Avaliação anual da banda desenhada em Portugal de 2007 - Critica
Há um ano a Universidade portuguesa primou pela ausência no balanço sobre a crítica de banda desenhada. Em 2007 brilhou a estrela, solitária (?), de Ana Bravo e da sua tese de mestrado, com honras de publicação: “A invisibilidade do género feminino em Tintin, a conspiração do silêncio”. Não vou aqui discutir o mérito dos pressupostos teóricos, hipóteses de trabalho, investigação, elaboração e conclusões da dita tese, amplamente debatida pelos meus colegas metacríticos João Paulo Boléo, Pedro Moura (http://lerbd.blogspot.com/2007/09/invisibilidade-do-gnero-feminino-em.html#comments) e outros, certamente... O meu comentário será de ordem geral, por um lado, e muito particular (porque me afectou pessoalmente), por outro.
A crítica feminista (ou marxista, ou pós-colonial, ou pós-estruturalista, ou queer, ou outra coisa do género...) é-me simpática porque vejo demasiada miopia na análise dos conteúdos que as obras veiculam ou sugerem (se é que essa análise existe em Portugal para além do blog “Ler BD”, de Pedro Moura). Ao denunciarem estereótipos femininos na BD (na esteira de Edmond Baudoin, as maiúsculas caracterizam, aqui, a banda desenhada comercial) as feministas bem podem dizer: o rei vai nu. Mais, no caso de Ana Bravo nem se trata de um rei. Como bem viu Joël Kotek em “Les grands mythes de l’histoire de Belgique, de Flandre et de Wallonie”, a tintinologia (eu diria: a tintinofilia) é uma religião e Hergé é o seu profeta. Segundo o mesmo Kotek existem, na tintinologia (entendida como teologia): os textos sagrados (os livros de banda desenhada e demais papelada de Hergé); os sumo-sacerdotes, guardiões do templo e evangelistas (hergéologos, tintinólogos, tintinófilos, tintinólatras, tintinmaníacos, tintinopatas); uma congregação de fiéis (os demais fans de Tintin); cismas, heréticos, textos canónicos (estes últimos publicados pelas edições Moulinsart). Mark McKinney, o qual cita Kotek no último “International Journal of Comic Art”, acrescenta ainda: o sanctum sanctorum (onde se guardam as relíquias sagradas); um templo: o museu a construir em Louvain-la-Neuve, com inauguração marcada para o dia 22 de Maio de 2009. (McKinney acrescenta ainda outros pormenores como a universalidade dos textos sagrados e a anunciação da segunda vinda, encarnação em filme com realização das estrelas do box office, obviamente, Steven Spielberg e Peter Jackson.)
Só é pena que a crítica de banda desenhada feita por homens (a única que existe nos jornais portugueses) sofra de ataques constantes de nostalgia, infantilismo, hagiografismo, enciclopedismo, biografismo, gosto pelo midcult, e outras barbaridades do género... Estereótipos e personagens com a espessura psicológica da folha de papel em que foram desenhadas; formulas narrativas dignas de filmes de série B; etc... etc... são pormenores que não impedem a canonização na história oficial da banda desenhada (entenda-se: a história da inane BD infanto-juvenil do século XX; aí esteve a exposição “As 10 BDs do Séc. XX” (sic) no 18º Festival Internacional Banda Desenhada Amadora 2007 (sic) para, à excepção de “Maus”, de Art Spiegelman, provar o que digo). O que faz falta, portanto, realmente, e em conclusão, é uma crítica “machista”. Posto isto vamos ao “pormenor” que me afectou pessoalmente nesta história (e peço desde já desculpa por utilizar um meio público em “proveito” próprio): fui plagiado por Ana Bravo (nas pp. 40, 41). O que me parece irónico é que o subtítulo do livro em causa seja “a conspiração do silêncio” e que no título apareça a palavra “invisibilidade” porque a sensação que tive foi exactamente essa: a de ser invisível. Claro que eu sou apenas um crítico de banda desenhada...
Uma arte menor para deleite dos menores de idade, como todos sabemos e no-lo diz o lugar-comum, ou/e dos adultos que têm um intelecto algo reduzido. Citar-me não podia ajudar a conseguir a classificação de Muito Bom, como, estou certo, Ana Bravo mereceu... e eu com ela. Dá muito mais status e capital intelectual citar Pierre Bourdieu ou Michael (sic, pag. 82) Foucault, claro.
Mas, infelizmente, Ana Bravo esteve longe de estar sozinha nesta menorização da crítica de banda desenhada durante o ano de 2007. Nos jornais, o panorama não foi melhor. (Escuso-me de comentar, em jeito de reportagem, como soe fazer-se, nestes balanços, o trabalho de divulgação que ainda vai existindo nos nossos pasquins.) Refiro-me, mais concretamente, à única razão que leva as chamadas “políticas editoriais” (entenda-se, fórmulas que explicitam o dilema: “vamos lá a ver como é que raio conseguimos vender mais papel?”) a incluírem a BD nos parcos suplementos culturais que ainda vão subsistindo (a banda desenhada como arte a sério está fora de questão porque quase não existe como negócio): a última adaptação hollywoodiana de um qualquer comic industrial, livro, ou argumento original da autoria de algum peso pesado do mainstream dos comics. Em 2007, miséria das misérias, tivemos as versões cinematográficas da mini série fascistóide “300”, do racista neocon Frank Miller, e da fantasia light “Stardust, O Mistério da Estrela Cadente”, livro do peso leve da literatura e da banda desenhada, Neil Gaiman.
À semelhança do que (não) fiz acima a propósito do livro de Ana Bravo abstenho-me, porque não é este o espaço indicado, de comentar o filme “300”, para além do óbvio: trata-se de uma peça de propaganda racista, homofóbica, e militarista, parte integrante da engrenagem hegemónica do poder económico imperial. Nem sequer falta a ridícula dicotomia infantilóide, belos/bons, feios/maus: os iranianos, perdão, os persas (parafraseando Rui Henrique Coimbra), são ninjas e orcs; o espartano traidor Efialtes é um indivíduo disforme; só Xerxes, Rodrigo Santoro, foge a esta lógica, mas é um fulano descomunal, provavelmente homossexual, que se encontra “desfigurado” por inúmeros piercings.
Pelo que sei do que se escreveu a propósito do filme e do livro nos jornais portugueses nem uma palavra disseram os críticos de banda desenhada habitualmente de serviço sobre o assunto (apenas João Miguel Lameiras tentou tapar o sol com a peneira no diário “As Beiras” de 14 de Abril: “a reacção que teve mais impacto mediático foi a do governo iraniano (não por acaso, o filme foi proibido no Irão) que acusou “300” de ser um instrumento de propaganda da administração Bush na sua luta contra o Irão. Claro que esta acusação é absurda, pois a BD de Frank Miller data de 1999, muito antes de Bush Jr. chegar ao poder e a visão que ela transmite tem por base os escritos do historiador grego Heródoto, que passou à escrita um episódio épico da história da Grécia, preservado pela tradição oral e que Miller reinterpretou na BD”). “Reinterpretou”, está certo... fazer-se esta versão em cinema, precisamente agora, também deve indicar qualquer coisa... mas adiante...
No jornal “Expresso” deu-se um fenómeno curioso; houve uma divisão de tarefas à boa maneira das linhas de montagem (“300” teve honras de capa no suplemento “actual” de 6 de Abril, mas alguém boicotou a publicidade com um título na tradição do jornal “Independente”: “A Batalha dos 300”; o trocadilho/alusão a uma batalha de pacotilha, tipo “loja dos 300”, parece não deixar dúvidas): o correspondente em Los Angeles, Rui Henriques Coimbra, entrevistou o realizador Zack Snyder e esmiuçou os aspectos económicos envolvidos (em Roma, sê romano; nos Estados Unidos da América, sê capitalista); Nair Alexandra escreveu um excelente texto sobre os factos históricos; o crítico de banda desenhada, João Paulo Cotrim, foi chamado a discorrer sobre Frank Miller (e fê-lo recorrendo ao habitual biografismo); o crítico de cinema Vasco Baptista Marques, criticou o filme, de forma breve, mas contundente (senão, vejamos: “Tem “décors” claustrofóbicos e sequências de acção sanguinolentas; tem 300 gajos monosilábicos, psicóticos e bronzeados; tem uma horda de adeptos da magia negra, “shows” lésbicos e teratologia; e tem um argumento tão protofascista e eugenista que faz com que o cinema de Risfenstahl pareça politicamente inócuo por comparação”; além do mais, todos os colegas de Vasco Baptista Marques que escrevem no “Expresso” deram uma solitária estrelinha ao pompieríssimo filme). Resultado: crítico de cinema – 1; crítico de banda desenhada – 0. (Já agora, e para equilibrar as coisas, recomenda-se o texto de Pedro Moura: http://lerbd.blogspot.com/2005/05/300-frank-miller-com-lynn-varley-dark.html#comments).
Também Neil Gaiman teve honras de capa no suplemento “actual” do jornal “Expresso” de 29 de Setembro e também desta vez o título alusivo ao dito não é de todo lisonjeiro: “Neil Gaiman, Anda nas Nuvens”. Os meus parabéns, portanto, a quem escreveu os dois ajustadíssimos títulos. Se Frank Miller é elogiado pela comunidade fanática “da BD” apesar dos seus dotes literários medíocres e de uma política maníqueista caricatural (entenda-se: propaganda grosseira), Neil Gaiman não lhe fica atrás, apesar de ser o campeão do midcult. Depois de largos elogios por parte do crítico de banda desenhada João Paiva Boléo, o crítico de cinema Manuel Cintra Ferreira criticou o filme, “Stardust, O Mistério da Estrela Cadente” (realizado por Matthew Vaughn), de forma breve, mas inequívoca (sem, apesar de tudo, ter sido tão mordaz como deveria; o dumbing down constante tem de produzir efeitos nefastos nalgumas mentes: “O filme de Vaughn é bonito, vê-se sem grandes cuidados, [mas] talvez [seja] demasiado “lavado” para quem procure um pouco de ironia. Se o seu alvo é o público infantil suporta-se. Se é outro, falta-lhe o humor (apesar da presença de Ricky Gervais) que a série “Shrek” tem para dar e vender”. Resultado: críticos de cinema – 2; críticos de banda desenhada – 0.
Por fim, e para terminar com uma nota positiva (convém, nestas quadras festivas), quero saudar os textos de José Carlos Fernandes no “BD Jornal” e no catálogo do festival da Amadora. Apesar de não serem crítica, no sentido mais tradicional, são crónicas interessantes e uma lufada de ar fresco. (...)
texto de Domingos Isabelinho
https://arquivo.pt/wayback/20090930112723/http://www.bedeteca.com/index.php?pageID=dossie§ion=crit&set_year=2007
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