terça-feira, 25 de maio de 2021

Regresso à Ilha Negra


A primeira e única vez que lá estive foi há muito, muito tempo.

Era ainda criança, logo depois do bibe como nesse tempo se usava, e sonhava então todos os sonhos do mundo. E lembro-me de como tudo aconteceu, embora vão passados bem mais de três quartos de século. Muito, muito tempo…

Foi num sótão mágico que encontrei e conheci Tintin, meu companheiro fiel pela vida fora. Era a morada de um velho amigo da família, que frequentávamos, com passagens secretas e outros insondáveis mistérios. Nem Enid Blyton inventaria uma assim, juro!

Tinha um pátio em forma de claustro monacal, com salas de pedra e penumbra que tínhamos medo de invadir e um falso armário na cozinha, onde começava um túnel com estreita escadaria que ia dar a uma viela próxima…

Mas o local mais interessante do casarão, carregado de surpresas, era mesmo o sótão, apinhado de jornais entre outras atracções ali arrumadas. Estava lá o Papagaio.

O Papagaio era uma revista colorida cheia de ilustrações, que sobretudo me fascinavam até porque ainda eu não sabia decifrar os códigos do soletrar e do ler. As histórias do Papagaio também não podiam contar-me tudo até porque tinha de adivinhar as suas continuações entre as desordenadas folhas soltas dos originais a que tinham pertencido. Tudo ali era um desafio…

Preenchia na medida do impossível a passagem do continua no próximo número ao continuado do número anterior, entre lapsos e falhas, tudo desencontrado sem outro remédio que não fosse a minha imaginação. Foi assim que acompanhei Tim-Tim -nessa tradução lusitana mais tarde percebida- por longes terras, pela América do Norte de Al Capone, pelo enigmático Oriente, por Angola ainda nossa e, sobretudo, pela Ilha Negra. A Ilha Negra!

A Ilha Negra até era o sítio mais próximo, aqui mesmo na Europa,  concretamente na Inglaterra. Para ser preciso e rigoroso, ficava na Escócia, terra de castelos misteriosos e de monstros lendários.

Por lá acompanhei o meu amigo mais o Rom-Rom, fiel cão que só muito depois reconheceria como Milou, o famigerado dr. Silva (ou Müller!?), os dois polícias secretos e por aí fora. A tonalidade etnográfica escocesa, para além do kilt, do scotch whisky ou do castelo mal assombrado, incluía o monstro tradicional. Nessa oportunidade, talvez por mero acaso, não foi Nessie do Loch mas o gorila da Ilha Negra.

Quando estive na Ilha Negra eu usava ainda calças à golf e boné de pala, tal como Tintin, meu amigo desde então. Ambos crescemos como seria inevitável. Mas foi pena, porque gostaria de me ter mantido como então, nesses heróicos tempos com fumos de guerra. Ele correu o mundo, a Rússia e toda a Europa, a China, as Américas, a África mais a Oceânia e até foi à Lua - imagine-se! - enquanto eu permaneci agarrado às raízes domésticas.

E agora, muitos anos depois, vou lá voltar, ao ponto de encontro, como num eterno retorno.

Tenho a certeza, absoluta, de que o Tintin estará à minha espera. Não será no mágico sótão portalegrense onde nos conhecemos, mas nas escocesas margens do Loch Ness. Temos tanto, tanto, para conversar!

E - quem sabe? - talvez Nessie nos queira fazer companhia.

António, 20/09/2017

(blog de António Martinó de Azevedo Coutinho)

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