quinta-feira, 18 de julho de 2024

Tim-Tim repórter d’O Papagaio


Se a publicação de Tintin, a criação máxima de Hergé, ficou como o grande feito de O Papagaio, os seus leitores tiveram que esperar quase um ano, até ao nº 49, de 19 de Março de 1936, para o herói ser anunciado na revista, como seu repórter na “América do Norte, país civilizadíssimo, donde nos chegam as maiores invenções e belas afirmações de espírito artístico” mas que é também “infelizmente, um território onde o banditismo impera, no qual indivíduos da pior espécie e de todas as nacionalidades estabeleceram de há muito arraiais”. A Milu, seu companheiro de sempre, a revista trocava o nome e o sexo, anunciando-o(a) como “a cadelinha Pom-Pom” porque, explica José Azevedo e Menezes em “O Papagaio – Um estudo do que foi uma grande revista infantil portuguesa” (2ª edição, do autor, 2007), citando Dias de Deus: “n'O Papagaio já havia uma Milu, Maria de Lurdes Norberto, que recitava e cantava aos microfones das emissões infantis; Simões Müller entendeu que não ficaria bem dar o nome de uma menina conhecida a uma cadela”… Dois números depois, em novo anúncio, já na capa, o seu nome passava a Rom-Rom mas o sexo trocado manter-se-ia até ao fim da revista. Também o Capitão Haddock e o professor Tournesol foram rebaptizados, passando, respectivamente, a Capitão Rosa e Professor Pintadinho…

Finalmente, no nº 53, logo na capa, com cores vivas (e hoje exageradas) começavam as “Aventuras de Tim-Tim na América do Norte”, pela primeira vez em policromia em todo o mundo. Sinal de outros tempos, o respeito pelos originais de Hergé era pouco ou mesmo nenhum, sendo normal as pranchas serem retalhadas e remontadas, em função do espaço disponível ou a ocupar. 

Artur Correia, autor português de BD, ainda em actividade, numa entrevista publicada no Mundo de Aventuras 248 (5ª série, de 1978) lembra que n'O Papagaio “alargava juntamente com um talentoso moço chamado Soares, os desenhos das histórias do Tim-Tim para virem publicados na página central. Nós é que fazíamos os acrescentos para transformar uma página única numa dupla”...

Modificações que também se faziam sentir ao nível dos textos, a começar logo com “Tim-Tim na América”: na fase final da história, os operários ausentes da fábrica onde o herói sofre um atentado, em greve (proibida no nosso país) no original, tinham saído para almoço… 

Seguir-se-ia “Tim-Tim no Oriente” (Os Charutos do Faraó, publicado do #115 ao #161), no qual o vendedor de banha da cobra Oliveira de Figueira, o único figurante luso de relevo criado por Hergé, era apresentado como… espanhol! 

Depois, viriam as “Novas Aventuras de Tim-Tim” (“O Lótus Azul”, #166-#205) e a aventura africana do “repórter que nunca escreveu uma linha”, que o levou a pisar solo (colonial) português em “Tim-Tim em Angola” (“Tintin no Congo”, #209-#244). 

Já em “O Mistério da Orelha Quebrada” (#247-#298), o general Alcazar é rebaptizado de Manduca, para não ser associado ao episódio, então recente, do cerco do Alcazar de Toledo durante a Guerra Civil espanhola.

No episódio seguinte, “A Ilha Negra” (#301-#359), o adversário do herói deixou de ser o Dr. Müller (para não ser entendido como piada ao então já ex-director da revista), transformando-se num banal Dr. Silva, e em “Tim-Tim no deserto” (“O caranguejo das tenazes de ouro”, #366-#426), Haddock, que no original se sentia mal depois de beber um copo de água (por não ser de uísque) nas páginas de O Papagaio, sente-se mal mas melhora depois de beber a água!

A aventura seguinte (“A Estrela Misteriosa”, #435-#540) é publicada sem título e a presença de Tintin na revista portuguesa terminaria com “O Segredo da Licorne” (#617-#679).

Para além disso, Tintin surgiu em muitas capas de O Papagaio (cujas revistas correspondentes são hoje avidamente disputadas pelos coleccionadores), em desenhos originais ou feitos por autores portugueses, como boneco articulado de montar e mesmo noutras histórias, como é o caso da primeira aventura do “Boneco Rebelde”, de Sérgio Luiz [e Guy Manuel], em que contracena com o protagonista nas páginas iniciais, e como despoletador da acção em “Na pista de Tim-Tim”, de Diniz de Oliveira e Rodrigues Neves.

Pelo meio, ficaram também as tentativas goradas de Simões Müller de o levar consigo para o “Diabrete” (o que só conseguiu após o fim de O Papagaio), onde teve de se contentar com “Trovão e Relâmpago” (aliás “Quick et Flupke”), inicialmente publicados sem conhecimento de Hergé, e o facto de parte dos direitos de Tintin terem sido pagos em géneros, mais exactamente em latas de sardinhas, enviados para a Alemanha onde estava preso o irmão do desenhador belga.

Pedro Cleto (Texto publicado no dia 17 de Abril de 2010 na revista NS, distribuída ao sábado com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

https://outrasleiturasdopedro.blogspot.com/2010/04/tim-tim-reporter-do-papagaio_26.html#comment-form

Foi a 18 de Abril de 1935 que O Papagaio abriu pela primeira vez, se não as suas asas, pelo menos as suas páginas às mãos e olhos ávidos dos miúdos a quem a revista se destinava, como se lia por baixo do seu cabeçalho, ao lado do qual também estava o preço – elevado para a época - de 1$00. No interior desse número inaugural – como durante o resto da sua vida, onde nunca ocupou mais de um terço das páginas - a banda desenhada – então chamada histórias aos quadradinhos pois o francesismo só entraria em uso décadas depois – era pouca, limitada a uma prancha de Tom (Thomaz de Melo, um dos responsáveis pela capa e pelo grafismo atraente da novel publicação), intitulada “Sabichão em calças pardas”, e meia prancha de Stuart Carvalhais, com os seus Quim e Manecas. Nas suas páginas, a preto e branco, uma ou várias cores, a prioridade era dada a contos, curiosidades, passatempos e concursos, tudo com um forte pendor didáctico e formativo, algo perfeitamente normal na época.

Publicação católica, semanal, com saída às quintas-feiras, propriedade da Renascença, tinha como director um dos maiores nomes que o jornalismo infanto-juvenil português conheceu, Adolfo Simões Müller.

A revista viria a durar 722 números, com altos e baixos, como é incontornável, e dela ficou como principal imagem de marca ter servido de modelo a muitos dos títulos infanto-juvenis lançados nos anos seguintes e o ter publicado – como estreia fora da francofonia e pela primeira vez a cores em todo o mundo – as aventuras de um certo Tintin. Hergé, o seu autor, no entanto, seria um dos poucos autores estrangeiros publicados em O Papagaio, juntamente com Jacobsson, Urátegui, Gordillo, Walter Booth e poucos mais, uma vez que a aposta principal de Müller foi sempre para os autores nacionais, alguns dos quais começaram ainda adolescentes nas suas páginas. Foi o caso de José Ruy, hoje um veterano, especialista em temas históricos, e o autor português com mais álbuns editados, que lá publicou as suas primeiras histórias aos quadradinhos quando contava apenas 14 anos, curiosamente todas no domínio da ficção.

Outros nomes nacionais que desempenharam um papel significativo no sucesso de O Papagaio, para além do já citado Tom, foram José de Lemos (responsável por toda a parte gráfica, após a saída daquele), Arcindo Moreira, Meco ou Rodrigues Neves. Mas, afirmam João Paiva Boléo e Carlos Bandeiras Pinheiro em “A Banda Desenhada Portuguesa 1914-1945” (Fundação Calouste Gulbenkian, 1997), deve-se aos irmãos Sérgio Luiz e Guy Manuel, precocemente desaparecidos, “a mais imorredoira criação de O Papagaio”, o Boneco Rebelde, protagonista de quatro aventuras.

Como casos peculiares há que citar ainda José Viana, o actor e humorista, autor de diversas bandas desenhadas de crítica de costumes, e Júlio Resende, hoje pintor de renome, então animador das festas e das emissões radiofónicas e criador do “emblemático Fagundes Arrepiado” que, escrevem Boléo e Pinheiro, revelava “um humor subtil e desconcertante, inteligente e invulgar, com uma originalidade que lhe vem de uma ironia natural”, e que também engrossaram, com engenho e mérito, o número de colaboradores da publicação. Por ela passariam ainda, embora de forma breve, nomes depois consagrados da 9ª arte nacional como Artur Correia, Vítor Péon ou José Garcês.

Com o modelo consolidado, apoiado também em separatas com banda desenhada ou construções de armar, concursos variados, no incentivo à correspondência por parte dos leitores e num programa radiofónico que alcançou grande sucesso, Simões Müller sairia no número 302, para dirigir o novo “concorrente” Diabrete, sendo o cargo de director assumido sucessivamente por Artur Bivar, José Rosa Ferreira e Laurinda Borges Magalhães.

Se, consensualmente, os primeiros cinco anos foram os melhores, os últimos foram de natural declínio, provocado também pelo aparecimento de novas propostas de uma concorrência forte (Mosquito e Diabrete), tendo O Papagaio, enquanto publicação autónoma, calado a sua voz a 10 de Fevereiro de 1949, 14 anos mais tarde, no nº 722. Teria ainda uma segunda vida, como secção da revista Flama, durante 96 números, até 9 de Fevereiro de 1951, mas já sem grande relevância.

Pedro Cleto (Texto publicado no dia 17 de Abril de 2010 na revista NS, distribuída ao sábado com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

https://outrasleiturasdopedro.blogspot.com/2010/04/ha-75-anos-voava-o-papagaio.html


(#251; 1 Fevereiro 1940; Capa; Tim-Tim, Rom-Rom e Zigue e Zague, autor Sérgio Luiz)


(#237; 26 Outubro 1939; Banda Título; Tim-Tim e Rom-Rom; Guy Manuel)

(...) julgo que convinha sobretudo não repetir ou transmitir a falsa ideia (que se encontra noutros sítios) de que o Abel Varzim alguma vez teria frequentado ou conhecido o próprio Georges Remi, ou sequer se correspondia com ele. Claro que não foi esse o caso e isso está patente logo na primeira carta que lhe endereçou para se apresentar, um escasso mês apenas depois do começo da publicação d’O Papagaio, para explicar o que era a novel revista católica infantil e solicitar os direitos de reprodução da série, de preferência a preço reduzido, epístolas e detalhes que conhecemos graças à reprodução pelo holandês Jan Aarnout Boer em “De Avonturen van Kuifje in Portugal”.

Na realidade, Abel Varzim conheceu quando estudante em Louvain apenas a “obra”, ou seja as próprias histórias do Tintin, através da versão original no Petit Vingtième, de que era assinante (nem menciona os primeiros álbuns da Casterman, porque claramente não os conhecia). E jamais se encontrou com o desenhador nem se correspondia de todo com ele, mas graças àquele contacto por carta — chamemos-lhe profissional — tivemos o Tintin em primazia em Portugal e ainda por cima em quadricromia! 

Já agora, antes da estreia nacional da própria história [Tim-Tim na América do Norte, em 16/04/1936,] no nº 53, a primeira menção ocorreu n’O Papagaio num anúncio na separata do nº 49 e depois na capa do nº 51 da revista infantil O Papagaio, ligada à revista católica Renascença e não [...] à emissora Rádio Renascença que ainda nem sequer existia quando do aparecimento da publicação em 1935 - note que as emissões de rádio d’O Papagaio começaram por isso mesmo na Emissora Nacional. 


AVENTURS PUBLICADAS

Tim-Tim na América do Norte (Tim-Tim na América, #53-#110)
Tim-Tim no Oriente (Os Charutos do Faraó, #115-#161)
Novas Aventuras de Tim-Tim (O Lótus Azul, #166-#205)
Tim-Tim em Angola (Tintin no Congo, #209-#244)
O Mistério da Orelha Quebrada (#247-#298)
Tim-Tim Na Ilha Negra (A Ilha Negra, #301-#359)
Tim-Tim no deserto (O Caranguejo das Tenazes de Ouro, #366-#426)
A Estrela Misteriosa (#435-#540)

O Segredo da Licorne (O Segredo do Licorne, #617-#679)

Datas de Publicação:

Congo - O Papagaio (1939) #209 de 13 de Abril de 1939 ao #244 de 14 de Dezembro de 1939 (Tim-Tim em Angola)

America - O Papagaio (1936) #53 de 16 de Abril de 1936 ao #110 de 20 de Maio de 1937 (Tim-Tim na América do Norte)

Charutos - O Papagaio (1937) #115 de 24 de Junho de 1937 ao #161 de 12 de Maio de 1938

Lotus - O Papagaio (1938) #166 de 16 de Junho de 1938 ao #205 de 16 de Março de 1939

Orelha - O Papagaio (1940) «Tim-Tim e o mistério da orelha quebrada») #247 de 4 de Janeiro de 1940 ao #298 de 26 de Dezembro de 1940

Ilha - O Papagaio (1941) (Tim-Tim na ilha negra) #301 de 16 de Janeiro de 1941 ao #359 de 26 de Fevereiro de 1942

Caranguejo - O Papagaio (1942) «Tim-Tim no deserto») #366 de 16 de Abril de 1942 ao #426 de 10 de Junho de 1943

Estrela - O Papagaio (1943) #435 de 12 de Agosto de 1943 ao #540 de 16 de Agosto de 1945

Licorne - O Papagaio (1947) #617 de 6 de Fevereiro de 1947 ao #679 de 15 de Abril de 1948

Leitura recomendada:

+ O Papagaio - O Jornal da Rapaziada Endiabrada (5ª edição, 2022) de José Azevedo e Menezes

Índice: Introdução; Ficha técnica; Edições diferentes; Erros; Separatas; Clube; Festas; Emissões Radiofónicas; Diabruras; O Tim-Tim de O Papagaio; A introdução de Tim-Tim em Portugal; A Correspondência entre Hergé e O Papagaio; As nove histórias de Tim-Tim publicadas n'O Papagaio; “Pastiches”; As adaptações de O Papagaio; Quadradinhos alterados e desaparecidos; Milou e Rom-Rom; Secções; O que eu queria ser; Concursos; Colaboradores nacionais; Colaboradores estrangeiros; Colaboração dos leitores; Raridades; O Papagaio da Flama; Colaboradores de O Papagaio da Flama; Índice das histórias aos quadradinhos.

+ Edições comparativas MC (Tim-Tim na América do Norte, Tim-Tim em Angola)

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