ANTRE TEJO E ODIANA
De origem alentejana, Mário Costa Martins de Carvalho nasceu em Lisboa, na maternidade Alfredo da Costa em Setembro de 1944. Após uma breve passagem por Setúbal, a família instalou-se definitivamente na capital onde o seu pai foi um agente comercial bem-sucedido.
As frequentes deslocações a Alvalade onde tinha família, na própria vila e numa herdade próxima, o Monte da Vinha, deixaram-lhe a viva memória desse Alentejo da infância. E, bem assim, das situações de miséria e humilhação presenciadas nos tempos em que os camponeses trabalhavam de Sol a Sol e as forças policiais procediam como num país ocupado.
A avó um dia mostrou-lhe um poço em que estiveram escondidos dentro de um saco de lona os livros de seu pai, na ocasião em que ele foi preso pela polícia política, ainda solteiro. Nessa altura, contaram-lhe mais tarde, seu pai e os companheiros de prisão foram brutalmente espancados.
COMPANHEIROS TOM E JIM
Aprendeu a ler antes dos cinco anos, ensinado pela mãe, com a ajuda da «Cartilha Maternal» de João de Deus. Descobriu, nesses tempos, colecções d’ «O Mosquito», do «Capitão Morgan», e «Texas Jack» deixadas pelos familiares que já tinham crescido. Ainda não haviam chegado os tempos de «o Cavaleiro Andante» e «O Mundo de Aventuras». Mas Tintim anunciava-se com um comparsa chamado Capitão Rosa, um cão chamado Rom-rom e um amigo distraído, conhecido por Professor Pintadinho de Branco. Foi durante umas férias em Alvalade que o pai lhe trouxe um exemplar de «As Aventuras de Tom Sawyer» da Biblioteca dos Rapazes. Seguir-se-iam «A Ilha do Tesouro» de Stevenson e «A Ilha de Coral» de Ballantyne.
RUA DAS ENFERMEIRAS DA GRANDE GUERRA
Morou, durante anos, à Penha de França, na Rua das Enfermeiras da Grande Guerra, larga e íngreme, que há-de aparecer mais tarde nos seus textos, de forma mais ou menos transfigurada. Lisboa, brilhante e plurifaceta, será, a par do Alentejo, uma presença deslumbrada nas suas obras. Passou por um estranho colégio particular em que as professoras gritavam e davam reguadas. Aos sábados aparecia um capitão doutrinador, regurgitando Deus, Pátria e Família. O Externato «Martim de Freitas» era só para rapazes, mas as proprietárias transgrediam e admitiam raparigas que escondiam num quarto sempre que havia suspeitas de fiscalização ou denúncia.
CAVALGADA HERÓICA, RUMO AO ROYAL
MdC passou mais tarde ao liceu de Gil Vicente, o que representou um alargamento de horizontes abrangendo a Graça, a Senhora do Monte, Santa Clara, Alfama, Mouraria. As reminiscências dessas correrias até ao Castelo de São Jorge emergem em «Casos do Beco das Sardinheiras» e «O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana».
Na Rua da Graça, o velho e elegantíssimo cinema Royal apresentava sessões duplas, não raro com um complemento de suculentos westerns em magnífico Technicolor. Ao invés dos outros cinemas, as sessões do Royal começavam às 15, 15H, com um quarto de hora de atraso para permitir aos rapazes do liceu, depois de uma correria ofegante, chegar a tempo à sala escura. Antes, numa dessas tardes, um padre levemente enfadado dava umas aulas sonolentas de religião e moral que tiveram a vantagem de trazer ao conhecimento as histórias da Bíblia.
Por essa altura, a frequentação dos cinemas de bairro, Royal, Lys, Rex, Imperial, tinha como limite, para além da zona Almirante Reis/Graça as mesadas e as restrições censórias. A revista de cinema «Plateia» rebrilhava de estrelas e starlettes, laboriosamente maquilhadas, em cores de verniz carregado. Um filme como «Escrito no Vento» de Douglas Sirk era para maiores de 18 anos; «Shane», de George Stevens, era para maiores de doze usava-se toda a espécie de batotas e subterfúgios para iludir a vigilância à entrada.
O FASCISMO PEQUENOTE
O regime não se manifestava apenas na repressão das actividades políticas e dos direitos sociais. Existia um fascismo do quotidiano baseado num exercício arrogante de pequenos poderes, nas proibições arbitrárias, na humilhação permanente do outro. A «licença de isqueiro» e a proibição da «mão na mão» são apenas aspectos caricatos de um quotidiano opressivo e cinzento. Em 1959 MdC chegou a ser preso por legionários num calabouço do Castelo de S. Jorge por falar inglês com uma amiga inglesa sem ser «intrépete” (sic) oficial. Outros colegas do liceu passavam humilhações semelhantes por pecadilhos infantis. Era o tempo aviltado das denúncias, da bufaria, da corrupção formigueira, de um Portugal rasteirinho e torpe. Nos próprios liceus o autoritarismo imperava. Nomeava-se para chefes de turma os mais graduados da mocidade portuguesa, uma organização juvenil fardada, militarizada que praticava a ordem unida da tropa, exibia a saudação fascista de braço estendido, e impunha uma bizarra farda de camisa verde e calção amarelo cintado em fecho de lata com o «S» de Salazar. Tudo o que não era proibido era obrigatório. MdC escapou à ordem unida inscrevendo-se na secção de xadrez e passou a ser um entusiasta de Botwinik, Smyslov e razoável praticante da abertura Inglesa e da defesa Karo-Kahn. Não por acaso uma das personagens de «Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina» será jogador de xadrez.
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Deu-se ao trabalho de escrever este texto, muito resumido e na terceira pessoa para criar maior distância e para que conste, prometendo entrar no pormenor quando tiver ocasião.
https://arquivo.pt/wayback/20180407234305/http://www.mariodecarvalho.com/vida