segunda-feira, 26 de julho de 1993

Os bons e os maus

Dentro de dois meses, mais dia menos dia, o calendário vai parar numa data: 27 de Setembro de 1966. Hergé já não é jovem, mas as suas histórias sim. Os tempos são adversos, por entre contestações várias, elementares e primárias, recheadas de ideologia e outros rótulos pouco abonatórios. Todavia, distante está o tempo das polémicas aventuras de Tintin no país dos sovietes, na América, em África. E também o ciclo da aventura — em estado puro e duro — durante a ocupação nazi da Bélgica. O díptico “As Sete Bolas de Cristal-O Templo do Sol”, “No País do Ouro Negro” e a saga lunar são aventuras que se sucedem com constância. Os personagens de Hergé continuam a correr mundo, na senda dos raptores de Tournesol e também como libertadores dos muçulmanos em peregrinação a Meca. “Tintin no Tibete” é, em seguida, o mais comovente hino à amizade que alguma vez se concebeu em banda desenhada, e “As Jóias de Castafiore” um simples divertimento, um intervalo lúdico que surpreende pelo que não tem: um tema. Os sinais de misticismo e de sedução dos fenómenos parapsicológicos já vinham de trás, primeiro de forma discreta, depois mais ostensiva. E quem diria que um mero voo para Sidney iria dar lugar a tantas peripécias, algures no mar das Celebes, deixada para trás a cidade de Jacarta? Bem, é assim mesmo a aventura. E não se espera outra coisa de uma história aos quadradinhos. Os dados estão lançados e os peões nos respectivos lugares. Familiares, Haddock, Tournesol, Xyssa e, evidentemente, Tintin e Milou. Neófitos, o milionário Carreidas, Spalding e alguns malfeitores de segundo plano. Na charneira, um velho aventureiro e conhecido de Tintin e Haddock, Rastapopoulos, em torno de quem tudo se move. Determinam as regras que nada fique entregue ao acaso: perante a ofensiva adversária, os “heróis positivos” têm que inverter o rumo dos acontecimentos. Eis que mergulhamos em voo picado no campo da aventura clássica, regida por códigos que os criadores conhecem como a palma da mão. Onde Hergé rompe com os cânones é no apelo à presença de entidades extraterrestres, graças às quais os seus personagens escapam a um fim trágico. Mais um mistério que fica por explicar, excepto para os leitores, a quem Hergé lança uma piscadela cúmplice que só termina no último quadradinho: é o regresso ao aeroporto de Jacarta, na ilha de Bali, onde toda esta história começa e acaba. A rotina e o quotidiano não têm, de facto, lugar na banda desenhada.

 © 1993 Público/Carlos Pessoa

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