domingo, 17 de outubro de 2021

Tintin ou o triunfo dos pequenos

Em dezembro de 1969, poucos meses após a demissão do general De Gaulle, André Malraux foi visitá-lo ao seu retiro de Colombey-les-Deux-Églises e trouxe de lá um livro marcante, que relata (fielmente ou não, mas que importa?) a sua conversa com o homem que saía nesse momento da política e da vida ativa para entrar na lenda dos séculos.

É nessa conversa que De Gaulle diz a famosa frase "no fundo, o meu único rival internacional é Tintin", que é frequentemente citada a propósito desta enorme e já mítica figura da ficção, agora objeto de uma exposição na Fundação Gulbenkian que eu fiz questão de não perder. Mas falta explicar porque dizia tal coisa o general; e a frase continua: "Nós [De Gaulle e Tintin] somos os pequenos que não se deixam levar pelos grandes; só não dão por isso por causa do meu tamanho" - e ri-se.

Um pequeno que sabe enrolar os grandes, como David fez a Golias, é um herói improvável. É De Gaulle, contando apenas com a aliança nem sempre estável de Churchill para se opor ao "bom senso" de Roosevelt, que queria diluir a Resistência no esgoto dos pétainistas arrependidos e governar militarmente a França como país ocupado. O heroísmo improvável de De Gaulle foi o de, pequeno como estava, declarar sem ambiguidades que ali onde ele está é a França que fala e conseguir, contra todas as probabilidades, colocar a França entre as nações vitoriosas da guerra.

Também Tintin faz uma aposta improvável e fora do bom senso quando, contra todas as evidências dos relatos do desastre aéreo no Tibete, decide ir procurar o seu amigo Tchang, um dos passageiros do avião perdido. Quem é pequeno só pode fazer apostas improváveis, porque para as certas não tem os meios. Como caracteriza Malraux: "O homem que escapa ao destino - o que é talvez a definição do homem lendário - é diferente do santo e do herói." É do que nos ocupamos - Tintin, que foge ao destino.

Tintin escapa aos criminosos que o perseguem no Congo, aos gangsters que o cercam na América, a Rastapapoulos e seu bando de traficantes, a Mitsuhirato e à espionagem japonesa, ao general Alcazar e ao general Tapioca, aos agentes da Bordúria, de Musstler a Pleksy-Gladz,, aos traficantes de escravos, aos sinistros irmãos Loiseau, ao traidor Wolff e finalmente ao yeti que chora lágrimas de emoção no termo desse grande romance que é Tintin no Tibete... Ele é bem pequeno face a todos os inimigos e todos os desafios - mas conta com a sua inteligência, a sua coragem, a sua astúcia ... e os seus amigos.

As histórias de Tintin são histórias de amizade sem falhas: Haddock segue Tintin para a sua louca aventura no Tibete, os raptores de Tournesol são perseguidos sem qualquer hesitação ou receio por Tintin e Haddock. O grupo familiar que cerca este Tintin sem família aparece-nos em cada álbum, todos fiéis ao que são e dando-nos assim a segurança límpida dos seres que não mudam.

De Gaulle entendeu Tintin. Nós, os tintinófilos, seguimo-lo desde o mais fundo da infância e compreendo Hergé quando ele considera que Tintin nos servia de modelo. De modelo de curiosidade que não cessa de inquirir a verdade das coisas, de modelo moral que pelo Bem se bate sem tréguas contra os maus (sempre desenhados numa linha clara que, ai de nós, veremos depois esbater-se e acinzentar-se à medida que nos tornamos adultos) e que triunfa de injustiças desde logo claras para nós (a expulsão dos índios dos seus territórios na América) ou que mais tarde compreenderemos melhor (a agressão japonesa contra a China). A curiosidade levou-nos a querer entender o mundo. A moral levou-nos a querer entender os humanos nossos irmãos. Tintin levou-nos a entender que ser pequeno não é necessariamente ser escravo.

Luís Castro Mendes (Diplomata e escritor), Diário de Notícias, 05/10/2021

«Conheci Tintin aos meus cinco anos e nunca mais me separei dele, mesmo depois da morte do seu autor Hergé.»

Luís Filipe Castro Mendes, facebook, 30/04/2020

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