Autor: Derradé - Título do episódio: "Tintim Vive"
segunda-feira, 3 de novembro de 2025
domingo, 2 de novembro de 2025
L'Oreille Cassée
Apaixonado que sempre fui e assim continuo, deixo aqui memória do "L'Oreille Cassée" (o nosso "O Ídolo Roubado"), o sexto episódio da saga (1937), o qual sinto como um dos melhores livros (...).
Escolho este álbum e esta vinheta também por duas razões, mais "políticas". Pois nas últimas décadas têm surgido um conjunto de "denúncias" ao racismo em Tintin, emanadas dos contextos da esquerdalhada básica e emitidos por feixes de intelectuais de pacotilha. Li alguma dessa tralha, até lusa. Não vou elaborar muito sobre isso, nem sequer invocar o óbvio anacronismo dessas lérias. Apenas recupero este "L'Oreille Cassée": aqui surge este Ridgewell, explorador amazónico que há muito desaparecera e que vive entre os Arumbayas. O qual é um evidente proto-Haddock (que só aparecerá 4 anos depois, no "O Caranguejo das Tenazes de Ouro"), na forma vulcânica e desabrida com que trata os seus (amer)índios circundantes, tal e qual Haddock o fará em todos os outros contextos (em particular junto do séquito de Moulinsart). Sobre esta patente similitude, de enorme significado sobre as concepções antropológicas de Hergé, então ainda abaixo dos 30 anos, nada li em todas as lérias botadas nos "papers" e "conferências" dessa esquerdalhada "denunciatória". Pois desmontar-lhes-ia, por completo, as "academices" de treta com as quais vão fazendo currículos e cativando interesses de outros imbecis.
Um outro traço do "L'Oreille Cassée" explica este actual "Cancel Tintin". Pois Alcazar e Tapioca, os patuscos generais, já estão em frenético conflito. Como o estarão 40 anos depois, quando o já quase septuagenário Hergé publicou a última aventura completa, "Tintin e os Pícaros". E de facto é este livro - um sarcástico monumental pontapé nas ladainhas guevaristas e terceiro-mundistas, então tão em voga - que promove o "denuncionismo" de agora. Não é a candura colonial ou a deriva anticapitalista dos vinte aninhos de Hergé em "Tintin no Congo" e "Tintin na América". É mesmo a sua madura, pertinente e artisticamente genial refutação dos mitos que alimentam esta actual triste tralha identitarista - "pós" ou "decolonial".
O Homem do Rio
Em finais de 1935, inicia-se no "Le Petit Vingtiéme", mais uma aventura de Tintin. Desta vez parte para a América do Sul, onde vai viver movimentadas peripécias num pais imaginário – San Theodoros – onde conhecerá 2 generais, Alcazar e Tapioca que alternam no poder. (...)
Tintin parte à procura de uma estatueta Arumbaya, roubada (logo no início da historia) de um museu. Mais tarde, na década de 60, Philippe de Broca, baseia-se nesta aventura para criar o mais “tintineano” filme de aventuras realizado, - "O Homem do Rio", com Jean Paul Belmondo - mesmo incluindo aqueles com a figura de Tintin e desempenhados por J. P. Talbot. A ver (ou rever) com urgência!
Em Portugal aparece no número 247, de 04/01/1940 de "O Papagaio" com o título de "O Mistério da Orelha Quebrada". A aventura cobre todo o ano de 1940, finalizando no número 298 de 26/12/40.
Mais tarde o semanário Tintin reinicia a sua publicação a partir de 13/10/1973 com o título "A Orelha Quebrada".
As editoras brasileiras Flamboyant e Record tinham já editado o álbum na segunda metade dos anos 60 desta vez com o título "O Ídolo Roubado". Mais recentemente a Verbo publicou-o como "A Orelha Quebrada".
Uma estatueta brasileira da civilização malteca é roubada ao Musée de l'Homme. Fazia parte de um grupo de três estátuas, trazidas por três exploradores: o Professor Catalão (Jean Servais), que trabalha no Musée de l'Homme, o tragicamente falecido Professor Villermosa e André de Castro, um rico empresário brasileiro. O professor Catalão é raptado em frente ao museu. O soldado Adrien Dufourquet testemunha o rapto da sua noiva Agnès, filha de um famoso etnólogo. Vai em busca dela, o que o leva ao Brasil...
A imaginação de Philippe de Broca foi expressa nos seus primeiros filmes num estilo ainda imbuído da Nouvelle Vague. Sem fazer realmente parte do movimento, a sua forma de dinamizar o romance e o marivaudage clássico (Les Jeux de l'Amour e Le Farceur (1960)) fazia parte do mesmo desejo modernista. Com Cartouche (1962), um grande filme de aventuras históricas, era possível adivinhar a reviravolta mais popular que libertaria as obras seguintes. O Homem do Rio estabelece, assim, uma ponte ideal entre o De Broca inicial e o De Broca mais abertamente mainstream do resto da sua carreira, onde a energia artística da Nova Vaga colide com um horizonte mais vasto, com fuga e grande aventura.
O filme nasceu inicialmente de um projeto de adaptação de Tintim, no qual De Broca esteve envolvido (após a saída de Alain Resnais, inicialmente prevista), mas o realizador rapidamente se apercebeu dos limites de uma transposição literal dos painéis de Hergé e deitou a toalha ao chão. Em vez de uma adaptação verdadeira, considerará uma história original onde poderá misturar o seu próprio tom com a energia e o estilo das aventuras de Tintim. Uma estadia no Rio com Jean-Paul Belmondo para a promoção de Cartouche impôs-lhe imediatamente na mente esta estrutura para o futuro filme e, após uma longa sessão de argumento com o seu colaborador regular Daniel Boulanger e o seu amigo Jean-Paul Rappeneau, que ainda não tinha assumido a realização, L'Homme de Rio viu gradualmente a luz do dia.
A influência de Tintim é evidente, quer em termos visuais, narrativos ou narrativos. O roubo inicial da estatueta, a silhueta do ladrão e o cenário do Musée de l'Homme levam-nos imediatamente de volta a "A Orelha Quebrada". Os raptos e, mais tarde, a busca pelas estatuetas e pela maldição que as envolve, remetem, obviamente, para o díptico "As Sete Bolas de Cristal"/"O Templo do Sol".
O empréstimo mais belo, porém, será esta energia frenética e a velocidade da história e, da mesma forma que Hergé conseguia levar-nos de uma Europa acinzentada às terras mais exóticas em duas páginas e muitas aventuras, De Broca deixa Paris para o sol do Brasil em vinte minutos de introdução ideal.
Numa linha narrativa perfeita e clara, todas as informações e caracterizações das personagens são feitas num movimento perpétuo e jubiloso. Vai do mais explícito (o passado dos estudiosos, as três estátuas) ao mais subtil (o olhar furtivo e ligeiramente lascivo de Jean Servais sobre Françoise Dorléac, que nos permite suspeitar vagamente do que lhe acontecerá a seguir) e podemos sentir o toque de Jean-Paul Rappeneau, já tão hábil em casar anarquia e construção rigorosa. O casal Jean-Paul Belmondo/Françoise Dorléac traz o toque romântico adulto e atrevido que torna tudo tão brilhante.
Em vez do piegas Tintim, Belmondo estaria mais próximo de um Capitão Haddock juvenil, com este herói francês e rabugento dedicado a dois objectivos: salvar a sua noiva e regressar a tempo da sua licença em Paris.
É neste filme que nasce "Bébel", o herói ousado e debochado, mas mais do que o mecânico indestrutível dos anos seguintes, a sua silhueta frágil e elástica traz realmente este lado irresistível de banda desenhada/cartoon, fazendo-o levantar-se de cada queda, ripostar contra adversários muito mais imponentes. Françoise Dorléac está adorável como uma donzela caprichosa em perigo e as trocas tempestuosas entre o casal a meio da ação são uma delícia do início ao fim.
De Broca leva-nos numa viagem pelo cativante Brasil dos anos 60, explorando com igual brilhantismo a urbanidade moderna (com a sua quota-parte de edifícios de alta tecnologia) e os ambientes operários mais fervilhantes e festivos, mas também a natureza exótica e colorida (o lado da banda desenhada também não é esquecido, como o falso crocodilo à espera de Belmondo durante a sua aterragem de paraquedas). De Broca multiplica as aventuras e os ambientes com rara inventividade, sem nunca se cansar graças a pausas cómicas ou piadas em abundância (o carro cor-de-rosa com estrelas verdes!).
Este movimento perpétuo retoma também o princípio da linha clara que orienta o guião. Veremos que na sua perseguição frenética, Jean-Paul Belmondo terá sempre de seguir em frente para alcançar os malvados raptores de Françoise Dorléac.

