quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Uma agitada aventura colonial

Depois da viagem de Tintim ao país dos sovietes, o sonho de Hergé é levar o seu herói até à América. Profundamente apaixonado pela cultura índia, seus costumes e mitos, começa de imediato a trabalhar nesse projecto. O padre Wallez, director do "Le Petit Vingtième" e mentor espiritual do desenhador, é que não está pelos ajustes: se há algum lugar onde levar Tintim é o Congo, na altura uma colónia belga, juntando o útil ao agradável - espalhar o espírito missionário e evangelizador, incrementando as vocações coloniais. Assim acontece e o resultado é "Tintim no Congo", hoje distribuído com o PÚBLICO.
Ao contrário da história anterior ("Tintim no País dos Sovietes", que é também a primeira da série), Tintim é acolhido em África como um herói internacional e uma figura quase lendária. Aliás, a glória precede-o nessa saga africana, pois os representantes da grande imprensa internacional - curiosamente, Hergé inclui também o deferente delegado do "Diário de Lisboa"... - disputam entre si o privilégio de publicar em exclusivo as reportagens do herói. Mas este permanecerá fiel ao "Vingtième", onde esta BD será publicada entre 5 de Junho de 1930 e 11 de Junho do ano seguinte.
De um modo geral, o traço de Hergé apresenta-se mais firme, mas sem perda de espontaneidade. Quanto ao desenho dos animais, é o próprio autor a confessar que pediu "ajuda" às gravuras de Benjamin Rabier. Perante uma multidão de "pretos" preguiçosos, estúpidos e infantis que se exprimem em mau francês, Tintim louva os méritos e grandezas da mãe-pátria. Milu também não está pelos ajustes: ele aceitou ir a África para caçar grandes feras, no que é imitado pelo seu dono, que não tem o menor problema em matar animais a torto e a direito, eliminando até um rinoceronte com dinamite... No entanto, o herói não chega a ter adversários locais verdadeiramente maus, pois os negros desta história são demasiado pueris para serem perigosos.
Tal como acontecera a propósito de "Tintim no País dos Sovietes", o padre Wallez decide organizar uma recepção ao herói quando este regressa a Bruxelas. Uma multidão impressionante acolhe um Tintim de carne e osso e um Milu pedido de empréstimo ao dono de um café da cidade, que quase é esmagado no boulevard du Jardin Botanique por centenas de miúdos que lhe querem dar torrões de açúcar...
A publicação de "Tintim no Congo" não levanta qualquer polémica na época, de tal modo a história está conforme ao espírito da mentalidade europeia daquele tempo - por outras palavras, ter territórios ultramarinos é atributo dos grandes países e sinónimo de poder no concerto das nações. Só mais tarde, quando a questão colonial entra na agenda política, é que a aventura africana de Tintim passará pelo crivo da análise político-ideológica.
Esta BD valerá a Hergé acusações de colonialismo e racismo, das quais este se defende invocando a mentalidade reinante na sociedade belga dos anos 30 do século XX. É verdade, mas não o é menos, nesta fase inicial da sua obra, a colagem do artista aos valores culturais e ideológicos dominantes. E não deixa de ser curioso que, ao realizar a reformulação gráfica e de diálogos desta história, em 1946, o artista belga a deixe praticamente intacta em termos narrativos.
Hergé nunca escondeu o seu desamor por "Tintim no Congo". No entanto, querelas ideológicas e filosóficas à parte, permanece como um excelente documento sobre a imagem estereotipada que os europeus tinham do continente africano.

O que disse Hergé sobre "Tintim no Congo"
 Hergé; Numa Sadoul

NUMA SADOUL:Foi dito e redito que era racista. Este é um bom momento para pôr as coisas a claro: que tem a dizer em sua defesa? Que responde quando o acusam de ser "racista"?
HERGÉ: - Respondo que todas as opiniões são livres, incluindo a de pretender que eu sou racista... Enfim, seja!... Há "Tintim no Congo", admito-o. Isso passou-se em 1930. Do país eu só conhecia aquilo que as pessoas diziam na altura: "Os negros são crianças grandes... Felizmente para eles, nós estamos lá!, etc..." E eu desenhei os africanos de acordo com esses critérios, no mais puro espírito paternalista que era o daquela época, na Bélgica. Mais tarde, pelo contrário, em "Carvão no Porão" - e isso, apesar de se falar na história em "pretoguês" - parece-me que Tintim dá provas sobejas do seu anti-racismo, não?... (...) Em "Tintim no Congo", tal como em "Tintim no País dos Sovietes", o que se verifica é que eu me alimentava com os preconceitos do meio burguês em que vivia. De facto, estas duas histórias foram pecados de juventude. Não é que eu os renegue. Mas, enfim, se tivesse que refazer as histórias, fá-las-ia de outra forma, isso é certo. Seja como for, todos os pecados têm redenção!...
Passemos então directamente a "Tintim no Congo".
- "Tintim no Congo"... Por que é que eu fiz "Tintim no Congo", e como é que o fiz?... Na realidade, depois do seu regresso da Rússia eu preferia ter enviado Tintim directamente para a América. Mas o padre Wallez persuadiu-me a começar pelo Congo: "É a nossa maravilhosa colónia, que tem tanta necessidade de nós, e além disso é necessário despertar vocações coloniais" e patati e patatá! Nada disso me inspirava muito, mas eu rendi-me a esses argumentos e pronto, lá fomos em força para o Congo! Como disse, fiz esta história na perspectiva da época, ou seja, de acordo com um espírito tipicamente paternalista... que era, posso afirmá-lo, o de toda a Bélgica. Passemos sem mais demora ao próximo álbum.
("Entretiens avec Hergé", de Numa Sadoul, Éditions Casterman).
© 2003 Público; Carlos Pessoa

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