terça-feira, 22 de maio de 2007

Primeira tese portuguesa sobre Tintin

A invisibilidade das mulheres nas aventuras de Tintin.

"Um círculo para a cara, dois pontos para os olhos, um traço para a boca, um "u" para o nariz e já está!". Assim definiu Hergé, certa vez, Tintin. A esta simplicidade gráfica - que o tornou um dos símbolos do século XX - assente num traço límpido, servido por cores planas e luminosas, para o qual foi necessário inventar a designação de "linha clara", podemos acrescentar o seu carácter decidido e aventuroso, a defesa de valores como a justiça, a amizade e a defesa dos mais fracos. E se complementarmos ainda com a extrema legibilidade das suas aventuras, o seu ritmo vivo, o correcto doseamento de suspense, humor e acção, o dinamismo do desenho, o rigor na construção de cenários e veículos, a capacidade de síntese e a antecipação científica (mini-submarino, ida à Lua, TV a cores…) podemos afirmar que estamos próximos da perfeição. Ou na perfeição mesmo, dirão algumas vozes, explicada pela quase total ausência de mulheres em Tintin. O que não deixará de ser um problema acrescido para o projecto cinematográfico de adaptação das suas histórias que Steven Spielberg e Peter Jackson têm agora em mãos.

Foi esta ausência feminina, nunca investigada nas seis teses francesas existentes sobre o herói de Hergé, que serviu de base à primeira tese portuguesa sobre Tintin, agora editada na forma de livro: "A invisibilidade do género feminino em Tintin - A conspiração do silêncio", já disponível nas Feiras do Livro, nos pavilhões da Centralivros. Ana Bravo, a autora, justifica a escolha: "Se Hergé e a sua obra máxima já foram tema de vários trabalhos científicos por parte de reputados académicos e de múltiplas abordagens, (Hergé é um dos autores mais estudados do séc.XX) uma parte permanecia obscura. Ainda nem tudo tinha sido dito! Ou seja, o silêncio continuava….".

Após "um ano de trabalho" a conclusão foi a esperada: "As mulheres em Tintin estão conformadas a papéis secundarizantes na acção, com ocupações tradicionais e formatadas em traços de caracteres comuns de uma sensibilidade e fragilidade feminina aliadas à arte de atrair problemas".

Depois de uma dar perspectiva alargada da evolução da BD, Ana Bravo analisa a relação de Hergé com as mulheres, as de papel e as de carne e osso, de onde se percebe que "se as mulheres lograram adquirir algum protagonismo no seu círculo profissional, constata-se uma intencionalidade de ordem religiosa, social, cultural, ideológica e de público-alvo na invisibilidade das mulheres no seu universo ficcional, assim como uma inusitada incorporação de género em personagens modeladas de animalidade", concretamente Milu. Como curiosidade, regista "a tendência para discriminar salarialmente as colaboradoras: em 1977, quando o seu secretário se afastou, vítima de uma trombose, e foi substituído pela mulher, Hergé convencionou-lhe um salário 2/3 inferior ao do marido."

A autora analisa ao pormenor (nº de aparições, vestuário, atitudes, falas, etc.) as dezenas de mulheres que Hergé desenhou, quase sempre meros figurantes, e verifica "que em dois álbuns - "Tintin no País dos Sovietes" e "Explorando a Lua" - aventuras de temática política e científica, a mulher nem como figurante tem lugar". E de todas, apenas Bianca Castafiore, "o rouxinol milanês" se destaca, surgindo em 7 dos 23 álbuns analisados, mas apenas de forma relevante em "As Jóias de Castafiore", onde, apesar disso, "mais uma vez, Hergé não foi generoso com o universo feminino", pois mesmo "elevando a personagem ao estatuto de protagonista, não logrou fugir ao estereótipo da feminilidade histérica, incorporada numa Castafiore de mente narcísica, obcecada pela imagem e embriagada pelo poder mágico da música, leit-motiv da sua acção".

Esta ausência no feminino, é para José Abrantes, autor de BD e admirador de Hergé "um dado que denuncia alguma antiguidade do seu universo; hoje em dia não seria admissivel uma série não ter personagens femininas com relevância na história". Ausência que o autor, em entrevista a Numa Sadoul ("Tintin et moi - Entretiens avec Hergé", Casterman, 2000) justificou não como "misogenia, mas simplesmente pelo facto de, para mim, as mulheres não terem lugar num mundo como o de Tintin, onde reina uma amizade viril, sem nada de equívoco (…) Se eu introduzisse uma rapariga bonita, que faria ela num mundo onde todos são caricaturas? Gosto demasiado das mulheres para as caricaturar!". Justificação que Ana Bravo aceita porque "a imagem das mulheres como obstáculo ficcional, ainda que reflectindo a visão ideológica de Hergé, fixada nos valores de uma sociedade patriarcal, tem a legitimidade da liberdade de todo o acto criativo".

Apesar do conforto de um ombro feminino, hoje quase octogenário, Tintin tem envelhecido bem, porque "é muito actual, tanto em termos gráficos como no conteúdo da sua mensagem", afirma Abrantes. Opinião corroborada por Ana Bravo que acrescenta que "o herói mítico não envelhece. É intemporal e exerce um fascínio intacto sobre leitores de várias gerações, devido à profundidade da obra e à inteligência da construção das personagens. Hergé foi um desenhador de génio e um grande contador de histórias".

Um autor que se confunde com a sua obra

"Tintin sou eu!", afirmou Hergé por diversas vezes. E fê-lo não só enquanto seu autor, mas também ilustrando a ligação profunda que o unia ao jovem repórter globetrotter e a imensa pressão que a obra exercia sobre o criador, durante muito tempo refém dela, não sendo por acaso que Hergé se desenhou várias vezes como um forçado, guardado à vista por um ameaçador Tintin - mostrando como ele dominava toda a sua vida. Por isso, na já citada entrevista a Numa Sadoul, acrescentou mesmo: "Tintin (e todos os outros) sou eu. São os meus olhos, os meus sentidos, os meus pulmões, as minhas tripas!...".

Nascido a 22 de Maio de 2007 na Bélgica, Hergé revelar-se-ia um homem circunspecto, pouco amigo de falar de si mesmo ou de tomar a ribalta, profundamente apegado às suas criações, preso à herança educacional religiosa e moral e de que demorou a libertar-se. Por isso, o Hergé-homem apagou-se voluntariamente para ceder a ribalta não ao Hergé-autor, mas a Tintin, fazendo dele toda a sua vida, pelo menos entre 1929 - data de nascimento de Tintin - e 1950 - ano da formação dos Estúdios Hergé - entre a criação de novas histórias e a uniformização das mais antigas, agravado pelo seu perfeccionismo que o levava a passar e repassar o traço em busca da solução mais perfeita.

"Tintin no Tibete" (1958) marca um ponto de viragem, por ser uma obra extremamente pessoal, na qual o autor durante o (longo) período criativo, ao mesmo tempo que Tintin busca o seu amigo desaparecido nas montanhas geladas do Tibete, se busca a si mesmo, e, após um longo período de dúvidas e incertezas, no qual chegou a ponderar largar tudo, incluindo Tintin, exorciza fantasmas, refunde convicções, assume a sua relação com Fanny, uma das coloristas do seu estúdio que viria a ser a sua segunda esposa e herdeira, aumenta o espaçamento entre cada nova aventura de Tintin, dando finalmente lugar ao Hergé-homem que ganha um novo gosto pela vida, visitando então muitos dos países onde Tintin o precedera e dando livre curso ao seu interesse pela arte moderna.

E a ligação com a criatura sai reforçada, pertencendo a este período alguns dos álbuns que denotam melhor construção, com "As Jóias de Castafiore" à cabeça. Justificando-se que, por isso, pouco antes de morrer tenha recusado a ideia de que Tintin lhe sobrevivesse pois acreditava "ser o único a poder animá-lo, no sentido de lhe dar uma alma. É uma obra pessoal. Se outros retomassem Tintin, talvez o fizessem melhor, talvez menos bem. Mas uma coisa é certa: fá-lo-iam de outra forma, logo já não seria Tintin!...".

"Tintin é uma obra perfeita"

Título: A invisibilidade do género feminino em Tintin – a conspiração do silêncio

Autor: Ana Bravo

Prefácio: Rui Zink

Ilustração da capa: Miguel Rocha

Formato: 17cm x 24cm

N.º de páginas: 384

Preço: 22 euros

Edição impressa da primeira tese portuguesa sobre Tintin, apresenta como curiosidade o facto de não incluir qualquer imagem da obra analisada, devido às muitas condições (entre as quais a aprovação prévio do texto) que a Fundação Moulinsart, detentora dos direitos de Tintin, pretendeu impor, razão pela qual a própria capa, embora remetendo para as criações de Hergé, não as mostra explicitamente.

Jornal de Notícias - Que relação tem com Tintin?

Ana Bravo - Faço parte de uma geração (anos 60) que praticamente aprendeu a ler e a gostar de BD, graças ao Tintin. Convivi e vivi com ele as suas intrépidas aventuras, descobrindo o Mundo e sonhando com a sua heroicidade, sempre do lado dos bons e dos oprimidos. Os seus álbuns foram uma fonte de educação salutar e, para além do prazer de infância, foi uma contínua aprendizagem.

Mais tarde, ao relê-las, ciclicamente fui percepcionando algumas questões que se me afiguravam dúbias ou mal resolvidas, como a ausência de antecedentes familiares num herói assexuado e um tanto insípido e a falta de companheiras que quase sempre povoaram o universo de outros heróis e aventuras da BD.

JN - Porquê esta pesquisa sobre o papel das mulheres em Tintin?

AB - Trata-se apenas de uma interrogação ou reflexão sobre questões de género, temática que tem resistido a todos os estudos sobre o autor e a sua obra. O interesse em estudar o universo feminino da BD, prende-se com o facto de as histórias ficcionais configurarem construções culturais de identidade de género consumidas, durante décadas, pela cultura ocidental, com repercussões para as visões futuras em termos dos valores que promovem e das formas de identificação que oferecem.

JN - A presença de mais mulheres teria enriquecido Tintin?

AB - A problemática não reside na quantidade de mulheres na BD, mas na qualidade dos papéis que lhes são atribuídos. Houve autores que as excluíram do seu universo ficcional e outros que as elevaram categoria de heroínas. Há uma evolução no tempo da imagem da mulher na BD, a que Hergé foi alheio, mesmo ao criar a sua última personagem feminina, Peggy Alcazar, em 76. Mais mulheres em Tintin não resultaria numa ficção de maior qualidade, porque Tintin é uma obra perfeita do ponto de vista formal, em que nada pode ser alterado!

JN - De que forma a sua investigação alterou a sua visão de Tintin?

AB - As Aventuras de Tintin constituem um legado documental e fonte privilegiada para recriar a História e para o estudo do género e, neste caso, como o género condicionou a BD.

Este livro é o resultado duma nova perspectivação sobre a obra de Hergé que me permitiu uma melhor compreensão dela, corroborando princípios teóricos de análise, não passíveis de alterar a minha visão de Tintin.

Pedro Cleto, Jornal de Notícias, 22/05/2007

Em conjunto com outros textos sobre as comemorações do centenário.



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