terça-feira, 5 de março de 2019

O sobrenatural nas aventuras de Tintin

Para além do meu conhecido interesse pela literatura fantástica, particularmente pela literatura de terror – e, dentro desta, mais especificamente ainda pelas narrativas de terror sobrenatural – outras áreas me despertam a atenção desde a juventude, entre elas a das histórias em quadradinhos ou, como passou a ser costume dizer, da Banda Desenhada.

Claro que são múltiplos os pontos de contacto entre uma coisa e outra. Nomes como os de Richard Corben, Berni Wrightson e muitos, muitos outros são exemplos de autores de Banda Desenhada que se dedicaram à área do terror. No panorama editorial norte-americano, por exemplo, diversas revistas que desenvolviam esse campo específico ficaram célebres, podendo referir-se entre outros, títulos como Tales from the Crypt, Vault of Horror (ambas 1950-1955), Creepy (1964-1983), Eerie (1966-1983), etc. Modernamente, não se pode também deixar de referir múltiplas adaptações de clássicos como as obras de H. P. Lovecraft, E. A. Poe, M. A. James, etc., ao formato da história em quadradinhos.

Mas para além dessa produção especializada, sucede muitas vezes que temas sobrenaturais ou ligados ao sobrenatural ocorrem igualmente nas obras de autores não especializados.

Entre as mais importantes personagens da Banda Desenhada internacional e particularmente europeia encontra-se sem dúvida Tintin, herói criado pelo autor belga Georges Remi (1907-1983), celebrizado com o pseudónimo Hergé, sucedendo que a publicação da sua primeira aventura, sob o título completo Les Aventures de Tintin, reporter du “Petit Vingtième”, au pays de Soviets, teve início no dia 10 de Janeiro de 1929, ou seja, há noventa anos; o Petit Vingtième era, como se sabe, o suplemento infanto-juvenil do jornal diário belga Le Vingtième Siècle, que se publicou entre 1895 e 1940.

Ao longo de perto de duas dúzias de histórias, Hergé serve-se da sua famosa personagem para traçar uma verdadeira crónica de boa parte do século XX. Pelas páginas que narram as aventuras de Tintin perpassam temas de grande actualidade para a história política e social da época: guerras, revoluções, tráfico de estupefacientes ou de armamento, a questão da escravatura, os problemas ligados à exploração do petróleo, etc.

Ora, juntando-se o interesse pelas histórias sobrenaturais ao gosto pela Banda Desenhada e em especial pelas aventuras de Tintin, surge com toda a naturalidade, uma pergunta: haverá, nas histórias idealizadas por Hergé, a intervenção de fenómenos ou de episódios sobrenaturais?

Foi isso que me propus verificar, examinando a colecção dos álbuns de aventuras do nosso herói. Não sendo muitos os casos detectados, nem se podendo, de modo algum, dizer que o sobrenatural desempenhe nas aventuras de Tintin um papel de relevo, a verdade é que tão-pouco se encontra completamente ausente.

Passemos pois à análise dos casos em que os fantasmas – verdadeiros ou imaginados –, em obediência a uma deixa apropriada, entram em cena, nem que seja por breves instantes!

As páginas indicadas referem-se às mais recentes edições da firma belga Casterman.

TINTIN EN AMÉRIQUE

O detective Mike MacAdam, que já anteriormente tinha procurado colocar os seus prodigiosos poderes de dedução ao serviço de Tintin, quando este procurava o desaparecido Milou – e que começa por se apresentar [pág. 45] como o detective (privado) do hotel onde Tintin está hospedado, para mais adiante [pág. 58] aparecer como enviado pela própria polícia – usa desta vez o faro canino para chegar ao dono raptado.

Não havendo nada de concretamente sobrenatural em toda a cena, a verdade é que o tratamento da imagem, contra o fundo nocturno, especialmente da mão que se estende pelas costas do detective, bem como o evidente medo que este sente (“Tout de même, ce nést pas três rassurant, tout ce noir”, logo seguido de “secouons-nous, que diable!” [pág. 58]) e até o cheiro inexplicado sentido por Milou [pág. 58], está eivado de elementos comuns às histórias de terror: a mão descarnada poderia facilmente pertencer a um vampiro ou aventesma quejanda, cuja condição cadavérica explicaria o mau cheiro.

Deve assinalar-se que Mike MacAdam desaparece para não mais voltar, sendo lícito especular-se sobre o seu destino final…

LES CIGARES DU PHARAON

Durante a recepção em casa do major, os convidados são alertados por um grito de Mrs. Snowball [pág. 39] que, recuperando os sentidos, afirma ter visto um fantasma; essa afirmação é corroborada pelo criado indiano [pág. 39].

Claro que o “fantasma” em questão não é mais que o enlouquecido Prof. Philémon Siclone, que se passeia pelo parque, envolvido num lençol [pág. 39].

Embora o “sobrenatural” tenha aqui uma explicação inteiramente natural e mesmo prosaica, não restam dúvidas de que a imagem tradicional do fantasma, que aparece sob a forma de um lençol (ou coberto com ele) aponta para um mito concreto.

A propósito do papel do lençol na composição da figura espectral, vejam-se também, por exemplo, as aventuras de Arthur, le fantôme justicier, criação de Cézard nas páginas das revistas Vaillant e Pif (Arthur apareceu em Portugal na revista Falcão) e de Casper, inventado na década de 1940 por Seymour Reit e Joe Oriolo.



Ainda em Les Cigares du Pharaon, há que notar que não considero na secção “sobrenatural” os estados alterados de consciência, quer quando Tintin sucumbe a uns fumos narcóticos, que lhe provocam estranhas alucinações, no interior do túmulo de Kih-Oskh [pág. 9], quer quando o pobre Prof. Siclone e mais tarde o escritor Zlotzky enlouquecem, ao serem injectados com o temível radjaïjah [pág. 43], que, como é bem sabido, viria também a ter um papel importante em Le Lotus Bleu. Saliente-se apenas que, enquanto nos casos de Siclone e Zlotzky a loucura se traduz por um comportamento meramente caricatural (Siclone julga-se Ramsés II e Zlotzky afirma ser Napoleão), o que, de resto, acaba por ser imitado por Tintin em Le Lotus Bleu, quando se faz passar por louco para escapar a Mitsuhirato (que lhe injectou um líquido inofensivo julgando tratar-se do terrível veneno), já Didi, o filho de Wang Jen-Ghié – novamente em Le Lotus Bleu – atinge um estado contemplativo, citando Lao Tzu (*).

(*) – Lao Tzu (老子), também transliterado como Laozi, Lao Tse, etc., filósofo chinês, autor do texto taoista fulcral Tao Te Ching, que terá vivido – se realmente existiu, diga-se – algures entre os séculos VI e IV antes de Cristo.

LE LOTUS BLEU

Os prodígios exibidos pelo faquir Cipaçalouvishni, como caminhar sobre cacos de vidro, atravessar-se com facas ou sentar-se sobre um leito de pregos [pág. 2], não mereceriam talvez a inclusão no plano sobrenatural, mas sim numa espécie de “super-natural”, que abrangeria fenómenos que a Ciência contemporânea não explica mas que tão-pouco obrigam à intervenção de forças ou entidades estranhas ao nosso plano de existência.

Já os dotes premonitórios que o faquir manifesta [pág. 3] pertencem claramente a uma esfera distinta. É importante recordar que a capacidade de adivinhar o futuro volta a ter um papel significativo em Les 7 Boules de Cristal.

L’OREILLE CASSÉE

Mais uma vez um equívoco leva uma das personagens femininas a imaginar que há fantasmas envolvidos nas peripécias em curso. Desta vez, não há qualquer ilusão visual, mas uma voz misteriosa identifica-se claramente como o falecido senhor Balthazar [pág. 8].

Três imagens mais adiante [pág. 9], o pretenso “fantasma” é identificado como sendo o papagaio do falecido, fazendo gala das capacidades vocais por que estas aves são bem e justamente conhecidas.

L’ÎLE NOIRE

Estabelecemos já, de certo modo, que as aventuras de Tintin não têm, de modo geral, genuínos elementos sobrenaturais. Não obstante, há um tipo específico de narrativa – com raízes no romance gótico do século XIX – que é característico do conto sobrenatural e são as idiossincrasias desse género literário e alguns dos mitos que o povoam que conseguimos encontrar aqui e além.

Nas aventuras escocesas de Tintin, não poderia faltar, ainda que de forma suave, esse elemento de pavor, sob a forma do monstro desconhecido que habita a Ilha Negra [págs. 41,42].

Com efeito, sendo a Escócia, com os seus castelos em ruínas, lagos profundos e misteriosos e densos nevoeiros sobre pântanos inóspitos, a terra dos fantasmas por excelência, mal pareceria que

Hergé não utilizasse minimamente esse imaginário no seu argumento.

Deve notar-se que a cena no pub “The Kiltoch Arms”, em que o velho escocês adverte Tintin dos perigos que o monstro representa para quem se aventure nas águas do Loch ou na ilha propriamente dita [pág. 42], é digna da melhor tradição dos filmes de terror, particularmente dos filmes de vampiros!

Note-se que L’Île Noire data de 1938, enquanto o Nosferatu de F. W. Murnau é de 1922 e o Dracula de Tod Browning, de 1931.

Esses filmes claramente marcaram o tom de dúzias e dúzias de outros que foram sendo feitos depois e uma das cenas capitais é precisamente aquela em que o herói, seja ele Jonathan Harker ou outro, parando numa estalagem perdida algures na Transilvânia, a caminho do desfiladeiro de Borgo e do castelo do Conde Dracula, é confrontado com o pavor dos aldeões que frequentam o estabelecimento e que procuram dissuadi-lo de seguir viagem, alertando-o para vagos perigos.

Um caso exemplar de utilização da mesma cena pode encontrar-se também no filme An American Werewolf in London (1981), de John Landis.

A cena do pub em An American Werewolf in Londo 

Claro está que na aventura de Tintin tudo acaba por ter uma explicação natural, sob a forma de um gorila gigantesco (mas dócil). Contudo, antes de essa verdade ser revelada, o mistério perdura, na sua forma mais inquietante…

Finalmente e ainda a propósito do cenário da porção final desta aventura, não podemos deixar de recordar as lendas rodeando o famoso Loch Ness, junto a Inverness, nas High Lands escocesas.

Na verdade, embora relatos da presença de uma criatura aquática desconhecida nas águas do lago fossem já conhecidos no final do século XIX, foi na década de 1930 – precisamente a década em que Hergé escreveu L’île Noire – que apareceram as primeiras fotografias e filmes minimamente nítidos do misterioso ser.


Nessie
O “Nessie”, como é carinhosamente chamado na Escócia, guardou até aos nossos dias o segredo da sua identidade, mas converteu-se num mito popular, celebrado num pequeno e interessante museu na localidade de Drumnadrochit. Certamente Hergé não terá ficado indiferente à poderosa imagética associada, não sendo pois estranha a escolha da localização do refúgio dos falsários. O próprio Tintin menciona a famosa criatura criptozoológica.

LE SECRET DE LA LICORNE

Quando os irmãos Loiseau comunicam com Tintin, encarcerado na cave do Château de Moulinsart, como se identificam inicialmente? Os de melhor memória responderão prontamente: como o fantasma do Chevalier de Hadoque [pág. 37]!

O caso é que Tintin apanha um verdadeiro susto, tanto assim que corre a esconder-se atrás de uma coluna! Vemos pois que o nosso herói, por muito destemido e racional que seja, não e imune à ideia do sobrenatural…

LES 7 BOULES DE CRISTAL

A aventura Les 7 Boules de Cristal data de 1948. Vinte e seis anos antes, Howard Carter, apoiado pelo seu mecenas, o aristocrata Lord Carnarvon, tinha descoberto, no Vale dos Reis, o túmulo do faraó egípcio Tutankhamon.

Associada à abertura do túmulo, foi muito falada uma lenda sobre uma suposta maldição lançada pelo antigo faraó contra aqueles que viessem a perturbar o seu descanso.

O que é verdade é que Lord Carnarvon faleceu no início de 1923 (sem ter chegado a ver a múmia e o sarcófago de Tutankhamon) e conta-se que no momento da sua morte ocorreu na capital egípcia uma falha eléctrica inexplicável, enquanto em Inglaterra a cadela do falecido teria uivado e caído morta no mesmo momento; nos meses seguintes morreriam também um meio-irmão do lorde, a sua enfermeira, o médico que fizera as radiografias e outros visitantes do túmulo. Para além disso, no dia em que o túmulo foi aberto de forma oficial, o canário de Carter foi engolido por uma serpente, animal que se acreditava proteger os faraós dos seus inimigos. Os jornais da época fizeram eco destes factos e contribuíram de forma sensacionalista para lançar no público a ideia de uma maldição. Curiosamente, Howard Carter, descobridor do túmulo, viveu ainda durante mais treze anos.

Estas lendas chegaram rapidamente a Hollywood, onde, em 1932, Karl Freund realizou The Mummy – com Boris Karloff no papel do príncipe egípcio Im-ho-tep, sacrílego condenado a ser enterrado vivo e que acaba por voltar à vida depois de aberta a sepultura –, o primeiro de diversos filmes sobre as maldições associadas a múmias egípcias (se bem que já em 1911, 1912 e 1923 se tivessem realizado filmes com o mesmo título, mas todos eles na área da comédia!).

Que a história da maldição de Tutankhamon é uma fonte de inspiração para Les 7 Boules de Cristal, é patente desde a quinta imagem da história [pág. 1], em que o companheiro de viagem de Tintin, que já tinha prenunciado consequências nefastas para os exploradores que, andando pelo Peru e pela Bolívia, tinham descoberto e trazido consigo para a Europa a múmia do rei inca Rascar Capac, diz expressamente: “Eh bien, cette histoire de momies… Souvenez- vous de Tout-Ankh- Amon, jeune homme!…”; e, logo a seguir, “Songez à tous ces égyptologues qui sont morts mystérieusement après avoir ouvert le tombeau de ce Pharaon… Vous verrez, la même chose arrivera à ceux qui ont violé la sépulture de cet inca…”.

Eis-nos, pois, em pleno sobrenatural, com uma maldição do além-túmulo sobre os profanadores da sepultura.

No entanto, a primeira verdadeira manifestação sobrenatural nesta história dá-se em pleno teatro, quando Ragdalam, o faquir, e a vidente Yamilah, passam de um número circense devidamente encenado para um conjunto de revelações autênticas, claramente inexplicáveis, que deixam assombrado o próprio Ragdalam [págs. 8,9].

As revelações de Yamilah fazem a ponte com a descoberta da múmia de Rascar Capac, visto que Madame Clairmont é precisamente a esposa de um dos exploradores que a encontraram nas montanhas andinas.

Mas as manifestações sobrenaturais propriamente ditas começam durante a noite, em casa do Prof. Hippolyte Bergamotte.

Não nos referimos à bola de fogo que invade a sala do professor, entrando pela chaminé, e provoca efeitos físicos diversos de destruição, culminando na volatilização da múmia inca, confirmando a maldição gravada no antigo túmulo (“Et le jour où, dans un éclair éblouissant, Rascar Capac aura déchaîné sur luimême le feu purificateur […]”, [pág. 32]). Na verdade, o fenómeno raro do “raio globular” (em francês, “la foudre en boule”), ainda não totalmente explicado pela Ciência, consiste numa descarga eléctrica de forma circular, pensando-se que possa ser constituído por um círculo de plasma ou de gás ionizado, com origem na atmosfera, que, atingindo o solo, se desvanece rapidamente; normalmente associado a tempestades, o raio globular produz, segundo os testemunhos disponíveis, um som formado por zumbidos e estalidos, libertando um cheiro de enxofre ou ozono (o que, de resto, é corroborado pelo Prof. Tournesol, que afirma: “Moi aussi!… Et ça sent même très fort: le soufre, n’est-ce pas?”, [pág. 32]).

Acresce que este cheiro a enxofre ajuda a estabelecer o clima sobrenatural, visto o enxofre estar associado às emanações infernais! O fenómeno pode ainda interferir em emissões de rádio, deixando rasto à passagem; segundo consta, pode causar nos seres humanos queimaduras, paralisia ou mesmo a morte.

Queremos, isso sim, destacar o pesadelo que, durante a noite, aflige simultaneamente Tintin, Haddock e Tournesol.

Nesse sonho, a múmia de Rascar Capac, tendo ganho vida, vem assombrar os nossos heróis, revelando-se responsável pelas bolas de cristal cujos gases misteriosos deixam inanimadas as suas vítimas [págs. 32,33].

O pesadelo é de tal modo real que até o Prof. Tournesol, cientista experimentado, logo pouco dado a superstições, fica convencido da autenticidade do espectro.

OBJECTIF LUNE

Aqui, o sobrenatural volta a ser puramente imaginário. Desta vez, são os Dupondt os afectados, com a aparição de um misterioso esqueleto [págs. 23-25].

O esqueleto, símbolo da morte, é, evidentemente, uma imagem corrente nas histórias de fantasmas, sem dúvida assustador, quando animado por vida inesperada… Excepto, evidentemente, se se trata da nossa própria estrutura óssea…

TINTIN AU TIBET

Há, evidentemente, um certo número de fenómenos cuja realidade está longe de estar comprovada e cuja natureza, caso sejam autênticos, é totalmente desconhecida da Ciência actual.

Entre esses fenómenos contam-se, por exemplo, a telepatia – ainda assim, dos mais estudados –, a telequinésia e a levitação. No mosteiro do Tibet, o monge budista Foudre Bénie eleva-se nos ares e tem visões [pág. 44]. Não se trata de qualquer número circense, nem de qualquer habilidade de palco. A seriedade de todo o cenário envolvente, a solenidade do local, a própria ingenuidade de Foudre Bénie e a habituação dos seus companheiros impedem-no claramente. Estamos perante fenómenos autênticos. Se é já a terceira vez que a capacidade de clarividência ocorre nas aventuras de Tintin (as anteriores haviam sido protagonizadas por Cipaçalouvishni, o faquir de Le Lotus Bleu, e por Yamilah, em Les 7 boules de cristal), a levitação faz aqui a sua primeira e única aparição.

Poderemos enquadrar estes fenómenos na área do “sobrenatural”? Parece seguro responder afirmativamente, pelo menos enquanto não forem encontradas explicações científicas em que se possam fundamentar. Mais ainda, as capacidades pouco usuais de Foudre Bénie derivam, ao que tudo indica, do acesso a um plano superior de existência, cuja porta de entrada envolve uma vida ascética de contemplação e meditação. Como parte de uma experiência religiosa, em muito semelhante, na religião cristã, aos casos de estigmatização, de descrição de aparições – que são relativamente vulgares, mesmo nos nossos dias – de levitação, etc., estes fenómenos não podem deixar de se considerar como ultrapassando a esfera da Natureza física e de penetrar, portanto, no sobrenatural.

LES BIJOUX DE LA CASTAFIORE

Uma vez mais nos deparamos com um falso fantasma. Bianca Castafiore vê uma coruja junto à janela e assusta-se terrivelmente [págs. 14,15]; e em vez de procurar uma explicação simples e razoável, a sua interpretação do que acaba de ver leva-a imediatamente ao reino do sobrenatural

Adenda:

Ainda dentro das representações do sobrenatural, haverá que apontar o episódio de Objectif Lune [pág. 49] em que o Capitão Haddock se disfarça de fantasma para tentar asustar Tournesol e assim levá-lo a recuperar a memória. Coberto por um lençol e com as tradicionais correntes, o Capitão exclama (subentendendo-se que em voz cavernosa e ameaçadora): “Houwou!… Houwou!… Prends garde, Tryphon, je suis un fantôôôme!…” e “Ha-ha-ha!… Tremble, ô mortel, car je vais t’emporter chez le dia-a-a-ble!…”.

CONCLUSÃO:

Fica bem claro que nenhuma das aventuras de Tintin de pode – de perto ou de longe – incluir no campo da literatura de terror ou do sobrenatural, nem outra coisa sendo de esperar de uma obra que se presume agradar a um público na faixa etária “dos 7 aos 77 anos”, segundo a expressão bem conhecida, mas que foi primariamente concebida para uma audiência juvenil.

Não quer isto dizer que Hergé não tenha recorrido, mais que uma vez, a elementos decididamente fantásticos, nomeadamente em Les 7 Boules de Cristal, com a descrição – para além dos aspectos acima referidos –, dos estranhos poderes dos incas, em Les Cigares du Pharaon, atendendo às misteriosas capacidades do faquir, e ainda em Tintin au Tibet, como acima se observou. Também a ficção científica não anda ausente, com a viagem à Lua, no duplo álbum Objectif Lune/On a Marché sur la Lune, o uso do mini-submarino em Le Trésor de Rackam le Rouge, a participação do Abominável Homem das Neves em Tintin au Tibet e dos extraterrestres nos seus discos voadores em Vol 714 pour Sydney.

Mas o que fica patente no estudo efectuado é a utilização de ícones, ambientes e conceitos comuns à literatura de terror. Essa utilização não poderá ter deixado de ser feita com toda a consciência e encerra evidentes ecos da literatura gótica – e até dos chamados “romances de cordel” – de finais do século XIX e inícios do século XX, com as suas hostes de monstros, fantasmas e outras aventesmas. Trata-se, portanto, de mais uma perspectiva de análise da obra de Hergé.

No dia 10 de Janeiro, comemoraram-se os 90 anos da mítica personagem Tintin,  a publicação das suas aventuras se iniciou no dia 10 de Janeiro de 1929, para encanto de sucessivas gerações de leitores.

António Monteiro in revista BANG

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