovietes" e "Explorando a Lua"), aventuras de temática política e científica, a mulher não entra de todo. E de todas, só Bianca Castafiore, "o rouxinol milanês", se destaca, surgindo em sete dos 23 álbuns, mas apenas como protagonista em "As Jóias de Castafiore", onde, apesar disso, "mais uma vez, Hergé não foi generoso com o universo feminino", pois mesmo "elevando a personagem ao estatuto de protagonista, não logrou fugir ao estereótipo da feminilidade histérica, incorporada numa Castafiore narcísica, obcecada pela imagem e embriagada pelo poder mágico da música, 'leit-motiv' da sua acção".

As mulheres na BD, ora aqui está um vasto e interessantissimo tema, no qual contudo não me aventurarei por não conhecer suficientemente a BD. Mas deixo o convite às leitoras e aos leitores deste blog para se debruçarem sobre este assunto e nos enviarem as vossas reflexões.

Miss Piggy, Publicada por Colectivo Feminista, em 22/05/2007


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