terça-feira, 1 de novembro de 2011

Tintin é de todos

Há que tempos que os fãs do mais famoso repórter do mundo andam num nervoso miudinho. Tudo porque dois não europeus (pior: um americano e um neo-zelandês) ousavam penetrar no território sagrado de Hergé. Ainda por cima adulteravam com a terceira dimensão o país plano de Jacques Brel. E corrompiam a limpeza, a elegância e o apuramento do traço, ou humor, a qualidade e a imaginação das histórias, dos gags, do ritmo narrativo criados por um dos mais referenciais autores de BD com a motion capture, a técnica que mistura imagem real e CGI (computer generated imagery), utilizada recentemente por James Cameron, em Avatar, seguindo o caminho trilhado por Peter Jackson (Senhor dos Anéis, King Kong). Mas a verdade é que não se imagina melhores câmaras, melhores técnicas, melhores mentes e melhores mãos a que pudesse ser entregue esta missão quase impossível. Peter Jackson, produtor e futuro realizador da eventual sequela, cresceu a ler o Tintin - este repórter globetrotter é transversal a geografias e a gerações, as suas aventuras são traduzidas em 80 idiomas, com mais de 350 milhões de cópias vendidas. . . E Spielberg tornou-se um ávido leitor, nos anos 80, depois muita gente ter associado o seu indiana Jones a Tintin - aliás, adquiriu os direitos logo em 83, com a concordância e o agrado do próprio Hergé.
De facto, Tintin é um Indiana Jones sem mochila, sem chicote, sem suor nem barba por fazer - e, neste filme, o já lendário compositor John Williams encarrega-se de o sublinhar. Nem um rasgo de mau feitio, cobiça ou mínima centelha amorosa se lhe atravessa no caminho. E é dramática e cinematograficamente difícil sustentar um herói tão imberbe, tão angelical, sem back-ground familiar, sem passado, sem rugas nem dirty secrets a macular a sua perfeição. Ele é quase uma abstracção, uma espécie de incorporação da neutralidade (em francês Tintin quer dizer Rien du tout). Por isso a motion capture é a técnica que melhor lhe serve, num meio termo entre o realismo e animação, que tornam os actores - seres digitalmente modificados - irreconhecíveis, sendo-lhes, contudo, captáveis as milhares de nuances e expressões faciais e corporais. Muito longe, portanto, do triste destino e que condenou ao ridículo o magistral Goscinny, quando a saga Astérix foi lamentavelmente vertida nas telas.
O filme baseia-se nos álbuns sequenciais Segredo de Licorne e O Tesouro de Rackham, o Terrível, que não são de todos os mais sofisticados, mas faz sentido, se pensarmos que este pode ser o início de uma triologia (se tudo correr bem na bilheteiras, já na América é uma incógnita): aqui Tintin cruza-se pela primeira vez com o seu contraponto de vícios, o capitão Haddock e a sua prolixidade de insultos e com o mítico castelo de Moulinsart. Há um excerto de O caranguejo e Tenazes de Ouro, à mistura, e intrometem-se o barco Karaboujan e a travessia do Saara. Rackan é o vilão do filme, mas falta-lhe carisma, daí nem ter sido retomado em aventuras seguintes, ao contrário do incorrigível Rastapopoulos. E esta pode ser uma falha do filme. Se o herói é atípico e dificílimo de assimilar numa lógica de estereótipo por uma lógica cinéfila mas iletrada nos álbuns de BD, teria de se compensar com um vilão mais terrível. Faltam também os irmãos Pardal, mas em contrapartida introduz-se os gémeos mais redundantes do mundo Dupond e Dupont, Allan, o mordomo Nestor e Castafiore - que não satisfaz o potencial humorístico, mas cumpre a quota feminina. Diz-se que o português Oliveira da Figueira estava previsto (interpretado por Danny de Vito), mas afinal não compareceu. Nem o general Alcazar, ou vendedor de seguros Lampião, a Irma, camareira do rouxinol milanês, e o ensurdecido Professor Girassol. De resto toda a meticulosidade de Hergé, e o seu amor pela tecnologia de transportes, estão presentes nas batalhas navais, nas perseguições com side-cars e modelos de carros dos anos 30, com hidro-aviões amarelos, botes e navios. É preciso ver que Tintin chegou à lua, 16 anos antes de Armstrong. Há, além da banda sonora, um genérico fabuloso, e um diálogo muito à Indiana Jones, agora vestido com calças de golfe: "Sabes pilotar", pergunta-lhe o velho lobo do mar Haddock, a bordo do hidro-avião. "Uma vez entrevistei um piloto", responde Tintin.

Ana Margarida Carvalho in VISÃO

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