domingo, 14 de novembro de 2021

Do 7 aos 77

"As angústias colectivas são contrárias à tradição Tintin. Tintin é intimista. Mesmo no decurso da expedição lunar, a opinião pública mundial não teve qualquer papel e, no entanto, Deus sabe bem que essa era uma questão que interpelava toda a humanidade. E, em Carvão no Porão, o problema da escravatura resume-se a um quarto de página num livro de 62 páginas. As convulsões do mundo, a intervenção dos poderes, os grandes movimentos de massas, isso é Jacobs, não é Hergé!" Foi assim, com uma comparação com o seu colega e amigo Edgar Pierre Jacobs, criador de Blake e Mortimer, que Hergé definiu a sua obra e a marca distintiva das aventuras de Tintin e Milou.

Noutra ocasião, dirá que o seu trabalho não era motivo de glória e de honras espúrias, mas também não deveria ser razão de vergonha ou arrependimento. Com isso, talvez procurasse defender-se das críticas feitas a algumas histórias de Tintin: a do Congo, acima de todas, verberada pelo modo paternalista com que nela os africanos são tratados pelos colonos brancos; mas também a viagem do repórter pela Rússia dos sovietes ou, pior ainda, um dos álbuns mais controversos, A Estrela Misteriosa, em que uma equipa de cientistas europeus - entre os quais um alemão, um sueco, um espanhol e um português, professor em Coimbra - se confronta com uma expedição financiada por um milionário judeu de Nova Iorque, com Tintin, claro está, a alinhar pelo Velho Continente contra os yankees sem princípios nem escrúpulos. Publicada em 1942, com a Bélgica então ocupada pelos nazis, é difícil não ver nessa obra uma crítica aberta, muito na linha da propaganda do Reich, à tentação de hegemonia mundial por parte dos EUA, país ademais dominado por um vasto complô semita. Já antes, com Tintin na América, Hergé traçara um retrato cáustico da vida do lado de lá do Atlântico, com pinceladas sombrias sobre a corrupção e os crimes dos clãs mafiosos, com Al Capone à cabeça, sobre a segregação dos negros e a destruição dos povos índios.

Não têm faltado as vozes que referem à outrance as ligações perigosas do criador de Tintin e, na verdade, a lendária personagem das histórias em quadrinhos ou quadradinhos (ou "histórias aos quadrados", como lhes chamava a censura salazarista nos anos 1950) foi fortemente inspirada por um homem, o padre Norbert Wallez que, do ponto de vista político e ideológico, se mostrava bem enquadrado nas direitas extremas. Defensor de uma federação entre a Bélgica e a Renânia, Wallez era um admirador incondicional de Benito Mussolini, que o recebera em Roma em 1923 e que, não muito depois, lhe enviara um retrato autografado, em tudo idêntico ao que adornava o gabinete de trabalho de Oliveira Salazar. Antigo estudante de Lovaina, seguidor das doutrinas de Maurras e da Action Française, o padre Wallez fora nomeado director do Le Vingtième Siècle, um jornal conservador fundado em 1895 e em cujo suplemento infanto-juvenil, o Le Petit Vingtième, Hergé começará a publicar as aventuras de Tintin. Por razões não muito claras, mas porventura ligadas às suas inclinações políticas, Wallez será demitido da direcção do periódico, em 1933, mas, com a invasão da Bélgica pelos nazis, em 1940, retomará os seus escritos bárbaros e as suas intervenções flamejantes, o que lhe valeu uma dura pena no pós-guerra: em 1947, foi acusado de colaboração com os alemães e condenado a cinco anos de prisão e a uma pesada multa de 200 mil francos. Permanecerá detido em Charleroi até 1950, mas, por padecer de um cancro, foi libertado por razões de saúde, morrendo não muito depois, em Setembro de 1942. Hergé e a sua mulher, Germaine, antiga colaboradora do padre Wallez, não deixarão de o visitar no seu leito de morte.

Este sacerdote radical sempre se considerou coautor das aventuras de Tintin ou, como já alguém disse, "Hergé criou Tintin, mas foi Wallez quem teve a ideia". A personagem do jovem repórter é, sem margem para dúvidas, uma criação original de Hergé, que já antes concebera uma figura muito parecida ao mítico herói, o escuteiro Totor, devendo lembrar-se que, antes disso, Benjamin Rabier inventara, em 1897, a personagem Tintin-Lutin, com a qual o Tintin de Hergé tem bastantes semelhanças visuais. A cadelinha Milou, um fox-terrier que, até à aparição do capitão Haddock, desempenhou alegremente o papel de Sancho Pança do Tintin-Quixote, foi inspirada, ao menos no nome, na primeira namorada de Hergé, Marie-Louise van Cutsem, "Milou" de petit nom. A intervenção do padre Wallez não ocorreu, pois, na concepção dos personagens (Tintin, Milou), mas noutro plano, não menos decisivo: é ele que sugere, ou ordena, que a primeira aventura de Tintin seja uma viagem à Rússia soviética, para um impiedoso retrato do país dos bolcheviques, que o repórter se desloque depois ao Congo, de modo a promover junto das crianças e dos jovens o trabalho dos missionários católicos em África e, enfim, que vá de seguida à América, em digressão crítica da civilização do dólar, das fábricas e das megalópoles trepidantes. Se Hergé foi o pai de Tintin, Norbert Wallez foi o pai das aventuras de Tintin, sobretudo as da primeira fase.

Na busca de revelações e escândalos, alguns biógrafos insistem em excesso nessas relações do criador de Tintin com a direita radical, como sucede com Pierre Assouline (Hergé, 1998); outros, como Benoît Peeters (Hergé, Fils de Tintin, 2002), sem negarem tais ligações, adoptam uma atitude mais moderada e menos sensacionalista. Se é indesmentível que Hergé conheceu, e conheceu de perto, Léon Degrelle, o líder do Partido Rexista, que colaborou miseravelmente com o nazismo, o facto é que o criador de Tintin nunca navegou nessas águas ignóbeis, bem longe disso: numa famosa intervenção pública, o cardeal Van Roey, arcebispo de Malines e primaz da Bélgica, descrevera Degrelle como "um perigo para o país e para a Igreja" e Hergé seguiu a orientação eclesial, evitando os insistentes apelos do dirigente rexista para colaborar no jornal Le Pays Réel.

No essencial - e esse é o ponto decisivo -, Georges Rémi, de nome artístico Hergé, foi um produto do movimento social católico surgido nos escombros da Grande Guerra. O conflito de 1914-18 provocara um intenso recrudescer da espiritualidade em toda a Europa: em França, falou-se num "regresso aos altares", tal o número de fiéis que procuraram o amparo da fé para lidar com a catástrofe reinante e os mortos aos milhões; em Inglaterra, e não só, o espiritismo teve grande surto, pela mão de Conan Doyle e tantos outros, pois eram muitos os que queriam comunicar com os filhos ou familiares tombados em combate. Entre nós, e além do fenómeno da Virgem de Fátima, os anos 1920 e 1930 são de grande vigor para a Igreja, a qual, sob os auspícios do Papa, não hostilizava já os poderes instituídos, antes buscava um cordial ralliement com eles. O Centro Católico Português, a Acção Católica, o febril movimento dos congressos de crentes (falou-se até em "congressite") são alguns dos muitos momentos em que se desdobrou uma nova visão do catolicismo, mais empenhado na esfera social e política como forma de combate às doutrinas socialistas e marxistas e às suas ideias de luta de classes. Assim, não é por acaso que a JOC, a Juventude Operária Católica, foi fundada em 1923, na Bélgica, pelo padre Joseph Cardijn, como não é por acaso que foi o padre Abel Varzim que, quando estudava em Lovaina, conheceu as aventuras de Tintin e as trouxe para Portugal, o primeiro país não francófono a publicar as suas histórias. Foi nesse "caldo de cultura" que se afirmou e projectou Oliveira Salazar e, sem forçar paralelismos descabidos, foi também nele que Hergé se formou e começou a trabalhar.

O criador de Tintin, importa dizê-lo, nunca foi um ideólogo ou sequer um homem com grande densidade cultural e política: filho de um alfaiate, neto por via materna de um canalizador, oriundo de uma família onde, como o próprio reconhecerá, não havia muitos livros ou conversas profundas, o turning point da sua infância dá-se quando é retirado do ensino laico e inscrito no católico Colège Saint-Boniface e, em simultâneo, sai dos Boys Scouts, também laicos, para ingressar na Associação de Scouts Baden-Powell, clerical. Passadas no le plat pays de que falava Brel, a infância e a juventude de Hergé não foram particularmente felizes ou ricas de experiências e acontecimentos, nem marcadas por vastas leituras, por férias memoráveis, por idas ao teatro e ao cinema. Aliás, até uma fase adiantada da vida, Hergé nunca fez grandes viagens ("excepto nos livros", dizia) ou mostrou especial interesse pelo cinema, pelo teatro, pela pintura abstracta ou pela ópera, ainda que todas estas artes estejam presentes nos seus trabalhos.

Pelo menos até aos anos 1950, ou mais tarde ainda, será um conservador, sempre fiel à monarquia e a Leopoldo III, um desenhador modesto que procurava ganhar a vida e que estava obsessivamente concentrado nas suas criações e na sua obra. Tentou a publicidade, sem grande sucesso, e, em 1940, quando os alemães chegaram, ficou apavorado de medo: com a mulher, mete-se num carro pela França adentro, numa fuga sem sentido nem rumo. Depois de escrever a Adolfo Simões Müller, o seu editor português, pedindo-lhe que avisasse os pais e os sogros que se encontrava bem, acaba por regressar à Bélgica. Num dos momentos mais tristes da sua carreira, colaboraria no jornal Le Soir quando este é dominado por uma direcção totalmente alinhada com os nazis e aí publica alguns desenhos de indiscutível timbre antissemita. Mais do que isso, torna-se próximo de Raymond de Becker, o editor do Le Soir, e alinha com a sua apologia de uma "ordem nova", conceito que, entre nós, também seduziu muitos publicistas de direita, como Marcello Caetano e Pedro Theotónio Pereira (que fundaram em 1926 uma publicação com esse nome, a Ordem Nova, "revista antimoderna, antiliberal, antidemocrática, antibolchevista, hamburguesa"), ou como João Ameal, que em 1932 deu à estampa o livro A Revolução da Ordem.

Por causa disto, no pós-guerra Hergé terá a fotografia e o nome expostos na "Galeria dos Traidores", o rol dos que colaboraram com o ocupante nazi. Foi detido, passou uma noite na prisão, interrogado, sujeito a depuração, mas no final prevaleceu o bom senso e nunca o condenaram. É que, se o tivessem preso, muitos outros, aos milhares, teriam de o ser também. O editor dos seus álbuns, Casterman, fora nomeado burgomestre de Tournai durante a ocupação germânica e, sobretudo entre os flamengos, a colaboração tinha sido intensa e imensa. Além disso, o mais relevante: Hergé nunca foi um "fascista", no espírito e nas acções, até porque não tinha envergadura intelectual ou política para voos tão arriscados. Foi, isso sim, um vago militante católico, atormentado por depressões cíclicas, algumas das quais prolongadas, alguém que vivia obcecado com a sua obra, na qual trabalhava sete dias por semana, 365 dias por ano. Na década de 1930, tivera um encontro que mudaria a sua vida para sempre. Enquanto preparava O Lótus Azul, o padre Léon Gosset, capelão dos estudantes chineses de Lovaina, instara-o a não figurar os orientais com os estereótipos clássicos, que encontramos nas histórias de Blake e Mortimer ou de Buck Danny. Por seu intermédio, encontra-se em 1934 com Tchang Tchong Jen, um jovem estudante chinês que nele terá o efeito de uma epifania. Anos mais tarde, Hergé dirá que ele foi "um dos principais artífices da minha evolução" e, graças a Tchang, o criador de Tintin passará a ter um olhar mais complacente e humanista para com os demais povos do mundo, a interiorizar e a assumir os princípios éticos da sabedoria oriental, a interessar-se pelo taoísmo e pelas religiões da Ásia. Num certo sentido, Tchang resgatou-o da influência tutelar do padre Wallez, que dera azo às primeiras histórias, as da Rússia, do Congo e da América. Depois, no pós-guerra, um sucesso imparável: em 1950, funda os Studios Hergé e os seus álbuns conquistam gerações de leitores em todo o planeta, dos 7 aos 77 anos.

Hergé deu-nos Tintin, Milou, Haddock, Bianca Castafiore, os Dupond & Dupont, uma galeria infindável de personagens que fizeram a nossa infância e que a prolongam até morrermos. Hoje, há quem o fustigue e ataque, há quem pretenda censurá-lo, tirá-lo da vista das criancinhas, dos infantes que tentamos proteger das malvadezas de Tintin enquanto os deixamos à solta pelas redes sociais, tenebroso reino das maiores acefalias e das piores pornografias. Alguém entende isto?

António Araújo in DN

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