sábado, 26 de maio de 2007

Tintim de A a Z

Um dicionário do mundo do popular explorador criado por Hergé.

Acusações - Por via ou do seu percurso pessoal ou de obras onde a actualidade era matéria-prima, várias polémicas perseguiram Hergé, um individualista demasiado inseguro para se afirmar para além de um meio e de amigos tão conservadores quanto presentes. Talvez seja racista, em "Tintim no Congo", mas admira os índios em "Tintim na América", desrespeita os muçulmanos, mas aprecia-lhes a arte, ama o género feminino, mas exercita a misoginia. Terá tido laivos de anti-semitismo durante a II Guerra Mundial, mas revela-se antes de mais oportunista. Tinha como divisa "toda a convicção é uma prisão"... Mas era um defensor intransigente da amizade.

Alph Art - Em homenagem a Hergé que, no momento da morte, a 3 de Março de 1983, trabalhava neste álbum publicado depois em esboço, assim se baptizaram em 1989 os prémios do Festival de Angoulême, em França, o mais importante no seu género (ver Pintura).

Asteróides - Hergé e Castafiore são, desde 1982, os nomes de dois asteróides. Os especialistas admiraram, "com estupefacção", o realismo de Adonis, em "Explorando a Lua", quando não existia fotografia alguma.

Aventura - Uma pequena perturbação no quotidiano lança uma dúvida que só encontra resposta na partida. Porque ainda há exótico, há que vencer todos os perigos, naturais e outros, para dar de caras com o mal.

Estúdios Hergé - O individualista cede, nos anos 1950, ao óbvio. Para cumprir com a sua obsessão de clareza precisa de ajuda, não apenas para uma pesquisa cada vez mais minuciosa mas para refazer em álbum o que foi sendo publicado periodicamente em moldes variáveis. Reúne Jacques Martin, Roger Leloup e Bob de Moor, entre outros, na qualidade de ajudantes na construção de universos.

Filmes - O interesse manifestado, pelo menos desde 1983, por Steven Spielberg na figura de Tintim, que alguns vêm expressa em Indiana Jones, passou a contrato em Março deste ano. Nada se sabe acerca da tecnologia ou do álbum escolhido. Foram duas as adaptações com actores, nos idos de 1960, e várias as animações, iniciadas em 1969, com "O Templo do Sol".

Foguetão - Não voaria, mas a sua forma e cores fez dele um ícone do design contemporâneo.

Gatos - Apesar de Milu, sãos os felinos os preferidos de Hergé.

Gaulle, Charles de (estadista francês, 1890-1970) - "No fundo, o meu único rival é Tintim! Somos pequenos que não se deixam vencer pelos grandes. Não se dá conta disso por causa do meu tamanho."

Géneros - Segundo o tintinófilo, João Paulo Paiva Boléo, o refugiado Hergé, em 1940, escreve de França a Adolfo Simões Müller (ver "Papagaio"), pedindo-lhe que mande dizer aos pais que se encontra bem e que lhe pague em géneros. Há-de recordar, mais tarde, as sardinhas e outros enlatados.

Insulto - É a arte maior do capitão Haddock, que também pratica a de bem beber: são centenas e torrenciais, de açambarcador a zulu, passando por cretino dos Alpes ou ectoplasma. Veja-se "Le Haddock Illustré", Albert Algoud, Casterman.

Jornalismo - Provavelmente a peça mais interessante de umas comemorações de centenário demasiado dadas ao espectacular, uma das partes da exposição Hergé, que o Centre Pompidou, de Paris, acolheu até Fevereiro de 2007, era dedicada exactamente à ideia de jornalismo. Devendo a sua formação ao frenesi das redacções, o jornalismo era, para o célebre autor belga, não tanto uma profissão, mas uma metodologia de abordagem aos assuntos (políticos, naturais, científicos, tecnológicos) do Mundo.

Linha clara - Joost Swarte, desenhador holandês, cunhou em 1977 e de modo duradoiro esta expressão para caracterizar o estilo hergeniano que, muito brevemente, assenta na omnipresença do contorno negro, das cores directas e sem nuances de luz e sombra, realismo dos cenários, regularidade obsessiva de uma paginação que se verga à força da narrativa (e do argumento).

Mecanismo - Narração em suspenso de uma história onde o exotismo serve uma enorme atenção ao presente, por vezes antecipando o futuro, sobretudo tecnológico, tendo o humor como mecanismo e horizonte um enorme esforço de clareza e extrema lisibilidade.

Objecto - Em "A Orelha Quebrada", todos os olhares e movimentos, cada gesto e desenvolvimento gravita em torno de uma estatueta em madeira da tribo dos Arumbayas. O universo hergiano desmultiplica-se em objectos, num verdadeiro "Museu Imaginário" do século, da viagem e da aventura.

Oliveira da Figueira  - Surgirá, em 1934, durante "Os Charutos do Faraó", vendendo e falando (utilidades...). É a mais notável presença portuguesa neste universo, ainda que, em "Tintim no Congo", surja um jornalista do "Diário de Lisboa", mas sem outra espessura que a de uma vinheta, a mesma de Pedro João dos Santos, físico da Universidade de Coimbra, em "A Estrela Misteriosa".

"Papagaio" - Portugal foi o primeiro país não francófono a editar Tintim, apenas seis anos depois do seu início no "Petit Vingtième". O "Papagaio", revista dirigida por Adolfo Simões Müller, acolheu, em 1936, talvez a primeira versão colorida de "As Aventuras de Tim-Tim na América do Norte". Em 1939, Tim-Tim, repórter agora ao serviço de "O Papagaio" irá a Angola (curiosa versão de "Tintim no Congo"). Até aos anos 1960, altura em que surge a revista homónima, o repórter passará pelas páginas do "Diabrete", "Cavaleiro Andante", "Foguetão", "Zorro" e "Diário de Notícias". A edição nacional em álbum aconteceu apenas a partir de 1988, na Editorial Verbo, mas todos os volumes estão traduzidos.

Personagens - No total, são cerca de 325 as personagens que acompanham Tintim.

Pintura - Hergé chegou a sonhar com uma carreira na pintura, apesar de atraído pelo grafismo e pela ilustração. A pintura não deixa de o acompanhar, por exemplo nas aventuras de Quick et Flupke que "explicam" o surgimento do cubismo, mas sobretudo no seu percurso mais tardio de amante de pintura abstracta e coleccionador. Tintim e a Alph’Art, o último e inacabado álbum, procurava uma síntese das reflexões de Hergé sobre a arte e sobre a sua personagem maior, que parece condenada à morte sob ameaça de um revólver: "Vamos atirar-te para um molde e fazer de ti um César. Serás exposto num museu. Nunca mais te veremos. Serás o coração de uma obra de arte. Estarás morto."

Quick et Flupke ou Quim e Filipe - Criados em 1930, estes putos de Bruxelas (12 volumes, na Verbo) que habitam uma infância nostálgica, são exemplo de algumas outras personagens que viveram na sombra de Tintim.

Serres, Michel (filósofo francês, 1930) - "Hergé escreveu, sem o saber, tratados excepcionais. Aprendi mais teoria da comunicação com 'As Jóias de Castafiore' do que em cem livros de um aborrecimento mortal e sem resultado. Aprendi, direi até bastante mais, sobre o feiticismo em 'A Orelha Quebrada', do que em Freud, em Marx ou Auguste Comte... Aprendi mais sobre o quase-objecto em 'O Caso Girassol' do que em qualquer outro lado. Não me diverti apenas, aprendi. Hergé faz rir, pensar e inventar: verbo único em três pessoas."

Tecnologia - Como uma espécie de arrepio, cada aventura é atravessada pela exploração lunar, pela televisão a cores, por um submersível. O século ficou assim na fotografia: irrequieto.

Universo - A obra é um todo tentacular. Há décadas que milhões de leitores fiéis das mais díspares origens encontram motivos renovadas para regressar aos álbuns. São incontáveis as releituras, as recomposições, os ensaios dedicados às Aventuras de Tintim. As suas imagens desmultiplicadas e fragmentárias tocam cada um dos meios de expressão do modo mais inesperado nos lugares mais recônditos. Qual o mistério de Tintim?

Vendas - Em Portugal, e apenas entre 1998 e 2006, já são mais de 800 mil livros vendidos. Traduzidos em cerca de 60 línguas, já somam mais de 200 milhões de exemplares. E um pouco de tudo se vende em torno de Tintim, de uma prancha de "O Ceptro de Ottokar", que atingiu os 102 mil euros, aos mais díspares objectos oriundos (ou não) das aventuras, de um projecto de parque de diversões, anunciado para Angoulême, em França, a musicais.

Viagem - Um enigma não se resolve sem partida: todas as geografias estão ao alcance da curiosidade, todos os meios de transporte serão usados para ir. Tintim sente-se prisioneiro mesmo num palácio. E Hergé dá-lhe grandes paisagens em pequenos quadrados: montanhas, florestas. Tudo começa na viagem.

XXe Siècle - Com forte carga simbólica, dada a ligação entre um e outro, século e personagem, foi naquele jornal conservador católico de Bruxelas que nasceu, no n.º 11 do seu suplemento infantil, "Petit Vingtième", a 10 de Janeiro de 1929, o repórter Tintim que naquelas páginas se manterá até à ocupação nazi da Bélgica, em 1940.

JPC, Expresso, 18/05/2007


Cartoon de Rodrigo de Matos

Expresso, 2007

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