terça-feira, 20 de agosto de 2024

Morreu há 60 anos Abel Varzim, o padre que lutou pela justiça social e apresentou Tintim aos portugueses


(...) Ao seu empenho se deve a publicação das aventuras de Tintim (Tim-Tim, era o nome usado na altura) em Portugal, que foi, aliás, o primeiro país não francófono a acolhê-las. As histórias da amizade com Hergé e da publicação de Tim-Tim no nosso país encontram-se relatadas por Albert Algoud no livro Le Senhor Oliveira da Figueira & les aventures de Hergé et Tim-Tim au Portugal, publicado pelas Éditions Chandeigne em 2021. O “Abbé Abel Varzim” é a primeira entrada do “Glossário de uma longa colaboração”. A acompanhar, encontra-se um retrato do sacerdote desenhado por Philippe Dumas.

À tout seigneur tout honneur” – “O seu a seu dono” – escreve o autor, lembrando que foi o Padre Abel Varzim, que em Lovaina tinha conhecido Georges Remi, mais tarde famoso como Hergé, quem se encarregou de pedir autorização para reproduzir em O Papagaio as histórias publicadas em Le Petit Vingtième, o suplemento semanal de Le Vingtième Siècle, como é comprovado por uma carta endereçada ao director do jornal belga em 25 de Maio de 1935.

Foram várias as questiúnculas relacionadas com a edição em Portugal de Tim-Tim, apresentado em O Papagaio como “um repórter português residente em Lisboa”, e não como o repórter belga que efectivamente era. A colorização (“foi em Portugal, e não na Bélgica, que as aventuras de Tintim foram pela primeira vez publicadas a cores”) e a remontagem de imagens (“recortadas e montadas unicamente em função do espaço disponível nas páginas do Papagaio“) originaram embaraços entre Hergé e os seus editores portugueses.

Um imbróglio diz respeito ao facto de, a partir de um determinado momento, Adolfo Simões Müller querer levar o Tintim para uma nova revista, Diabrete, que competiria com O Papagaio, que pretendia manter o “repórter português” ao seu serviço. Albert Algoud nota que Abel Varzim manteve as aventuras de Tintim e o concorrente ficou com as histórias de outros heróis de Hergé: Jo, Zette e Jocko, além das de Quick e Flupke.

Assaz curioso é o modo de remuneração do trabalho de Hergé. Albert Algoud conta que, a partir de 1940, estando a Bélgica sob o jugo da Alemanha nazi e, por isso, submetida a severos racionamentos alimentares, o criador de Tintim se disponibilizou a ser pago em sardinhas, chocolate e café. Hergé pede igualmente o envio de bens idênticos ao irmão prisioneiro na Alemanha.

No dia 23 de Fevereiro de 1943, Hergé escreve a Adolfo Simões Müller e ao Padre Abel Varzim sobre a questão dos pagamentos. A este último pede que lhe continue a fazer chegar latas de sardinhas e de frutos secos. A Adolfo Simões Müller pede também alguns cigarros de tabaco inglês, que fariam do criador de Tintim o homem “mais feliz do mundo”.

Albert Algoud dá conta da existência de um recibo datado de 24 de Maio de 1943 comprovativo de que Hergé tinha recebido 40 embalagens contendo 219 latas de sardinhas, com um peso total de 18 kg. A quantidade de latas de sardinhas foi tão elevada que Hergé se tornou suspeito de as negociar no mercado negro, tendo de prestar contas à administração alfandegária, após uma denúncia anónima.

Eram tempos difíceis na Bélgica e em Portugal. Eram tempos difíceis no mundo.

Eduardo Jorge Madureira in 7 Margens

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