quinta-feira, 2 de dezembro de 1999
Edição nacional da primeira história do herói de Hergé é lançada hoje: “Tintim no País dos Sovietes” em português
A aventura que há quase 71 anos lançou o jovem repórter pelos caminhos da aventura e da fama é lançada hoje pela Verbo em Lisboa.
No ano em que apagou as velas do seu 70º aniversário, a primeira aventura do jovem repórter criado por Hergé, “Tintim no País dos Sovietes”, é lançada em Portugal. A iniciativa é do editor português da série, a Verbo, que apresenta o álbum esta tarde na Livraria Bertrand das Amoreiras, em Lisboa.
A partir de hoje, constitui o 23º título da colecção a chegar às mãos dos leitores portugueses, encabeçando a lista integral das aventuras da série. Ao contrário de outros episódios publicados muito cedo pela imprensa portuguesa, quase em simultâneo com o respectivo aparecimento europeu, este “Tintim no País dos Sovietes” tem uma história menos feliz para contar. Só no início da década de 70 — muito provavelmente em 1972 — é que o segundo número do fanzine “Saga”, editado pelo ABC Cineclube, divulga 11 pranchas da banda desenhada, numa edição amadora de pouca qualidade. Uma década depois, foi a vez da edição portuguesa da revista “Tintim” tentar publicar a mesma história. As primeiras pranchas surgem no número 12 (15º ano), de 31 de Julho de 1982, sem merecerem qualquer chamada de capa. A aventura interrompe a sua publicação com a da própria revista alguns meses mais tarde, naquele que foi o seu último número, com data de 2 de Outubro.
O álbum que agora sai para os escaparates apresenta a história original, a preto e branco e com o grafismo “tosco” em que os admiradores menos informados terão alguma dificuldade em reconhecer os tradicionais personagens de Hergé. Isto acontece porque esta foi a única aventura do personagem que o seu autor nunca quis submeter a qualquer intervenção narrativa ou estética. Mais ainda, durante décadas recusou-se a aceitar a sua comercialização normal por razões que se prendem, em grande parte, com a circunstância de a história transportar dentro de si uma poderosa carga político-ideológica que a transformou, para todos os efeitos, num panfleto anti-comunista. Esta “clandestinidade” só foi contrariada por umas quantas edições piratas que foram surgindo, por essa Europa fora, à revelia do autor e do seu editor de sempre, a Casterman. Hergé acabaria por autorizar, em 1973, a republicação do álbum (reeditado de novo, em “fac-símile”, no ano de 1981 com uma tiragem de 100 mil exemplares), posto de novo à venda em Janeiro passado para assinalar os 70 anos do aparecimento de Tintim. É a este “currículo” atribulado que a história aos quadradinhos deve a aura lendária e mítica que se lhe colou para sempre.
Viragem em 1928
Na “tentativa biográfica” publicada no número especial da revista “(À Suivre)” evocativa da morte de Hergé, em Abril de 1983, Pierre Sterckx conta que a viragem decisiva na obra do artista ocorre em 1928. Hergé descobre através de jornais mexicanos enviados para Bruxelas pelo correspondente do “XXème Siècle” (editado na Bélgica) a melhor banda desenhada da época — Krazy Kat, Bringing up Father, The Katzenjammer Kids. Ficou aqui selado o próximo passo do autor: uma verdadeira BD e não mais um mero texto suportado por imagens.
Nos primeiros dias de Janeiro de 1929 o “Petit Vingtième”, suplemento juvenil daquele jornal, termina a publicação de “L’Extraordinaire Aventure de Flup, Nénesse, Poussette et Cochonnet”. E é na mesma edição que surge um discreto desenho com uma extensa legenda anunciando a chegada dos novos personagens — Tintim e Milou.
Em fundo, as cúpulas russas. Em primeiro plano, um jovem de perfil, com uma cabeça redonda, nariz saliente, grandes sobrancelhas e cabelo rebelde caído para a testa. Calça sapatos enormes e usa um fato de golfe aos quadrados. Na legenda: “Acompanhem, a partir da próxima quinta-feira, as extraordinárias aventuras de Tintim, repórter, e do seu cão, Milou, ao País dos Sovietes. A foto acima, uma das últimas que nos foram enviadas, mostra-os a passear pelas ruas de Moscovo sob o olhar desconfiado de um camarada-cidadão-polícia-bolchevista”.
Hergé entrega duas pranchas por semana, articulando “gags” e situações durante 69 episódios semanais, sem saber verdadeiramente até onde a narrativa o levará e ao seu herói. Até 9 de Maio de 1930 o repórter belga vai mostrar toda a “verdade” sobre o “milagre soviético”. Tintim deixa atrás de si um rasto de atentados, prisões e perseguições antes de entrar em Moscovo. Observa depois a situação nos campos. Percorre as estepes e regressa de avião a Berlim. Com a recompensa de um criminoso que entrega à justiça, o herói compra um carro desportivo para regressar a Moscovo. Acaba metido num comboio que se dirige a Bruxelas, onde é recebido em apoteose. Malfeitorias do bolchevismo
A escolha da Rússia soviética como local da aventura é do padre Wallez, director do “Vingtième Siècle”, um jornal católico e visceralmente anti-comunista. O propósito é “pôr os jovens leitores ao corrente das malfeitorias do bolchevismo”, como sublinha Benoît Peeters em “Le Monde d’ Hergé”. Hergé aceita.
Sem a operação de cosmética a que outras aventuras foram submetidas, “Tintim no País dos Sovietes” é uma banda desenhada datada. Mas se o leitor conseguir esquecer por um momento o desenho ingénuo e “primitivo” e o enredo vacilante, talvez consiga vislumbrar o primeiro acto de invenção da BD segundo Hergé, para usar uma expressão feliz de Peeters. Os balões e outros signos da moderna BD europeia nascem um pouco aqui. E a própria história é um belíssimo exemplo da metamorfose e crescimento que o herói e o seu criador vão sofrendo ao longo da narrativa. O estilo e a personalidade gráfica de Hergé afirmam-se quadradinho a quadradinho, prancha a prancha, ao ponto de já não haver muito do Tintim que partira de Bruxelas no atrevido personagem que termina a sua epopeia, na mesma cidade, 138 pranchas depois.
© 1999 Público
sexta-feira, 17 de setembro de 1999
Uma aventura de Tintim
Aquilo que entretanto ninguém disse ou escreveu, talvez por uma inexplicável distracção colectiva, é que Tintim saiu das páginas dos álbuns e das revistas, ganhou vida própria. Mesmo após a morte de Hergé continuou a viajar, à procura de situações interessantes para contar aos seus leitores, e, fatalmente, envolvendo-se sempre em toda a sorte de factos passados nos países que visita. Para ser franco, posso até revelar que esteve há poucas semanas aqui em Portugal, por incumbência directa do chefe de redacção do seu jornal de Bruxelas. O objectivo era recolher informações sobre a situação criada com as últimas iniciativas do governo português em matéria de política ambiental e com as fortes reacções públicas que estas têm provocado.
Nessa altura, e por um mero acaso, encontrei-o. Com a sua gabardina clara e, tal como seria de esperar, com as suas inconfundíveis calças de golfe. Como tínhamos em tempos sido apresentados e ele tem boa memória, reconheceu-me imediatamente. Depois de um cordial abraço e de algumas daquelas generalidades próprias de duas pessoas que se reencontram depois de longos anos sem se verem, começou a contar-me aquilo que realmente andava por cá a fazer.
"Sabes, há já muito tempo que não vinha a este teu país e, de facto, isto está tudo muito mudado". Acenei que sim com a cabeça, lembrando-me que a última estadia de Tintim em terras lusitanas tinha sido ainda antes de 1974, e ia começar a dizer qualquer coisa a propósito. Mas ele nem sequer me deixou abrir a boca: "Repara que em dois dias estive em sítios diferentes, nos quais muitas pessoas contestavam medidas do governo, mas pareceu-me que havia uma certa desorganização. Estive numa reunião muito ordeira e bem composta, onde alguns cidadãos debateram empenhadamente o assunto. Depois estive numa localidade afectada pelas decisões do governo, e, no meio de grande confusão e de intervenções emocionais, nem sequer percebi bem o que é que as pessoas queriam ou onde pensavam chegar. Ah, e estive também numa cidade onde o protesto foi em forma de festival de música rap. Muito bonito, de facto, mas também não entendi lá muito bem o que é que dali poderia sair."
Comecei a achar que aquele Tintim do qual guardava uma grata recordação: bom moço, altruísta, um sujeito bem-disposto e afirmativo, se tinha tornado numa pessoa azeda, pouco tolerante, maledicente. Mas ainda assim achei que lhe deveria perguntar o que é que, na sua opinião, se deveria fazer numa situação deste género. Nem precisei porém de dizer fosse o que fosse, porque ele como que adivinhou os meus pensamentos. "Olha, parece-me que o vosso governo agiu bastante ao sabor de conveniências, mas também acho que os protestos têm sido um bocado descoordenados, e mais do lado do contra do que por alguma coisa. Fiquei com a impressão de que, para a maioria das pessoas que vi ou com quem falei, as questões do ambiente só lhe diz respeito quando os maus cheiros chegam mesmo ao quintal." Estava finalmente a começar a perceber a posição dele, e o resto da conversa confirmou a minha suposição. Tintim, com a sua sabedoria de adolescente de setenta anos e larga experiência de trotamundos encartado, garantiu-me que, independentemente das razões, os protestos dos cidadãos só perturbam realmente os governos e os forçam a alterar decisões quando aparecem organizados e se mostram intransigentes, quando sugerem alternativas e apontam em alguma precisa direcção.
"És capaz de ter razão, Tintim", disse-lhe, "mas se mesmo assim isso não for possível, o que é que achas que pode fazer-se para que os governos reparem melhor nas pessoas e nas coisas que as preocupam, que as afectam?". "Olha, eu muitas vezes achei aquele ali um exagerado e às vezes um valente chato, mas há momentos em que acabo por lhe dar razão". Enquanto dizia isto, indicava com a cabeça um grupo de pessoas que, alguns metros atrás, discutiam em alta voz. A todos eles se sobrepunha, falando vários decibéis acima dos restantes e usando os seus impropérios inconfundíveis, a figura barbuda de Haddock, o capitão de navios aposentado que é o inseparável companheiro de aventuras de Tintim. "Nessas alturas, realmente, o melhor é falar o mais alto possível. É protestar bem alto. É mostrar-se que se está por tudo. Para ver se alguém ouve." Senão - isto ele não me disse mas eu facilmente deduzi - tudo permanece na paz dos anjos. E, tal como no céu, a gerência passa a fazer só aquilo que muito bem lhe apetece. Ou aquilo que alguém lhe dita ao ouvido.
[Jan.99]
Rui Bebiano, Non!, 07/02/1999
Publicado também no Jornal de Coimbra
https://arquivo.pt/wayback/19990430063145/http://www.interacesso.pt/non/rb_004.html
quarta-feira, 28 de abril de 1999
O 25 de Abril na BD
"O 25 de Abril na BD", na Bedeteca de Lisboa
Quando Otelo foi um Lucky Luke
Patente até meados de Setembro na Bedeteca de Lisboa, "O 25 de abril na BD", exposição que depois de ter sido inaugurada nas antigas instalações da Manutenção Militar, em Coimbra, veio para Lisboa, onde foi um dos núcleos para a 2ª edição do Salão Lisboa de ilustração e BD.
Traçando o percurso, sobretudo gráfico, do que foi a BD nos tempos da revolução dos cravos, esta mostra foi co-organizada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra - a partir do convite de Boaventura Sousa Santos - e pela Bedeteca de Lisboa, para coincidir com as comemorações dos 25 anos do 25 de Abril.
Reunindo, em oito núcleos distintos, os traços essenciais das BD's daquele período, é no entanto mais abrangente, incluindo os tempos de ditadura e mostrando trabalhos visados pela censura política. Essa componente documental contou com a consulta a parte do espólio do Centro de Documentação 25 de Abril, assim como o recurso a colecções privadas. E quer se trate de álbuns, revistas, jornais, ou panfletos sindicais, houve uma aposta na divulgação, Em paralelo - vertente inédita - dá a conhecer a visão de 18 autores nacionais, decorrido um quarto de século sobre a revolução - numa sala contígua à exposição principal, estão trabalhos de Filipe Abranches, Rui Lacas, Relvas, Pedro Massano, Luís Differ, entre outros
"Foi uma união de vontades que permitiu cimentar um projecto destes em tão pouco tempo", salienta João Miguel Lameiras, que juntamente com João Ramalho Santos e João Paiva Boléo, foi um dos comissários da exposição. A partir da recolha a que procederam, surgiram visões únicas, obras inclassificáveis.
Exemplo de como a BD pode ser sinal dos tempos é a adaptação que Carlos Barradas fez de "O Capital", a obra de Karl Marx. Era a BD ao serviço do povo, para o povo. Também Mao Zedong foi personagem de BD, exaltando as massas ao trabalho. Às necessidades reais de propaganda política juntavam-se famosas e, na altura, não menos polémicas apropriações, como as trucagens que o cartoonista Manuel Vieira fez para a "Flama" por volta de 1975, de heróis, entre outros, da revista "Tintin", e onde se vê Otelo disfarçado de Lucky Luke ou Rosa Coutinho de melena e com os traços de Tintin. Hergé e a editora Casterman, ao tomarem conhecimento, terão obrigado a revista a um pedido de desculpas.
Para João Paiva Boléo, a obra que porventura melhor retrata os tempos de mudança de regime é "O País dos Cagados" de Artur Correia. "É a mais completa, até pela forma como goza com Américo Tomás; como a censura é lembrada, a alegria da libertação. É ainda uma visão crítica, quando dá atenção aos jogos de força", afirma. Concluindo que "era o resultado de uma luta que começa em 64, e que dura mais de dez anos; de uma luta clandestina"
Nuno Franco / Público, 27/04/1999
O 25 de Abril na BD
LISBOA Bedeteca, de terça a sábado, das 9h às 19h
domingo, 31 de janeiro de 1999
Desculpe, mas Hergé era antifascista
© 1999 Público
sábado, 10 de outubro de 1998
Amigo de Hergé que inspirou um personagem de Tintim morreu em Paris: A segunda morte de Tchang
Há um momento na história “O Lótus Azul” em que Tintim chora, deixando cair a máscara do herói sem fraquezas nem emoções. Acontece depois de o herói criado por Hergé ter salvo das águas agitadas do rio Yang-Tsé um pequeno chinês órfão que pergunta por que razão ele lhe salvou a vida.
A China vivia tempos difíceis, literalmente dilacerada pela cupidez e ambição das potências estrangeiras que lhe sangram as riquezas e aniquilam as populações. Tintim chega ao país para descobrir o que se esconde por trás de uma enigmática mensagem que captou numa escuta de rádio. Cai em cheio num negócio de tráfico de ópio que quase lhe custa a vida. E Tchang tem oportunidade de, por mais de uma vez, saldar a sua dívida para com o herói, livrando-o de situações muito perigosas. Ambos colaboram no desmantelamento da rede de traficantes e Tintim parte, deixando atrás de um amigo para toda a vida.
Voltarão a encontrar-se anos mais tarde, em “Tintim no Tibete”. O herói tem um sonho premonitório, no qual vê o seu amigo numa situação de perigo de vida. No dia seguinte, lê nos jornais que o avião em que o seu amigo viajava se despenhou nas montanhas nevadas dos Himalaias. Sem registar sobreviventes. Tintim não se conforma e parte para o Tibete, apenas com o peso da sua convicção interior, para o salvar. E consegue-o, claro.
Conselheiro e amigo de Hergé
Há situações em que a ficção segue as pegadas da realidade. A estreita amizade estabelecida entre Tintim e Tchang é uma delas, reproduzindo de forma romanceada a história da cumplicidade entre Hergé e... Tchang. Escultor e pintor, este último conhece o autor de banda desenhada em Bruxelas no ano de 1934. Tchang tem 27 anos e frequenta há três a Academia Real das Belas Artes. Aguarelista de talentos reconhecidos no seu país, vai virar-se para a escultura, arte em que o seu pai já fizera algum nome. O autor de “Os Cigarros do Faraó” já tinha em mente há algum tempo levar o seu personagem até ao Extremo Oriente. Um certo padre Gosset, capelão dos estudantes chineses que frequentam a Universidade de Lovaina, sugere a Hergé que arranje um conselheiro em assuntos orientais. Convinha evitar os estereótipos racistas que marcaram de forma indelével a anterior aventura da série, “Tintim no Congo”, acrescenta. Esse conselheiro é Tchang, que contribui para fazer despontar em Hergé uma preocupação com a pesquisa documental que caracterizará as aventuras posteriores de Tintim. Fá-lo comungar das suas próprias recordações e participa mesmo no desenho traçando os ideogramas chineses inscritos nos cenários de “O Lótus Azul”. Hergé retribui com a figura do pequeno chinês, salvo “in extremis” das águas barrentas do Yang-Tsé, que considera Tintim o seu único verdadeiro amigo.
Em 1935 Tchang regressa à China, sendo apanhado no turbilhão da guerra sino-japonesa que antecedeu a II Grande Guerra Mundial. Sofre na pele e no coração estes dois conflitos, a tomada do poder pelos comunistas de Mao Tsé-Tung em 1949 e a Revolução Cultural nos anos 60. Quarenta anos depois é reabilitado e nomeado director da Academia de Belas Artes de Xangai.
Durante esse tempo, Hergé nunca soube nada do seu amigo. “Tintim no Tibete”, publicado em 1958-59 na revista “Tintim”, é tanto o fruto de uma profunda crise pessoal — Hergé tinha-se separado da sua primeira mulher e casado com Fanny Vlamynck —, como uma sentida homenagem ao personagem desaparecido na voragem do tempo e da história.
Só nos finais dos anos 70 é que Hergé vai ter de novo notícias de Tchang. O encontro dos dois em Bruxelas, no ano de 1981, é um momento de grande emoção. Dois anos depois, morria Hergé.
Em 1984 Tchang instala-se definitivamente em França com a filha, acolhido com todas as honras pelo então ministro da Cultura, Jack Lang. Tchang morreu na quinta-feira à noite na Casa dos Artistas de Nogent-sur-Marne, nos arredores de Paris. Tinha 93 anos. © 1998 Público/Carlos Pessoa
sexta-feira, 28 de agosto de 1998
Tintin no país de Hergé
Herói e criador tinham mais de meio século de convivência e aquele que o havia salvo inúmeras vezes tinha agora o peso esmagador de um fenómeno. Em todo o mundo venderam-se já mais de 170 milhões de álbuns de Hergé. De Gaulle chegou a afirmar em público que o seu único rival era Tintim. Warhol dizia-se inspirado na "linha clara". Michel Serres tinha-lhe aberto as portas da Sorbonne com um ensaio sobre As Jóias de Castafiore. O pequeno planeta 1683 foi baptizado com o nome de Hergé e uma doença com o do professor Girassol (Tournesol). Spielberg insistia em passar a película o célebre repórter do Petit Vingtième.
Dificilmente poderia ser mais apropriado o título do suplemento infantil do jornal, católico e de direita, em cujas páginas, a 4 de Janeiro de 1929, e por sugestão de um omnipresente padre Norbert Wallez, um jovem belga francófono desenhava a viagem de um repórter e do seu cão ao País dos Sovietes. O século não seria o mesmo sem aquelas duas páginas semanais de um "muito mau desenho, muito, muito, muito mau", nas palavras do seu autor. Certo é que, completada a viagem, uma Bruxelas em delírio recebia um escuteiro disfarçado de Tintim. Nascia o fenómeno, mas a obra vinha de par. Quase por acaso. Para H. Van Opstal, autor de Tracé RG - Le Phénomène Hergé, o começo data, de facto, de Dezembro de 28 com uma tira de um "petit enfant sage", num outro jornal: Le Sifflet. Segundo Pierre Assouline, em Hergé, o desenho de imprensa não era a escolha de Georges, mais interessado em grafismo, disciplina que praticou, e tão fascinado pela pintura que para ela guardou o seu nome. Apesar de só tardiamente, já no pós-guerra e na sequência de profundas depressões, ter tentado pintar, para logo desistir tornando-se coleccionador contemplativo de autores como Miró ou Vasarely. Ainda assim, desde muito cedo Hergé se preocupou em preservar a integridade do seu trabalho e, o que é mais inusitado, em tratar de promover e divulgar... uma obra. As suas características são por demais conhecidas: narração em suspense de uma história onde o exotismo serve uma enorme atenção ao presente, por vezes antecipando o futuro, tendo o humor como mecanismo e horizonte um enorme esforço de clareza e extrema lisibilidade. Era obsessão, este medo de não ser compreendido. A moral nem era, afinal, tão didáctica quanto isso: tratava-se de transmitir aos jovens um certo espírito cavalheiresco, o gosto da acção e o sentido de humor. Eram valores de um escutismo bem comportado, mas individualista, atento ao mundo, mas perconceituoso, cheio de generosidade ingénua, e misógina virilidade. Acabou por se tornar ideologia. Adoptando a divisa "toda a convicção é uma prisão", Hergé, mestre da "linha clara" atravessará o seu presente carregando os seus lados obscuros e escondendo a todo o custo temas-tabu como o desconhecimento da identidade do seu avô paterno, provavelmente um membro da alta aristocracia belga; ou os últimos dias da sua mãe vividos num hospício; a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as suas longas e profundas depressões na fase final da vida, ou o período do colaboracionismo com a imprensa pró-alemã durante a Segunda Grande Guerra. De todos os tabus, talvez seja este, afinal, o mais discutido. Hergé, como bem o revela Assouline, é um produto do seu meio temperado com algum oportunismo. Sofre e procura continuamente a influência de figuras tutelares. Wallez, o padre reacionário e truculento, que se achou co-autor de Tintim, é a figura tutelar. Mas há outras, como Tchang, que lhe mudará a vida ao apresentar-lhe o Oriente espiritual. E um sem número de outros amigos, entre escritores e actores políticos tão perigosos como Léon Dégrelle, fundador do rexismo. (Este individualista nunca se deu bem sozinho e daí também o ter, desde cedo, composto uma equipa capaz de com ele recompôr e rever, também ideologicamente a maior parte dos álbuns). Só que Hergé nunca foi um activista. Se revela racismo com judeus e negros é porque se respira esse ar dos tempos, mas é igualmente capaz de defender os peles vermelhas ou um argumentista argentino ameaçado pela ditadura. Desde que esteja em questão mais o indíviduo do que um povo. Hergé nunca deu um passo ideológico. Foi amigo de muitos que os deram polemica e notoriamente, e manteve essa amizade mesmo no pós-guerra quando não era politicamente correcto sê-lo e só a criação, com ex-resistentes, da revista Tintim o salvou de maiores misérias do que a moral de ver parte do seu país tratá-lo como traidor. "Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintim", diz Assouline. "A começar pelo principal: são ambos produtos típicos das classes médias. Mas o que os separa é também notável. O repórter mete-se em tudo para o que não é chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia dos gatos." O quadro e as pinceladas Tanto se escreveu e continua a escrever sobre Hergé e Tintim que não é fácil reunir numa mesma obra interesse e novidade. Michel Serres dedicou-lhe profundos e delirantes ensaios filosóficos. Benoît Peeters tem no seu curriculum, além de vários álbuns da série As Cidades Obscuras, a qualidade de exegeta hergiano, com vários livros publicados e uma tese sobre o assunto, orientada por Roland Barthes. Autores houve que psicanalisaram Tintim, outros que encontraram nas suas aventuras matéria para análises sobre o álcool. Romances se assinaram a partir deste universo e dicionários há sobre aspectos de companheiros seus, como as asneiras do capitão Haddock. Biografias do autor, entrevistas e análises à obra, essas são incontáveis, mas ainda que não sejam hagiografias foram todas vigiadas. E autorizadas. É mais uma razão para considerar como importantes tanto Hergé, de Pierre Assouline, Folio, 1998 como Tracé RG - Le Phénomène Hergé, de H. Van Opstal, Lefrancq, 1998. Não que estes autores tenham escrito os seus livros ignorando guardiões do templo como a Fondation Hergé, mas porque, pelo contrário, tiveram acesso a tudo sem a vigilância de Georges Remi, que quis desenhar a vida de Hergé na mesma "linha clara" da sua obra, o resultado de ambos os trabalhos é tão fascinante quanto revelador. E mais: completam-se como peças de um mesmo puzzle. Se Assouline pôs no seu "quadro" um cuidado literário (o que já havia feito para o outro belga Simenon), Opstal recolhe com cuidado estético ímpar um número impressionante das "pinceladas" que fazem uma vida e uma obra. Tracé HG tem uma estrutura (curiosa e nem sempre fácil) de duas partes, uma primeira com cem parágrafos que traçam cronologicamente o percurso biobliográfico de Georges Remi, e uma segunda, de 62 parágrafos, que como que amplia o período 1907-30, aquele que era menos conhecido. Em paralelo, corre talvez o mais importante percurso: a primeira tira, influências, obra gráfica, assinaturas, fotografias de amigos e família, certidões de nascimento, mapas e gráficos nada escapa à verdadeira mania iconográfica de Opstal. O afã de Assouline é mais clássico, mas não menos interessante. A partir, sobretudo, dos arquivos de Hergé e de inúmeras entrevistas procura compôr, com notável sensibilidade, um homem para além do mito: generoso e vaidoso, mais oportunista que colaboracionista, tão dilacerado quanto obstinado, um individualista sempre sob influência. Dando, para isso, particular atenção aos seus períodos negros durante a Ocupação nazi da Bélgica e as sucessivas depressões no pós-guerra e no final da sua vida. Procura mais do que justificar ou explicar, entender e fazer entender convições ideológicas e percurso espiritual, sem esquecer uma evolução artística riquíssima, em técnicas, conteúdo e circunstâncias. Qualquer destes livros dizem ainda muito sobre o século XX, sobre a Europa Central em períodos também eles centrais, sobre, é claro, uma arte que é do século - a bd, mas o que resulta mais fascinante da sua leitura é darem-nos a ver, nota por nota, a composição de uma gigantesca sinfonia: a da criação d'As Aventuras de Tintim.
Hergé Pierre Assouline, Folio, 1998
Tracé RG - Le Phénomène Hergé H. Van Opstal, Lefrancq, 1998
© 1998 O Independente/João Paulo Cotrim
sábado, 24 de janeiro de 1998
Um foguetão para o ano 2001
Imaginem o cenário: um foguetão com 53 metros de altura, com a respectiva rampa de lançamento, instalado nas proximidades do Centro Nacional da Banda Desenhada e da Imagem (CNBDI). Por trás dos grandes quadrados brancos e vermelhos da fuselagem, espaços lúdicos, áreas de exposição, estúdios para a realização de desenhos animados e actividades multimédia.
É este o projecto que a Fundação Hergé e a empresa Moulinsart (gestora dos direitos relativos ao Tintim) anunciaram anteontem com grande pompa. A concretizar-se, o foguetão constituirá o maior monumento de atracções alguma vez construído a partir de uma obra imaginária.
A ideia é respeitar a escala imaginada por Hergé quando realizou “Tintim na Lua”. Aparentemente, toda a gente — entidades políticas e administrativas regionais, CNBDI e Fundação — está interessada no projecto. Foi assinado um protocolo entre o Conselho Geral da Charente (autoridade regional), a câmara de Angoulême e a empresa Moulinsart que permite avançar para um estudo de viabilização do foguetão. Nesse sentido foram disponibilizados 15 milhões de francos (cerca de 450 mil contos) para as “primeiras impressões”. Assim, até ao final do ano, serão realizados os estudos sobre as condições financeiras e os requisitos técnicos necessários para construir o monumento, bem como o modelo de exploração comercial. Se tudo correr bem, a inauguração oficial terá lugar no dia 1 de Janeiro de 2001.
Esta “ofensiva” da Fundação Hergé ocorre num momento particularmente difícil da instituição. Desde que assumiu a direcção dos negócios, o actual marido da viúva de Hergé, Nick Rodwell, adoptou uma filosofia de controlo muito apertado sobre o fundo Hergé, limitando a actividade dos investigadores e restringindo a possibilidade de utilização das imagens da obra. Os meios afectos à BD falam abertamente de censura e criticam com dureza o que consideram ser um desvirtuamento do espírito e das intenções expressas pelo criador de Tintim.
Se associarmos a esta degradação da imagem pública da Fundação Hergé a acentuada quebra de vendas desde os tempos áureos de 1992/93 (três milhões de álbuns vendidos por ano) — na ordem de um terço — compreendem-se melhor as razões que levam a apostar num projecto tão ambicioso. É neste contexto, aliás, que deve ser também enquadrada a decisão de expor em Angoulême, pela primeira vez, os esboços e desenhos originais da última história de Tintim, que Hergé já não conseguiu acabar (“Tintim et l’Alph-Art”).
As primeiras páginas da imprensa local e regional cobriram amplamente o anúncio daquele empreendimento, que é visto como uma mais-valia de peso para uma região há muito tempo associada à BD. Em contrapartida, a presença portuguesa tem passado razoavelmente despercebida. Além de uma citação no discurso da ministra francesa da Cultura, durante a cerimónia de entrega dos prémios “Alph-Art”, e da moderada curiosidade que suscitou a inauguração da mostra colectiva dos 17 desenhadores portugueses, pouco mais há a assinalar.
A organização do festival nem sequer se fez representar na abertura da exposição, ontem de manhã. E o enquadramento logístico da comitiva tem sido muito deficiente, com alguns aspectos lamentáveis (alojamento muito longe de Angoulême, viagem Lisboa/Angoulême em condições inacreditáveis, distribuição incompleta de convites para a cerimónia de actos públicos, etc.).
A criatividade e pluralidade de estilos e ideias propostos pelos autores portugueses merecia, sem chauvinismos de qualquer espécie, melhor atenção. A própria exposição é, na sua concepção e estrutura cenográficas, um exemplo de simplicidade e sobriedade, permitindo realçar as qualidades das pranchas. Tirando alguns pormenores de montagem, o único senão está no atraso da chegada dos catálogos, prevista para hoje.
© 1998 Público/Carlos Pessoa
domingo, 9 de fevereiro de 1997
“Monsieur Hergé” no Artes & Letras, hoje na TV2: A sombra de Tintim
Do jovem repórter, que os mais maliciosos recordam nunca ter escrito uma notícia ou reportagem sobre as suas viagens, está dito tudo o que há a dizer. Ficaram as obras imorredouras, cuja leitura toca na “corda” aventureira que existe no coração de novas gerações de leitores ou agita, com nostalgia, a memória dos mais velhos.
Mas será que ler Tintim é franquear as portas de acesso ao universo do seu criador? Sim e não, sustenta Benoît Peeters, o autor do documentário feito em 1989 para a televisão belga francófona (evocativo do 60º aniversário do aparecimento do herói da banda desenhada, em 1929) exibido esta noite. É certo que as histórias de banda desenhada de Tintim são, de algum modo, uma “projecção” dos desejos e aspirações do autor e, nesse sentido, permitem reconstituir partes importantes do percurso do próprio Hergé. Por esse motivo, Peeters optou neste trabalho por traçar dois percursos paralelos que se encontram: uma cronologia das histórias concebidas e realizadas ao longo de décadas, com remissão para estados de alma e episódios significativos da vida de Hergé que permitem avançar alguma coisa na compreensão desta ou daquela opção temática.
Mas não é menos certo que a obra não é o autor. Daí que o documentário procure colocar o homem sob a luz, tão crua quanto possível, dos holofotes, e dê a palavra a quem lidou de perto com o criador belga — antigos companheiros de profissão, as duas mulheres com quem esteve casado, amigos íntimos. Através desses testemunhos (algumas das pessoas ouvidas já faleceram entretanto, como é o caso da primeira mulher e de Bob de Moor), Benoît Peeters procura recolher elementos de resposta para esta questão central, enunciada logo no início: como pôde este homem, oriundo de uma família cinzenta, onde se falava pouco, onde não havia livros nem ideias, ser o autor de uma obra admirável?
Paradoxalmente, a solução para este enigma está nas aventuras luminosas e “positivas” de Tintim, uma criatura corajosa, inteligente e generosa e uma espécie de “alter ego” de Hergé, homem sombrio, melancólico, dado a crises emocionais e estados depressivos que tornaram progressivamente mais difícil o seu trabalho e a relação com o êxito e popularidade do seu personagem.
Todos os testemunhos confirmam que, para Hergé, a vida não era fácil de ser vivida, apesar da “boa estrela” que, dir-se-ia, nunca deixou de o acompanhar nos momentos decisivos. Homem inquieto, permanentemente “em busca de um ser, de um guia, de um cúmplice, de um iniciador”, o criador de Tintim é alguém que só consegue obter os equilíbrios pessoais indispensáveis graças às relações particulares que estabeleceu com alguns seres, para ele, excepcionais: o abade Wallé, que o traz para a banda desenhada, o escultor chinês Tchang “adoptado” em algumas das mais belas aventuras de Tintim, Jacobs (o criador de Blake e Mortimer), o padre Gall (aliás, Lakota Ishonala, que quer dizer Sioux Solitário na cultura índia pela qual alimentava uma enorme paixão), Bob de Moor (outro autor de BD) e alguns mais.
Não chegou, como afirma no final do documentário Marcel Stal, galerista e amigo pessoal de Hergé: “Nunca gozou a vida como uma pessoa normal”. Se calhar, é por isso que as aventuras de Tintim despertam nos seus leitores sensações e emoções tão agradáveis.
© 1996 Público/Carlos Pessoa
domingo, 20 de outubro de 1996
Dupond e Dupont
Surgiram em 1934 como simples comparsas na versão a preto e branco de "Os Cigarros do Faraó" — eram, no início, os agentes X 33 e X 33-bis, mas o autor baptizou-os depois com os nomes com que ficaram para a posteridade —, embora a primeira figuração (anónima) remonte à versão a cores de "Tintim no Congo". No entanto, conquistaram rapidamente um estatuto de relevo graças... à sua nulidade mais absoluta. Apesar de uma extraordinária semelhança — distinguem-se um do outro porque Dupond tem um bigode direito, enquanto o de Dupont sobe ligeiramente nas pontas —, não têm qualquer grau de parentesco. O que o criador de Tintim quis simbolizar com estes dois personagens é fácil de perceber: a pretensão e a estupidez, a intolerância imbecil e arrogante dos pequenos burgueses de todas as latitudes, a inépcia e falta de jeito que podem tornar-se perigosas com facilidade.
Mais difícil é saber como surgiram na cabeça de Hergé:
"Já não me lembro", confessou nas suas célebres entrevistas a Numa Sadoul ( "Entretiens avec Hergé", Casterman, 1989). "A verdade é que o meu pai tinha um irmão gémeo que morreu três ou quatro anos antes dele. E, até ao fim, vestiam-se de forma idêntica (...) O que é curioso é que nunca pensei sequer um segundo neles quando criei os Dupond(t)".
Vamos aceitar que sim. Porque o que realmente interessa são os "gags" extraordinários que vivem nas aventuras de Tintim. Circunspectos em qualquer circunstância — ou, pelo menos, é o que eles julgam... —, dão-se uns inimitáveis ares de Sherlock Holmes que tudo no gesto seguinte desmente. Como recorda o mesmo Sadoul, só eles é que poderiam gritar "que ninguém saia" numa situação de "As Jóias da Castafiore" em que entram numa sala de onde ninguém tem vontade de ir para onde quer que seja!
Quase seria desnecessário lembrar que nunca conseguem levar a bom termo as missões de que são incumbidos. E não é raro que as suas desajeitadas iniciativas acabem por se virar contra eles, e isto não é apenas uma imagem! Os seus delírios verbais, que surgem numa fase já relativamente tardia da série, são hilariantes até às lágrimas. E constituem, para todos os efeitos, a sua imagem de marca, de que o "eu diria mesmo mais" é o expoente absoluto. Ao lado desta dimensão cómica dos personagens, há as situações em que se vêem envolvidos. Aparecem num quadradinho para chocarem, com estrépito, num obstáculo na imagem seguinte. E os trambolhões, escorregadelas, e quedas de veículos em movimento (tanto pode ser um jipe como um combóio) são a previsível consequência de qualquer gesto mais inócuo. Ao ponto de se registar uma média de duas quedas por episódio. Nada mau!... Se é verdade que a repetição gera o riso no leitor, não é menos certo que Hergé acentua até ao limite essa fatalidade potencialmente auto-destruidora com a constante exploração de um tique — o de os dois detectives tudo fazerem para passar despercebidos. O resultado é o que se sabe: vestuário folclórico nos países que visitam (dos Andes à China) ou um indescritível fato de marinheiro que mais ninguém usa...
Se tudo isto já não chegasse para abalar a credibilidade profissional dos Dupond(t), há ainda as inúmeras circunstâncias em que eles são vítimas das suas próprias investigações. Dois exemplos: em "O caranguejo das pinças de ouro" perseguem falsários e acabam a pagar uma despesa com notas falsas; em "O segredo do Licorne", roubam-lhes as carteiras umas 20 vezes antes de apanharem o "pick-pocket" Aristide Filoselle...
Bem vistas as coisas, não há muito que possa ser adiantado em abono de duas criaturas com uma estreiteza de sentimentos e uma inteligência tão acanhada? Ora digam lá: o que se pode pensar de quem procura sair do deserto e acaba a perseguir o traçado dos pneus da sua própria viatura?!...
© 1996 Público/Carlos Pessoa
segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
Era uma vez...
Se é certo que a história muito deve a esse encanto "naïf" que impregna a incansável e inquebrantável perseguição aos membros do Sindicato dos Bandidos de Chicago, não é menos verdade que algumas das preocupações de ordem social que Hergé sempre manifestou atravessam o álbum, e estão particularmente patentes nessa admirável sequência de cinco quadradinhos em que é denunciada a expulsão dos índios dos territórios onde foi encontrado petróleo. Todos esses ingredientes temáticos, caldeados através de um traço de uma legibilidade extrema, fazem de "Tintim na América" um clássico cujo valor pode ser aferido pela resistência à erosão do tempo. Porque, hoje como há 60 anos atrás, o prazer da leitura é o mesmo.
© 1995 Público/Carlos Pessoa