terça-feira, 26 de agosto de 2014

Artigo da Observador

Talvez os heróis de antanho parecessem machistas, xenófobos, anti-ecológicos e homofóbicos, mas eram tipos normais e simpáticos, que cultivavam a amizade, a lealdade e a prática das virtudes morais.

Os clássicos são, por definição, aquelas obras de literatura a que sempre se regressa. Por isso, todos os verões, é certo e sabido que releio algum velho álbum do Tintim, recordando os bons velhos tempos da minha infância.
Hergé é, de facto, um autor de culto: os seus livros de aventuras são uma referência, não apenas da literatura juvenil, mas mundial. É verdade que os seus primeiros textos pecavam ainda por alguma ingenuidade, como o anticomunismo primário de Tintim no país dos sovietes, o colonialismo paternalista de Tintim no Congo, ou o simplismo sociológico de Tintim na América. Mas, depois de ultrapassada essa fase inicial, a obra de Georges Remi ganhou maturidade. Quer o protagonista, quer os seus amigos, apesar dos seus inevitáveis defeitos humanos, eram amáveis exemplos de virtude. Tintim é, por assim dizer, o herói que encarna os valores humanistas da Europa de meados do século XX. Mas, em pleno século XXI, estas aventuras e os seus princípios éticos ainda são válidos?
A questão tem alguma razão de ser. A evolução, ou involução, moral destas últimas décadas, obrigou a que Lucky Luke, uma personagem da banda desenhada criada por Morris, substituísse o cigarro, que sempre tinha ao canto da boca, por uma inócua palhinha. Tintim não fuma, mas o tabagismo está presente no capitão Haddock que, apesar de presidente da Liga dos Marinheiros Antialcoólicos, é um bêbado crónico. Mas, para alguns leitores actuais, essa não seria, nem de longe, a pior pecha da obra de Hergé que, a bem dizer, lhes parece ser machista, xenófoba, discriminatória das minorias, anti-ecológica e homofóbica.
De facto, Tintim e todos os protagonistas das suas aventuras são do sexo masculino. Nem sequer, que eu saiba, Milou é cadela! O machismo desta banda desenhada acentua-se também pelo carácter ridículo de algumas personagens femininas, de que é protótipo a estridente Bianca Castafiore.
De alguns anos a esta parte, as realizações cinematográficas norte-americanas integram geralmente algum actor de raça não-branca, ou algum portador de deficiência, mas não há nenhum representante das minorias étnicas, ou descapacitado, nos papéis principais das aventuras do xenófobo e eugénico repórter. Pior, a sua pele rosada e o seu penacho loiro encaixam perfeitamente no tipo ariano, de tão nefasta memória.
Outra ausência significativa é a ecológica: as aventuras contra o mal nunca contemplam a defesa do habitat natural, pois não há nenhuma estória do juvenil herói contra o buraco do ozono, a extinção das focas, ou o aquecimento global. Infelizmente, tanto a gripe das aves como a gripe A não sobreviveram às manchetes que preconizavam os seus efeitos pestíferos, dignos de uma catástrofe mundial e… de uma aventura sensacional.
Outra grave omissão é a que parece indiciar uma atitude homofóbica. Já não há telenovela em que não haja quem namore, ou viva, com uma pessoa do mesmo sexo, mas esta realidade social está ausente das aventuras de Tintim. Num universo predominantemente masculino, a questão até não seria de difícil solução: bastaria que os cómicos detectives Dupond e Dupont fossem apresentados como um felicíssimo casal.
Noutro âmbito, o das perversões sexuais, em que também são pródigas as modernas produções literárias e cinematográficas juvenis, Hergé também é omisso. Para este efeito, Néstor, o mordomo, deveria ser um viciado em práticas sadomasoquistas, à conta dos maléficos irmãos Pardal, os anteriores proprietários de Moulinsart.
Urge uma actualização moral das aventuras de Tintim, para que esta obra continue a ser uma referência da moderna literatura juvenil. Como? É fácil: basta que o herói principal seja filho do Capitão Haddock, o qual, na ausência de uma mãe, recorre, para o efeito, a uma anónima barriga de aluguer. O velho lobo do mar, que entretanto troca o vício da bebida pelas virtudes do crack, também se pode consorciar matrimonialmente com o seu amigo e companheiro, o Professor Tournesol que, por via desta união, poderia co-adoptar Tintim. Eis o que, com toda a propriedade, se poderia considerar, segundo os actuais padrões morais laicos, um happy end!

Perdoem-me a inocência de ter lido e apreciado, durante tantos anos, umas estórias tão politicamente incorrectas! Talvez os heróis de antanho parecessem machistas, xenófobos, discriminadores, anti-ecológicos e homofóbicos, mas eram tipos normais e simpáticos, que estimulavam a amizade, a lealdade e a prática das virtudes morais. Também a eles devo uma infância muito feliz.


Padre Gonçalo Portocarrero de Almada

http://observador.pt/opiniao/tintim-co-adoptado/

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Exposição Tintin por Tintin

O Espaço Litoral Novo Século organizou em 1990 uma exposição de pintura, escultura, fotografia e vídeo sobre o tema Tintin e denominada Tintin por Tintin.
Eis a reportagem então publicada no extinto Diário de Lisboa de 9 de Abril de 1990.


Tintin por Tintim


Espaço Litoral - Novo Século inaugurou sexta-feira, com exposição «Tintin por Tintim»

O nosso herói

Como todas as coisas realmente universais, Tintin é «o nada que é tudo». Saiu há 61 anos da imaginação de monsieur Hergé, palmilhou o mundo, angariou fama, e, hoje, sete anos depois da morte do progenitor, é aquilo que cada um de nós bem entender.

A atestar o facto está a exposição «Tintin por Tintin» a quem coube a missão de inaugurar, sexta-feira passada, o Litoral, o segundo espaço da Novo Século, localizado, como o nome indica, aqui bem perto do «DL», na Rua do Século.

Tal como Nadie Baggioli, responsável pela jovem galeria, nos referiu, a exposição que ali estará patente durante dois meses, surgiu apenas porque este lhes pareceu um tema engraçado. Lançáramo convite a quinze artistas plásticos, oito deles habituais na Novo Século, e o resultado está finalmente disponível ao olhar dos visitantes: fotografias, pinturas, esculturas, objectos de design estrangeiro, vídeos que nos dão, afinal, perspectivas diferenciadas daquele que é ainda o «nosso herói» para várias gerações.

Não pretendendo assumir um carácter sistemático, nem tão pouco nacional, conforme Nadie Baggioli salientou ao «DL», esta exposição inclui trabalhos de António Mendes, Alvim, Carlos Barroco, Carlos Ferreiro, Caseirão, Jorge Camões, José Eduardo Rocha, Luís Cruz, Luísa Ferreira, Manuel San Payo, Miguel Horta, Romualdo, Vitor dos Reis, Vítor Rua e diz coisas de Tintin que a Hergé nunca passaram pela cabeça.

Carlos Barroco, por exemplo, dá-nos uma visão transgressora do herói que jamais fora transmitida nas pranchas de banda desenhada. Num Tintin para todos os gostos na Litoral-Novo Século dos quadros expostos, é notório que Tintin não está muito sóbrio. Diante dele, há uma garrafa e a postura do menino de Hergé já pouco tem de heróica...

Igualmente subversivas são as pequenas esculturas de Caseirão. Como a Barroco, ter-lhe-á agradado a ideia de transformar o menino bem comportado, de gola branca sobre camisola azul-bebé, que Tintin é desde há 60 anos, numa personagem diferente. O texto assinado por Pedro Monteiro acerca do trabalho de Caseirão, publicado no verso do cartaz da exposição, é, a este respeito, bastante revelador. Tintin «é bonzinho, honesto, inteligente, trabalhador, tão perfeito que chega a irritar. Reconforta vê-lo cravado de pregos ou pendurado no pescoço de um caçador de cabeças». Caseirão deu forma ao sádico desejo. Emprestou os óculos de que Tintin necessitava para minerar os efeitos da miopia, fez dele e de Milou vítimas de um sacrifício fatal, dando, desse modo, voz, forma e volume à aspiração daqueles que, à imagem de Álvaro de Campos, já estão fartos de semi-deuses.

Nem todos são tão iconolastas. Para que se apresentasse este diferenciado leque de perspectivas «não houve qualquer intervenção da galeria no trabalho dos artistas» — esclareceu-nos Nadie Baggioli. Alguns deles optaram por representar aspectos determinados das histórias concebidas por Hergé. Foi o que aconteceu com Vitor dos Reis que evocou, em pintura, a história das «Sete Bolas de Cristal», publicada em 1944. O «Caranguejo das Patas Douradas» concluída em 1940, sendo uma das mais conhecidas aventuras de Tintin, foi lembrada por Miguel Horta, o que não é de estranhar, atendendo à conhecida preferência do pintor pelos temas marinhos. Luís Cruz esculpiu o foguetão em que o herói tantas vezes se aventurou e Jorge Camões o dirigível.

A mostra não se fica, todavia, pela pintura, pela escultura, a fotografia e o vídeo. Na loja que funciona em anexo encontram-se à disposição dos compradores alguns objectos de design importados: bonecos para decoração, guarda-jóias, telefones, despertadores, pisa-papéis, serigrafias reproduzindo capas dos álbuns que de resto, como seria de esperar, também estão à disposição dos seus mais fiéis leitores.

Quer a loja quer a galeria propriamente dita nasceram, segundo Nadie Baggioli, para prolongar o espaço Novo Século já existente no 23-A da mesma rua. Até porque um dia destes a criatividade acabaria por transbordar daquela casa.

Maria João Martins, Diário de Lisboa, 09/04/1990

https://tintinemportugal.blogspot.com/2014/08/exposicao-tintin-por-tintin.html