quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Com Mil Raios e Coriscos!

O capitão Haddock foi o primeiro herói da minha infância. Quando aos três anos de idade desembarquei em Portugal, vindo de Moçambique, trazia debaixo do braço um álbum do Tintim, O Templo do Sol, naquelas edições brasileiras da Record. Não me esqueço. Nunca mais me vou esquecer. Viemos sozinhos, eu e o meu irmão mais velho, ao cuidado de uma hospedeira de bordo amiga da família, enquanto os meus pais se deixavam ficar para trás, em Lourenço Marques. A violência da separação e a chegada a uma terra estranha, onde nunca pusera os pés, marcaram-me para toda a vida. Talvez por isso as minhas primeiras memórias coincidam com essa época. E talvez por isso me tenha afeiçoado tanto àquele marinheiro rabugento e eternamente zangado.

Há tempos decidi finalmente ir buscar a casa dos meus pais os livros de BD que durante anos, comigo já aqui no bairro da Graça, tinham ficado esquecidos no sótão. Durante meses andei entretido a reler esses velhos álbuns aos quadradinhos, vasculhando a memória, suspirando nostalgicamente pelo passado. Não tenho dúvidas, o capitão Haddock é uma personagem fabulosa, talvez das mais extraordinárias de toda a banda desenhada. Haddock surgiu pela primeira vez em O Caranguejo das Tenazes de Ouro (1940), o álbum nº 9 das aventuras do jovem repórter do Petit Vingtième. Tintim já tinha ido entretanto ao País dos Sovietes, ao Congo do Rei Leopoldo III, à América de Al Capone, à China da guerra sino-japonesa, à terra dos Faraós e às ditaduras de opereta da América Latina. Tintim e Haddock conhecem-se a bordo do cargueiro Karamboudjan, que transportava nos porões caixas de conserva com ópio (facto que o capitão, obviamente, ignorava). Haddock é um alcoólico, com uma sede pior que a de Tântalo. É um vulgar bebedolas com maus vinhos que tem comportamentos autodestrutivos e violentos, chegando mesmo a ameaçar a vida de Tintim. Logo ali, ainda mal se conhecendo, Tintim diz ao capitão: “Vai prometer-me não beber mais. Pense na sua dignidade, capitão! Que diria a sua velha mãe se o visse nesse estado?...” Haddock rompe em soluços, desata a chorar pelas barbas abaixo: “BU-UH... BU-U-UH... MAMÃ!... M-MAMÃ-Ã!” Tentado constantemente pelo álcool (de preferência o uísque velho, de malte, mas também rum, conhaque de três estrelas ou champanhe, tudo menos água, esse líquido nauseabundo), Haddock é fraco mas com bom coração. O livro termina com Haddock a dar uma palestra para a Rádio Centro sobre o tema “o álcool, inimigo do marinheiro”.

No álbum seguinte, A Estrela Misteriosa, aquele em que Haddock se torna verdadeiramente numa das personagens principais do mundo de Hergé, o capitão reaparece como Presidente da Liga dos Marinheiros Antialcoólicos. Claro que vai ter muitas recaídas, e esse será um dos seus traços característicos, o que aliás o torna muito mais humano que Tintim. Este, pelo contrário, é uma personagem perfeita, logo menos complexa. Tintim raramente tem dúvidas quando se trata de ir socorrer alguém, mesmo que na outra ponta do planeta. Haddock protesta, hesita, “que estupidez, ir à Lua!”, por ele ficaria sempre no sumptuoso castelo de Moulinsart. Mas acaba por partir, mesmo que contrariado e furioso. Tintim nunca se irrita, nunca chora, nunca tem medo. O capitão é espontâneo, efervescente, não se contém, é ruidoso, descabelado, solta faíscas. São famosas as suas cóleras. Épicas. Os insultos fervem-lhe na boca, fica escarlate de raiva. Blasfema. Explode como um vulcão. Como Hergé confessou a Numa Sadoul, “Haddock sou eu quando preciso de me exteriorizar”. Até em termos gráficos, Haddock é uma personagem mais complexa. A cara de lua cheia de Tintim nunca muda de expressão, ao passo que o rosto do capitão assume múltiplas formas e o corpo é muito mais flexível e elástico.

Haddock “escolhe cuidadosamente as palavras, como um poeta. Sim, como um poeta, gosta das palavras que soem bem, de palavras sonoras e raras” (Jacques Marny). Os seus ataques de nervos são verdadeiros compêndios de insultos. Aqui fica uma selecção, que podem utilizar abundantemente no vosso quotidiano:

Flibusteiros, marinheiros de água doce, mercenários, açambarcadores, judas, renegados, esquizofrénicos, rizópodos, ectoplasmas, emplastros, trogloditas, aztecas, sapos do deserto, vendedores de tapetes, iconoclastas, zulos, parasitas, bexigosos, sacripantas, esclavagistas, tecnocratas, vegetarianos, quadrúpedes, corsários, hidrocarbonetos, canacas, giroscópios, doríferos, zuavos, antropopitecos, anacolutos, invertebrados, tocadores de gaita-de-foles, bichos-de-conta, velho pepino, sinapismo, escolopendras, velho cachalote, coleópteros, atarracados, anacoretas, bichas-solitárias, piróforos, colocíntidas, zigomicetes, gargarejos, cataplasma, saguins, espécie de iconoclasta míope, fanfarrão de orquestra, cretinos dos Alpes, equinodermes, fagote de Madagascar, galináceos, espécie de babuínos, cercopitecos, velhacos feitos de extracto de cretino, turcos, saltimbancos amestrados, espécie de analfabeto diplomado, bacalhau atlético, zebróide, protozoários, lagarto desmontável, bando de zapotecas, patagónios, micróbio, ornitorrinco, espécie de logaritmo, ratos neurasténicos, ciclotrão, pepino em conserva, pedaço de morcego, cabeça de martelo, emplastro em banha de ouriço, concentrado de mexilhão bexigoso, viviseccionistas, torcionários, antropófagos, astronauta de água doce, espécie de selvagem interplanetário, subproduto de ectoplasma, bugre subnutrido, cretino dos Balcãs, autodidactas, bugre de creme de emplastro à base de idiotice, polígrafos, bazucas dos Cárpatos, selvagens preparados com molho tártaro, incendiários, fenómeno de canibal, anticristo, barroco, coloquinta, visigodos, pedaços de energúmenos com nariz de coco, espécie de equilibrista, cretinos do Himalaia, espécie de Cró-Magnon, mamelucos, macrocéfalos, rocambole, filoxera, megalómano, sátrapa, espécie de lobisomem com gordura de ranúnculo, pirómanos, baco, belzebu, velha coruja enferrujada, oficlídio, espécie de diplodocus escapado directamente da pré-história, pterodáctilo.

João Pedro, blog Espanar, 27/08/2004

http://esplanar.blogspot.com/2004/08/com-mil-raios-e-coriscos.html

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As fúrias verbais do capitão Haddock são compêndios de insultos. Deixo aqui alguns, que os líderes políticos poderão sempre utilizar: rizópodos, ectoplasmas, coleópteros, equinodermes, protozoários, colocíntidas, zigomicetes, zapotecas, ornitorrincos, macrocéfalos, anacolutos, hidrocarbonetos, vendedores de tapetes, tocadores de gaita-de-foles, escolopendras, espécie de iconoclastas míopes, fanfarrões de orquestra, saltimbancos amestrados, lagartos desmontáveis, espécie de logaritmos, astronautas de água doce, espécie de selvagens interplanetários, ratos neurasténicos, autodidactas preparados com molho tártaro...

João Pedro, blog Espanar, 14/02/2005


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