Em Março de 1959, a capital do Tibete, Lhassa, estava a ferro e fogo, na sequência de uma insurreição contra a presença chinesa no país. Na mesma altura, corria a publicação de “Tintin no Tibete”, na edição belga da revista “Tintin”. Trinta e cinco anos depois destes eventos, uma importante exposição dá a conhecer em Bruxelas, até 14 de Agosto — e no próximo mês de Outubro, em Paris —, muito da realidade quotidiana de um povo amordaçado e em vias de rápida descaracterização social e cultural. “No Tibete com Tintin” é uma fascinante viagem pelo país do tecto do mundo, com os desenhos de Hergé à mistura.
De madrugada, a mulher acende o lume com algumas folhas secas e põe água a ferver. O homem abastece as lâmpadas a manteiga no altar dedicado às divindades tutelares, queima um pouco de incenso, renova a água das oferendas e faz uma fumigação destinada a purificar o espaço doméstico e a alimentar as entidades invisíveis que habitam a sua casa.
Em seguida, reúnem-se todos os membros da família para a primeira refeição do dia, composta de “tsampa”, farinha de cevada torrada e principal alimento dos tibetanos, de um caldo de carne e de chá, um líquido rosado e a escaldar, que chega a ser beberricado umas 50 vezes por dia.
Depois, vêm as tarefas quotidianas. A mulher ocupa-se das crianças, prepara os alimentos e as refeições, tece a lã, apanha os excrementos que servirão de combustível e põe-os a secar, recolhe água, cuida dos animais e executa a maior parte dos trabalhos agrícolas quotidianos.
O homem, por seu lado, participa nas tarefas mais pesadas — sementeiras e colheitas —, mas a sua vida é principalmente itinerante: vai à cidade fazer compras, negoceia as trocas com as aldeias vizinhas, recolhe o sal e caça os animais que asseguram os rendimentos suplementares do agregado familiar.
Na residência, o mobiliário é sumário. Móveis em madeira ou metal, armários com as peças de loiça de cobre, por vezes com incrustações de prata. Junto às janelas, ao longo das paredes e atrás de mesas baixas em madeira esculpida e pintada com dragões e motivos florais, pequenas almofadas muito duras estão dispostas em cima de tapetes e servem de assento durante o dia, e de cama à noite.
Os bens da família podem ver-se nas paredes: selas, armas, a albarda do iaque e os arreios dos cavalos, um tear e, sobretudo, numerosos sacos que contêm alimentos, peles e tecidos, que servirão para fazer novas compras.
Foi com esta visão que Alexandra David-Néel, a primeira mulher ocidental a ter entrado no Tibete, poderá ter-se deparado, em 1924, quando chegou ao país. Aos 56 anos, e depois de cinco meses de viagem pelas mais áridas regiões asiáticas na companhia do lama Yongdem, contemplava pela primeira vez a imponente massa do Potala, o palácio dos dalai-lama em Lhassa. Mais tarde, voltaria de novo ao Tibete, e dessas viagens e estadas resultaram obras preciosas para conhecer as tradições, usos e costumes do povo tibetano.
Tradicionalmente, o Tibete foi sempre um país fechado ao olhar estrangeiro. Longe do mar, protegido por extensos desertos e pelas montanhas mais altas do mundo, compreende-se facilmente porque motivo a presença de ocidentais foi esparsa. Tanto quanto se sabe, coube a dois portugueses — os missionários jesuítas António de Andrada e Manuel Marques — o privilégio de serem os primeiros ocidentais a entrarem no Tibete, no século XVII. Outros exploradores e viajantes passariam pelo país; já neste século, durante a década passada, vários milhares de turistas procuraram satisfazer a curiosidade e o fascínio que o “país das neves” tem gerado secularmente nos espíritos europeus.
O interesse pela região cresceu nas últimas décadas, em virtude de uma política muito agressiva por parte da República Popular da China, que tem vindo a ser denunciada nas instâncias internacionais. Todavia, continua a saber-se muito pouco sobre o Tibete. Por isso, a exposição organizada pela Fundação Hergé, e que pode ser vista nos Museus Reais de Arte e História, em Bruxelas, constitui a todos os títulos uma excelente oportunidade de travar conhecimento com uma civilização antiquíssima e, para os ocidentais, tão estranha quanto fascinante.
Entre a cadeia montanhosa dos Kun-Lun, a norte, e o Grande Himalaia, a sul, o Tibete é um enorme país de 2.500.000 quilómetros quadrados, situado a uma altitude média de 4000 metros acima do nível do mar.
Ao contrário de uma ideia muito difundida, o país não é uma desoladora e hostil extensão de frio e neve. É certo que a parte norte é atingida por ventos violentos e está “semeada” de lagos salgados, onde vive pouca gente — na maioria caçadores e famílias nómadas. Mas a leste e a sul, a natureza foi mais benevolente. Irrigado pelo Brahmaputra e pelos seus afluentes, o Tibete Central é o núcleo central do país e o berço da civilização tibetana. A fertilidade dos terrenos contribuiu para a fixação de uma população agrícola que cultiva a cevada, o trigo, a mostarda e alguns legumes. Lhassa, na margem do rio Kyichu, a 3730 metros de altitude, é a capital desde o século VII, função que mantém na Região Autónoma do Tibete, como foi baptizada pelos chineses em 1965.
A visão que a cidade dá hoje de si é perturbadora, como se pode verificar pelas imagens expostas em Bruxelas. Importantes bairros tradicionais foram pura e simplesmente arrasados pelos chineses, para darem lugar a “modernos” bairros de avenidas largas e casas de betão. São as zonas habitadas pelos quadros enviados por Pequim, que empreendeu uma política de povoamento que visa transformar os tibetanos numa minoria na sua própria terra. Ao mesmo tempo, liquida-se uma referência cultural perene e faz-se desaparecer o dédalo de ruas que serviram, em outras alturas, para abrigar os habitantes que contestavam a presença chinesa e ali encontravam refúgio contra a repressão.
No resto do país, e consoante as características da paisagem e do clima, são visíveis diversos tipos de povoamento: casas de tijolo cru com tectos-terraço no Tibete Central, casas de madeira com telhado inclinado no Sul, torres e residências de pedra na região de Kham, edifícios chineses junto à fronteira, sólidas tendas de cor castanha escura — está uma montada num dos núcleos da exposição — feitas de pele de iaque, utilizadas pelos nómadas do Tibete Ocidental e Setentrional.
A casa ou a tenda reflectem, em todo o caso, a visão do mundo e do universo característica deste povo: a entrada principal está sempre virada a leste, e o interior é dividido em três níveis hierárquicos, de acordo com um princípio que identifica o “alto” com o “puro” e o “baixo” com o “impuro”. O rés-do-chão é para os animais, alfaias agrícolas e adubos de origem animal ou vegetal; o andar intermédio é a residência humana propriamente dita; e o nível superior é dedicado aos deuses, encontrando-se aqui a capela doméstica, onde a família presta honras às divindades do panteão búdico.
Quanto à residência — ou, no caso dos nómadas, a tenda — divide-se em duas metades: à esquerda o domínio das mulheres e à direita o dos homens e dos convidados. O altar, onde estes colocam o seu relicário, fica situado ao fundo.
A religião constitui uma referência vital — e, mais do que nunca, desde a ocupação pelos comunistas chineses — de toda a sociedade. Introduzido no país no século VIII, o budismo tibetano — uma “variante” do budismo indiano — disseminou-se graças ao apoio da corte e de todas as camadas sociais, tornando-se a religião oficial. A queda da dinastia real, no século seguinte, arrastou consigo o budismo, que voltou a ser objecto de uma “segunda acção de propaganda” no início do século XI.
Foi seu motor o monge indiano Atisha, que insistiu, a partir de 1042, na necessidade de instaurar a ordem monástica e a obediência do discípulo ao seu mestre espiritual ou “lama”. Desenvolvem-se diferentes escolas, que enfatizam aspectos particulares da doutrina ou da prática budistas: acento tónico nas práticas tântricas, nas quais a meditação e as fórmulas mágicas desempenham um papel decisivo; ou privilegiar do estudo dos textos dogmáticos e nomeadamente da dialéctica.
A escola dos “gelugpa” (literalmente, “os virtuosos”), fundada no século XIV e conhecida no Ocidente pela designação de “gorros amarelos”, regista um processo de implantação mais rápido, tornando-se hegemónica no conjunto do território no século XVII. Os seus líderes espirituais, os dalai-lama, tornam-se também os dirigentes temporais do “país das neves”.
A sua presença na vida quotidiana traduz-se na necessidade de observância, por parte dos fiéis, de práticas que tornem propícios os espíritos do mundo e de honrar as divindades através de oferendas e orações. Donativos aos mosteiros, encomendas de estátuas e de monumentos religiosos, peregrinações ou simples deambulações em torno de edifícios sagrados são actos de devoção aconselhados para garantir um melhor nascimento na “roda da existência”.
A exposição “No Tibete com Tintin” dá uma enorme ênfase a esta dimensão religiosa da vida. É que esse inervamento da sociedade é tão profundo que se faz sentir nas manifestações de ordem literária e artística. A arte tibetana é, antes de tudo, uma arte sacra cuja razão de existir é a reprodução das imagens, assuntos e princípios da religião. As obras raramente são assinadas, pois os artistas não se consideram como criadores, mas como artesãos, “fabricantes de divindades”.
A exuberância das cores, o ouro das estátuas, a opulência das formas, o brilho dos brocados e a prodigalidade da ornamentação dos interiores — à vista de todos, nomeadamente na reconstituição do templo budista patente na parte final da exposição — disfarçam o reduzido lugar concedido à imaginação dos artistas e contrastam vigorosamente com a incrível sobriedade dos edifícios que acolhem aquelas peças.
Do mesmo modo, a literatura é praticamente toda de cariz religioso.
O livro é alvo de uma profunda veneração, pois é considerado o terceiro corpo — verbal — do próprio Buda, a par do corpo físico (as imagens) e do corpo espiritual (a “mandala” ou o santuário). Deixar um livro no chão, passar por cima dele ou tocar-lhe com o pé são gestos interditos. Por maioria de razão, deitá-lo fora ou destruí-lo são actos absolutamente proibidos.
As peças de teatro, a dança ou a música — e como ela é lindíssima e inspirada, a avaliar pelas gravações que ecoam pelo espaço da exposição — são outras tantas manifestações culturais impregnadas pelo mesmo sentimento de respeito e veneração pela divindade.
A proclamação da República Popular da China em 1 de Outubro de 1949 por Mao Tsé Tung teve um eco muito leve em Lhassa. Todavia, um ano mais tarde, a profecia que o 13º Dalai-Lama fizera em 1933 iria tornar-se realidade:
“Poderá suceder que aqui, no centro do Tibete, a religião e a administração secular sejam atacadas simultaneamente do exterior e do interior... As terras e os bens dos mosteiros e dos monges serão destruídos. Os costumes administrativos dos três reis religiosos serão enfraquecidos. Os quadros do Estado, eclesiásticos e seculares, verão as suas terras serem apreendidas e os seus bens confiscados, e eles próprios serão obrigados a servir o inimigo ou a errar através do país, como o fazem os mendigos. Todos os seres passarão por terríveis provas e serão invadidos pelo medo; os dias e as noites alongar-se-ão lentamente no sofrimento.”
No dia 7 de Outubro de 1950, 80.000 soldados chineses invadem o Tibete. Apesar da resistência encarniçada dos habitantes, o país é ocupado.
Num primeiro momento, as autoridades comunistas ainda apostam na via do compromisso. Uma delegação tibetana assina em Pequim, a 23 de Maio de 1951, um acordo em 17 pontos, nos termos do qual os tibetanos renunciam à sua soberania e admitem que o país faz parte integrante da China. Esta, por seu lado, compromete-se a não alterar o sistema político, nem o estatuto do Dalai-Lama e o papel dos mosteiros. A comunização acelerada do país põe a nu a estratégia comunista e os actos de rebelião surgem um pouco por todo o país. O exército chinês afoga a resistência em sangue e, em Março de 1959, o actual Dalai-Lama abandona o país.
No mês seguinte, Lhassa insurge-se em peso e a repressão é brutal, causando milhares de mortos. Algumas raras imagens registadas na época, exibidas em contínuo numa das salas dos Museus Reais de Arte e História, dão conta da brutalidade dos soldados chineses. Segue-se um êxodo calculado em mais de 100.000 habitantes.
As perseguições contra os monges tibetanos tornam-se mais violentas que nunca. As terras são distribuídas aos que a propaganda chinesa apresenta como os “servos e escravos libertados das suas grilhetas”. Mas o pior estava para chegar, e chegou em 1966 com a Revolução Cultural. Ainda hoje está por fazer o balanço global da fúria destruidora dos comunistas chineses nos dez anos que se seguiram. Milhares de lamas e dirigentes tibetanos são sistematicamente submetidos à “crítica das massas populares” e, em seguida, enviados para campos de “reforma pelo trabalho”, torturados e, em alguns casos, executados.
A desorganização da economia, por força de uma colectivização forçada dos campos, provoca uma onda de fome que causa milhares de vítimas.
Os chineses investem também contra o património cultural e religioso do Tibete. Mosteiros e outros locais de culto são criminosamente pilhados e destruídos. Os objectos de ouro e prata são inventariados e enviados para o interior da China. Jóias preciosas são, pura e simplesmente, fundidas e contrabandeadas como ouro em Hong Kong e noutras cidades. Em 1976, quando a Revolução Cultural chegou ao fim, restavam apenas dez dos cerca de 6000 mosteiros tibetanos de outrora. O Potala e o templo de Jokhang só se salvaram porque o primeiro-ministro chinês na altura, Chu En-Lai, deu ordens expressas nesse sentido.
A chegada ao poder de Deng Xiaoping traduziu-se num abrandamento da atitude dura de Pequim para com o Tibete. Foram aplicadas reformas económicas que, para terem êxito, exigiam uma relativa tolerância política e religiosa. Foi autorizada a abertura de alguns mosteiros e os monges puderam regressar. Nos anos 80, o país abriu-se progressivamente ao exterior e o turismo foi encorajado pelas autoridades chinesas. A partir de Katmandu, mais de 40.000 turistas ocidentais visitaram o Tibete em 1987.
Com estes gestos de boa vontade, as autoridades chinesas esperavam enterrar os traumas de mais de dez anos de terror, que fizeram, segundo as autoridades tibetanas no exílio, cerca de 1,2 milhões de mortos.
No entanto, a abertura ao mundo permitiu o conhecimento no exterior do drama tibetano e, simultaneamente, encorajou a resistência local.
Em Setembro de 1987, 26 lamas desafiam a polícia chinesa desfilando pelas ruas de Lhassa com uma bandeira nacional tibetana e exigindo a independência do país. As manifestações sucedem-se um pouco por todo o país e tornam-se famosas as imagens dos monges tibetanos que enfrentam com pedras na mão as armas ligeiras e os carros de combate da polícia chinesa.
Desta vez, a China não recorre de novo aos métodos maoístas de repressão maciça. Sem deixar de reprimir as manifestações públicas — com a repressão a causar muitos mortos —, o Governo envereda por um processo de “sinisação” da sociedade tibetana, que não deixa de fora nenhum aspecto: os modos de vestir, a alimentação, o ambiente arquitectónico, os tempos livres adquirem o rosto da aculturação imposta pelo ocupante. A língua chinesa passa a ser o idioma oficial, ensinado nas escolas e usado na vida quotidiana. E as emissões de televisão, feitas por satélite para o Tibete, contribuem para modificar lenta, mas seguramente, os espíritos, chegando à mais recôndita e ínfima aldeia do país.
Por fim, a China põe em marcha uma gigantesca operação demográfica, que consiste em incentivar e encorajar a migração de chineses para o Tibete. Apesar de muitas zonas serem proibidas a estrangeiros, é possível notar o peso da presença chinesa nos grandes centros. Segundo observadores independentes, dois terços dos habitantes da capital são oriundos da China. E os colonos continuam a chegar em grandes quantidades, o que leva o Dalai-Lama a falar, a propósito deste programa de esmagamento da cultura e da população tibetana, de “solução final”.
Haverá futuro para o Tibete? Pierre-Antoine Donnet, autor de um dos textos do excelente catálogo da exposição “No Tibete com Tintin”, responde afirmando que a sobrevivência depende de duas condições indispensáveis:
“A capacidade de os tibetanos entrosarem harmoniosamente o budismo e a modernidade, e a vontade das gerações tibetana e chinesa ascendentes em forjarem um diálogo autêntico e fecundo
© 1994 Público/Carlos Pessoa
sexta-feira, 29 de julho de 1994
quinta-feira, 28 de julho de 1994
“Os meus sonhos eram todos brancos”
No final dos anos 50, a popularidade de Hergé e do seu personagem Tintin iam de vento em popa. As tiragens multiplicavam-se e a fasquia do milhão de exemplares foi pela primeira vez ultrapassada. Mas nem tudo corria no melhor dos mundos: em 1958, Hergé foi afectado por uma grave crise pessoal que atingiu seriamente o seu trabalho criativo. “Tintin no Tibete” é, no seu todo, a expressão sublimada, e sublime, desse conflito interior.
“Naquela época, eu atravessava uma séria crise e os meus sonhos eram quase todos em tons de branco. E eram muito angustiantes. Tomava nota deles e recordo-me de um em que me encontrava numa espécie de torre constituída por rampas sucessivas. Folhas mortas caíam e cobriam tudo. A uma dada altura, numa espécie de alcova de uma brancura imaculada, aparecia um esqueleto todo branco que tentava apanhar-me. E nesse instante, à minha volta, o mundo tornou-se branco, branco. E eu punha-me em fuga, uma fuga desvairada...” Na série de entrevistas concedidas por Hergé a Numa Sadoul (“Entretiens avec Hergé”, de Numa Sadoul, Editions Casterman), é assim que o criador de Tintin recorda esse crítico ano de 1958. Nessa época, o autor dava forma, com grande esforço, a “Tintin no Tibete”, uma aventura que começou a ser publicada na revista “Tintin” (Bélgica) em 17 de Setembro de 1958, prolongando-se até 25 de Novembro do ano seguinte.
Há quase 35 anos.
O que os leitores actuais do álbum editado em Portugal pela Difusão Verbo não podem saber — a menos que procurem “por detrás” da obra as circunstâncias em que ela foi gerada e produzida — é que o psicanalista junguiano com quem Hergé fazia terapia o aconselhou vivamente a abandonar o trabalho quando ouviu a descrição daquele sonho.
Felizmente para nós, Hergé não lhe deu ouvidos, e assim surgiu “Tintin no Tibete”.
A atenção e a curiosidade que a obra do mestre belga têm despertado entre os estudiosos — é curioso constatar que o seu “rival” Astérix, apesar de constituir hoje um êxito de tiragens e vendas muito superior ao de Tintin, nunca suscitou tanto interesse por parte dos analistas e críticos — encontra nesta banda desenhada um terreno de trabalho de uma fertilidade quase sem limites. Na edição especial da revista francesa “(À Suivre)” de Abril de 1983, publicada um mês após a morte de Hergé, Benoît Peeters — o “tintinófilo” que é, simultaneamente, o argumentista do ciclo das Cidades Obscuras, em conjunto com o desenhador Schuiten — refere-se a esta obra como uma “forma de exorcismo”, o que na sua opinião lhe conferiria “esse tom tão particular, muito mais sério do que o das outras aventuras de Tintin”. De facto, há uma intensidade dramática em toda a narrativa que não cessa de aumentar até ao clímax — o momento em que o herói encontra o seu amigo Tchang, que todos julgam morto ou vítima do Yéti. E Numa Sadoul, nas já citadas “Entretiens avec Hergé”, sugere que esta história é como uma “espécie de ‘hino ao amor’”. “Digamos uma espécie de canto dedicado à amizade”, responde Hergé. O ponto de partida deste episódio — um sonho premonitório que leva Tintin, contra ventos e marés, a voar em socorro do seu amigo, quando há todas as probabilidades de Tchang estar morto — tem ocupado mais de um crítico. Os fenómenos paranormais atravessam com uma certa constância a obra de Hergé e são inventariados pelo mesmo Numa Sadoul num artigo publicado na desaparecida revista “Cahiers de la BD”, inteiramente consagrado ao autor belga. Premonições, telepatia, intervenções extraterrestres, simbolismos mais ou menos “obscuros” e outros fenómenos subjectivos têm o seu lugar, discreto por vezes, mais aberto em outras, nas histórias de Tintin. Acima de todos, porém, está o sonho. Para mais, premonitório...
“Mas eu acredito nos sonhos premonitórios”, respondeu Hergé a Sadoul. “No mesmo álbum, há também o fenómeno de levitação, que foi referenciado por um significativo número de autores dignos de crédito, como Alexandra David-Neel e Fosco Maraini [exploradores do Tibete no começo deste século], que passaram longas estadias no Tibete.”
O modo como Hergé trabalha este material ressalta claramente em “Tintin no Tibete”: entregando-se ao sonho, o autor selecciona entre os elementos os que são mais utilizáveis de um ponto de vista gráfico. Mas, ao contrário do que se poderia concluir, não é apenas esta dimensão do onirismo que interessa ao artista: “Eu utilizo a sua lógica [do sonho] ou, melhor ainda, a sua aparente falta de lógica. Os sonhos que habitualmente temos são tão vagos e de tal modo fluidos que é difícil desenhá-los: sente-se que é mais ou menos aquilo, mas quando lhes queremos dar uma forma, eles escapam-se-nos. É por isso que se torna necessário acrescentar ou suprimir coisas, ou seja, reconstruir o sonho.”
Como veículo e criador de símbolos, o sonho tem de qualquer modo um significado que pode ser associado à aventura individual. Por esse motivo, e por estar tão profundamente alojado no âmago da consciência, ele escapa ao seu próprio criador, surgindo como a expressão mais secreta e mais exposta de cada um. É isso que Hergé faz de forma mais ou menos explícita através dos comportamentos e acções do seu herói. E, mais do que em qualquer outra aventura, o simbolismo de “Tintin no Tibete” tem de ser avaliado à luz do percurso do próprio autor. A presença tutelar e avassaladora do branco — neste caso, a neve dos Himalaias por onde Tintin, Haddock, Milú e o “sherpa” se aventuram — tem tudo a ver com as “visões” e os sonhos-pesadelos de Hergé.
Significando tanto a ausência de cor, como a soma de todas as cores, o branco surge associado ao começo e ao fim da vida diurna e do mundo tal como ele se manifesta. Em numerosas tradições, o branco é a cor do “candidato”, ou seja, daquele que vai mudar de condição. Por isso, tem um valor limite, constituindo uma cor de passagem, no sentido em que essa ideia se associa aos ritos de passagem, que assinalam a morte de uma condição e o renascimento em e para outra. A esta luz, compreende-se perfeitamente que Hergé, numa fase de transição e mudança profunda na sua vida — de que o seu divórcio e posterior casamento com Fanny Vlamynck é apenas um aspecto —, tenha sido levado a “glosar” em todas as direcções o tema do branco.
Daí que a neve seja simultaneamente algo de sufocante e perigoso, mas que contém também em si mesmo uma dimensão redentora. Ora, se Tintin e os seus pares aceitam correr os riscos, enfrentar os perigos e lidar com as ameaças de uma dura prova, é porque sabem que no final há um prémio para a sua coragem, abnegação e amor: o encontro com Tchang. “Tintin no Tibete” é, de facto, o comovente hino à amizade de que Hergé falou um dia.
© 1994 Público/Carlos Pessoa
“Naquela época, eu atravessava uma séria crise e os meus sonhos eram quase todos em tons de branco. E eram muito angustiantes. Tomava nota deles e recordo-me de um em que me encontrava numa espécie de torre constituída por rampas sucessivas. Folhas mortas caíam e cobriam tudo. A uma dada altura, numa espécie de alcova de uma brancura imaculada, aparecia um esqueleto todo branco que tentava apanhar-me. E nesse instante, à minha volta, o mundo tornou-se branco, branco. E eu punha-me em fuga, uma fuga desvairada...” Na série de entrevistas concedidas por Hergé a Numa Sadoul (“Entretiens avec Hergé”, de Numa Sadoul, Editions Casterman), é assim que o criador de Tintin recorda esse crítico ano de 1958. Nessa época, o autor dava forma, com grande esforço, a “Tintin no Tibete”, uma aventura que começou a ser publicada na revista “Tintin” (Bélgica) em 17 de Setembro de 1958, prolongando-se até 25 de Novembro do ano seguinte.
Há quase 35 anos.
O que os leitores actuais do álbum editado em Portugal pela Difusão Verbo não podem saber — a menos que procurem “por detrás” da obra as circunstâncias em que ela foi gerada e produzida — é que o psicanalista junguiano com quem Hergé fazia terapia o aconselhou vivamente a abandonar o trabalho quando ouviu a descrição daquele sonho.
Felizmente para nós, Hergé não lhe deu ouvidos, e assim surgiu “Tintin no Tibete”.
A atenção e a curiosidade que a obra do mestre belga têm despertado entre os estudiosos — é curioso constatar que o seu “rival” Astérix, apesar de constituir hoje um êxito de tiragens e vendas muito superior ao de Tintin, nunca suscitou tanto interesse por parte dos analistas e críticos — encontra nesta banda desenhada um terreno de trabalho de uma fertilidade quase sem limites. Na edição especial da revista francesa “(À Suivre)” de Abril de 1983, publicada um mês após a morte de Hergé, Benoît Peeters — o “tintinófilo” que é, simultaneamente, o argumentista do ciclo das Cidades Obscuras, em conjunto com o desenhador Schuiten — refere-se a esta obra como uma “forma de exorcismo”, o que na sua opinião lhe conferiria “esse tom tão particular, muito mais sério do que o das outras aventuras de Tintin”. De facto, há uma intensidade dramática em toda a narrativa que não cessa de aumentar até ao clímax — o momento em que o herói encontra o seu amigo Tchang, que todos julgam morto ou vítima do Yéti. E Numa Sadoul, nas já citadas “Entretiens avec Hergé”, sugere que esta história é como uma “espécie de ‘hino ao amor’”. “Digamos uma espécie de canto dedicado à amizade”, responde Hergé. O ponto de partida deste episódio — um sonho premonitório que leva Tintin, contra ventos e marés, a voar em socorro do seu amigo, quando há todas as probabilidades de Tchang estar morto — tem ocupado mais de um crítico. Os fenómenos paranormais atravessam com uma certa constância a obra de Hergé e são inventariados pelo mesmo Numa Sadoul num artigo publicado na desaparecida revista “Cahiers de la BD”, inteiramente consagrado ao autor belga. Premonições, telepatia, intervenções extraterrestres, simbolismos mais ou menos “obscuros” e outros fenómenos subjectivos têm o seu lugar, discreto por vezes, mais aberto em outras, nas histórias de Tintin. Acima de todos, porém, está o sonho. Para mais, premonitório...
“Mas eu acredito nos sonhos premonitórios”, respondeu Hergé a Sadoul. “No mesmo álbum, há também o fenómeno de levitação, que foi referenciado por um significativo número de autores dignos de crédito, como Alexandra David-Neel e Fosco Maraini [exploradores do Tibete no começo deste século], que passaram longas estadias no Tibete.”
O modo como Hergé trabalha este material ressalta claramente em “Tintin no Tibete”: entregando-se ao sonho, o autor selecciona entre os elementos os que são mais utilizáveis de um ponto de vista gráfico. Mas, ao contrário do que se poderia concluir, não é apenas esta dimensão do onirismo que interessa ao artista: “Eu utilizo a sua lógica [do sonho] ou, melhor ainda, a sua aparente falta de lógica. Os sonhos que habitualmente temos são tão vagos e de tal modo fluidos que é difícil desenhá-los: sente-se que é mais ou menos aquilo, mas quando lhes queremos dar uma forma, eles escapam-se-nos. É por isso que se torna necessário acrescentar ou suprimir coisas, ou seja, reconstruir o sonho.”
Como veículo e criador de símbolos, o sonho tem de qualquer modo um significado que pode ser associado à aventura individual. Por esse motivo, e por estar tão profundamente alojado no âmago da consciência, ele escapa ao seu próprio criador, surgindo como a expressão mais secreta e mais exposta de cada um. É isso que Hergé faz de forma mais ou menos explícita através dos comportamentos e acções do seu herói. E, mais do que em qualquer outra aventura, o simbolismo de “Tintin no Tibete” tem de ser avaliado à luz do percurso do próprio autor. A presença tutelar e avassaladora do branco — neste caso, a neve dos Himalaias por onde Tintin, Haddock, Milú e o “sherpa” se aventuram — tem tudo a ver com as “visões” e os sonhos-pesadelos de Hergé.
Significando tanto a ausência de cor, como a soma de todas as cores, o branco surge associado ao começo e ao fim da vida diurna e do mundo tal como ele se manifesta. Em numerosas tradições, o branco é a cor do “candidato”, ou seja, daquele que vai mudar de condição. Por isso, tem um valor limite, constituindo uma cor de passagem, no sentido em que essa ideia se associa aos ritos de passagem, que assinalam a morte de uma condição e o renascimento em e para outra. A esta luz, compreende-se perfeitamente que Hergé, numa fase de transição e mudança profunda na sua vida — de que o seu divórcio e posterior casamento com Fanny Vlamynck é apenas um aspecto —, tenha sido levado a “glosar” em todas as direcções o tema do branco.
Daí que a neve seja simultaneamente algo de sufocante e perigoso, mas que contém também em si mesmo uma dimensão redentora. Ora, se Tintin e os seus pares aceitam correr os riscos, enfrentar os perigos e lidar com as ameaças de uma dura prova, é porque sabem que no final há um prémio para a sua coragem, abnegação e amor: o encontro com Tchang. “Tintin no Tibete” é, de facto, o comovente hino à amizade de que Hergé falou um dia.
© 1994 Público/Carlos Pessoa
quarta-feira, 9 de fevereiro de 1994
Como se diz Tintin em russo?
A internacionalização de Tintin já não é de agora. Traduzido em dezenas de línguas e países, continua a ser o mais universal dos heróis europeus de banda desenhada. Mas havia uma fronteira a franquear, ainda na Europa: a da Rússia.
A tradução para russo e distribuição naquele país pela Casterman dos dois primeiros álbuns das aventuras do personagem de Hergé — “O Templo do Sol e “As Sete Bolas de Cristal” —, divulgada no passado mês de Janeiro, é o primeiro grande acontecimento editorial do ano de 1994. Aquela editora francófona testa deste modo as potencialidades de um mercado vastíssimo, alimentando expectativas quanto a uma eventual adesão dos leitores nos outros países da ex-União Soviética.
Considerado durante décadas um herói reaccionário, viu a difusão das suas histórias interdita naquele país ex-socialista onde, curiosamente, viveu a sua primeira e polémica aventura. De facto, o próprio Hergé se recusou a alimentar a polémica em torno dessa primeira aventura, proibindo a reedição de “Tintin no País dos Sovietes”. Apesar disso, ela continuou a ser objecto de reedições piratas no Ocidente, que circularam com maior ou menor facilidade. Curiosamente, esta é também a única aventura de Tintin que o seu autor nunca recuperou, como fez com as restantes bandas desenhadas inicialmente publicadas a preto e branco e alvo de um “restyling” gráfico e introdução de cor, após o fim da segunda Guerra Mundial.
© 1994 Público/Carlos Pessoa
A tradução para russo e distribuição naquele país pela Casterman dos dois primeiros álbuns das aventuras do personagem de Hergé — “O Templo do Sol e “As Sete Bolas de Cristal” —, divulgada no passado mês de Janeiro, é o primeiro grande acontecimento editorial do ano de 1994. Aquela editora francófona testa deste modo as potencialidades de um mercado vastíssimo, alimentando expectativas quanto a uma eventual adesão dos leitores nos outros países da ex-União Soviética.
Considerado durante décadas um herói reaccionário, viu a difusão das suas histórias interdita naquele país ex-socialista onde, curiosamente, viveu a sua primeira e polémica aventura. De facto, o próprio Hergé se recusou a alimentar a polémica em torno dessa primeira aventura, proibindo a reedição de “Tintin no País dos Sovietes”. Apesar disso, ela continuou a ser objecto de reedições piratas no Ocidente, que circularam com maior ou menor facilidade. Curiosamente, esta é também a única aventura de Tintin que o seu autor nunca recuperou, como fez com as restantes bandas desenhadas inicialmente publicadas a preto e branco e alvo de um “restyling” gráfico e introdução de cor, após o fim da segunda Guerra Mundial.
© 1994 Público/Carlos Pessoa
quarta-feira, 1 de dezembro de 1993
O verdadeiro e o falso
Para os que duvidavam da possibilidade de rejuvenescimento de Tintin, Hergé presenteou-os com a história dos Pícaros. É um dos derradeiros trabalhos do artista belga que continua a encontrar fiéis seguidores, como se pode comprovar pela leitura da série Nino.
Quando a “linha clara” inspirada no estilo gráfico de Hergé parece cada vez mais uma coisa do passado, irrompem no mercado obras que levam a duvidar da objectividade dos críticos e divulgadores. “Viagem à América”, primeiro tomo das aventuras de Nino, um personagem criado pelo desenhador Dirk Stallaert e pelo argumentista Hec Leemans (Edições ASA) entronca directamente nessa linhagem que autores como Swarte, Benoît ou Daniel Torres reivindicam para si: são os órfãos de Hergé e do seu personagem maior, Tintin. O registo desta última obra é de um classicismo total, não cedendo um milímetro na planificação (dir-se-ia feita a compasso e esquadro) que nem o próprio Hergé ousou assumir deste modo. É a história de uma criança que foge de uma infância penosa num orfanato — a memória de Chang até nem está muito longe — e embarca clandestinamente num transatlântico que ruma a América de todas as oportunidades. Também aqui, a viagem de Tintin ao Novo Mundo poderia ser uma referência ao mestre. Nada do que ficou dito pretende diminuir o capital de simpatia que o lançamento desta série pela editora nortenha possa recolher entre os leitores habituais de banda desenhada. No entanto, este primeiro volume está demasiado próximo do original para não exalar uma sensação de “déjà vu” que, no limite, retira frescura e mérito ao trabalho dos dois autores holandeses. Em “Tintin e os Pícaros” (que a Difusão Verbo teima em apelidar de Tintim...), Hergé procede a uma renovação de imagem do seu herói. Tintin deixa de usar calças de golfe para passar a vestir uns “jeans” ligeiramente à “boca de sino”, capacete com o símbolo da paz e o capitão Haddock revela-se definitivamente avesso ao seu tão apreciado “whisky”. A resposta do artista aos seus detractores vai mais longe. Situando de novo a acção numa república de opereta, algures no continente sul-americano, não resiste a denunciar o artificialismo das situações políticas que visam substituir um ditador por outro. Pelo meio, parodia o modo de vida e as motivações dos guerrilheiros que se assemelham surpreendentemente aos revolucionários guevaristas. No final da década de 70, tudo isso não podia deixar de ser, de facto, de um anacronismo que Hergé não deixa passar em claro, numa óbvia alusão à falta de “espessura” ideológica nas motivações de todos os “Alcazares” derrubados. Ainda assim, Tintin presta-se ao jogo do ambicioso “resistente” para salvar os amigos presos, organizando a tomada do poder num rocambolesco carnaval que não exclui turistas em viagem organizada, salvamentos de última hora e os demais ingredientes que imortalizaram as aventuras de Tintin. Na verdade, entre a denúncia da miséria num país dirigido por Tapioca e o subdesenvolvimento do mesmo país policiado por Alcazar só há uma diferença: a da denúncia que Hergé nunca enjeitou. E isso, para além do legado estético que deixou, dá prova de uma firmeza de convicções que não se manifesta apenas em 1976, mas vem desde o início da sua carreira, num longínquo ano de 1929, quando escreveu e desenhou “Tintin no País dos Sovietes”.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
Quando a “linha clara” inspirada no estilo gráfico de Hergé parece cada vez mais uma coisa do passado, irrompem no mercado obras que levam a duvidar da objectividade dos críticos e divulgadores. “Viagem à América”, primeiro tomo das aventuras de Nino, um personagem criado pelo desenhador Dirk Stallaert e pelo argumentista Hec Leemans (Edições ASA) entronca directamente nessa linhagem que autores como Swarte, Benoît ou Daniel Torres reivindicam para si: são os órfãos de Hergé e do seu personagem maior, Tintin. O registo desta última obra é de um classicismo total, não cedendo um milímetro na planificação (dir-se-ia feita a compasso e esquadro) que nem o próprio Hergé ousou assumir deste modo. É a história de uma criança que foge de uma infância penosa num orfanato — a memória de Chang até nem está muito longe — e embarca clandestinamente num transatlântico que ruma a América de todas as oportunidades. Também aqui, a viagem de Tintin ao Novo Mundo poderia ser uma referência ao mestre. Nada do que ficou dito pretende diminuir o capital de simpatia que o lançamento desta série pela editora nortenha possa recolher entre os leitores habituais de banda desenhada. No entanto, este primeiro volume está demasiado próximo do original para não exalar uma sensação de “déjà vu” que, no limite, retira frescura e mérito ao trabalho dos dois autores holandeses. Em “Tintin e os Pícaros” (que a Difusão Verbo teima em apelidar de Tintim...), Hergé procede a uma renovação de imagem do seu herói. Tintin deixa de usar calças de golfe para passar a vestir uns “jeans” ligeiramente à “boca de sino”, capacete com o símbolo da paz e o capitão Haddock revela-se definitivamente avesso ao seu tão apreciado “whisky”. A resposta do artista aos seus detractores vai mais longe. Situando de novo a acção numa república de opereta, algures no continente sul-americano, não resiste a denunciar o artificialismo das situações políticas que visam substituir um ditador por outro. Pelo meio, parodia o modo de vida e as motivações dos guerrilheiros que se assemelham surpreendentemente aos revolucionários guevaristas. No final da década de 70, tudo isso não podia deixar de ser, de facto, de um anacronismo que Hergé não deixa passar em claro, numa óbvia alusão à falta de “espessura” ideológica nas motivações de todos os “Alcazares” derrubados. Ainda assim, Tintin presta-se ao jogo do ambicioso “resistente” para salvar os amigos presos, organizando a tomada do poder num rocambolesco carnaval que não exclui turistas em viagem organizada, salvamentos de última hora e os demais ingredientes que imortalizaram as aventuras de Tintin. Na verdade, entre a denúncia da miséria num país dirigido por Tapioca e o subdesenvolvimento do mesmo país policiado por Alcazar só há uma diferença: a da denúncia que Hergé nunca enjeitou. E isso, para além do legado estético que deixou, dá prova de uma firmeza de convicções que não se manifesta apenas em 1976, mas vem desde o início da sua carreira, num longínquo ano de 1929, quando escreveu e desenhou “Tintin no País dos Sovietes”.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
sexta-feira, 22 de outubro de 1993
Um homem para a eternidade
Nove em cada dez europeus saberão quem é Tintin? E Hergé, que lugar ocupa nos conhecimentos dos cidadãos? Como parece óbvio, tudo dependerá do lugar da Europa onde a pergunta for colocada e de saber se o inquirido é um especialista, um simples amador ou alguém a quem as histórias aos quadradinhos dizem, respectivamente, muito, pouco ou nada...
Os índices de popularidade reduzem-se à medida que se avança na galeria dos personagens: Capitão Haddock, Milou, professor Tournesol, irmãos Dupond(t), Castafiore, Lampion, Rastapopoulos, Xyssa, Abdallah ou Zorrino, num total de mais de três centenas de personagens humanos ou animais. Para contrariar esta tendência, só mesmo a presença do secundaríssimo senhor Figueira de Oliveira, o comerciante português que tem na massa do sangue o vício de vender tudo e mais alguma coisa, sem excluir a sogra ou a mãe... e que só por falta de consciência cívica não seria o mais votado pelos inquiridos portugueses.
Foi graças a esta extensíssima galeria de personagens que a banda desenhada Tintin conquistou o lugar que hoje ocupa na história da BD mundial. Para muitos, terá sido com esta série que a banda desenhada europeia moderna — isto é, tal como a conhecemos hoje — realmente começou. E uma prova irrefutável desse papel consistiria na eclosão de todas as modas, tendências e correntes que, em seu nome ou contra ele, terão surgido ao longo dos últimos 50 anos.
No dia 10 de Janeiro do ano que vem, ter-se-ão passado 65 anos desde que Tintin fez a sua primeira aparição no “Petit Vingtième”, onde se inicia a aventura “Tintin au Pays des Soviets”. Hergé não começou aí a sua carreira — “Totor, C. P. des Hannetons”, uma história de e para escuteiros, saiu no ano anterior em “Le Boy-Scout Belge” —, mas seria aquele evento que marcaria definitivamente toda a sua carreira.
Tintin absorveu todas as energias criativas do seu progenitor e nenhum dos grandes temas de actualidade ficaram por abordar nas 22 aventuras que ele nos deixou. Nem sempre a abordagem terá sido a mais equilibrada ou sensata, mas, num mundo desde sempre profundamente dividido entre “bons” e “maus”, “reaccionários” e “revolucionários”, o ponto de equilíbrio consensual é algo de quase inatingível. Talvez por isso, Hergé tenha sido, consoante os momentos históricos, criticado ou elogiado, denegrido ou incensado. Em qualquer das circunstâncias, nunca as suas obras deixaram ninguém indiferente. Haverá melhor recompensa para um criador que essa afirmação para além da morte e do esquecimento?
No dia 3 de Março último, passaram-se dez anos sobre a morte de Hergé, em Bruxelas. Na altura, o acontecimento foi registado à escala mundial, com todos os meios de comunicação e informação a registarem a notícia em primeira página, e jornais houve — caso do “Libération”, em França — que conceberam um número histórico totalmente ilustrado com imagens das histórias de Tintin.
Antes de correr mundo como notícia necrológica, o herói de Hergé já o fizera como repórter — apesar de, como foi repetidamente sublinhado, nunca ninguém o ter visto escrever ou publicar uma notícia —, marcando presença no país dos sovietes, na América, em África, na América Latina, na China, no Tibete, no Médio Oriente, na Austrália e... na Lua, onde aterrou em 1953, 16 anos antes do astronauta norte-americano Armstrong.
Poucos autores terão, por outro lado, levado tão longe o aprofundamento e concretização da ideia de aventura, que constitui uma das traves-mestras da obra hergeniana. De facto, se o leitor conseguir olhar sem preconceitos de qualquer natureza para as diversas aventuras de Tintin, compreenderá que a acção, o mistério, o enigma, o “suspense”, as voltas e contra-voltas das histórias, ora aproximando, ora distanciando o desenlace final — a palavra “Fim”, que foi, durante décadas, a derradeira vinheta das histórias aos quadradinhos clássicas —, eram o vínculo invisível mais sólido e duradouro entre o artista, o seu herói e o leitor. Primeiro, na tradicional publicação semanal em revista, em sequências de uma ou duas pranchas em continuação. Depois, na leitura sem interrupções permitida pela edição do álbum.
Paradoxalmente, foi num dos momentos mais difíceis da sua vida, durante a ocupação da Bélgica pelas forças nazis, que as histórias de Tintin foram mais “puras” do ponto de vista da aventura, já que só era possível trabalhar num contexto de completa ausência de alusão à realidade social, política e militar envolvente. É o período de “O Caranguejo das Tenazes de Ouro”, “A Estrela Misteriosa”, “O Segredo do Licorne”, “O Tesouro de Rackham, o Terrível” e “As Sete Bolas de Cristal”.
A sua extraordinária “performance” estética tem como contraponto a primeira grande polémica em que Hergé se vê envolvido. Como trabalhara durante a ocupação num jornal colaboracionista (“Le Soir”), é acusado e preso, mas libertam-no pouco tempo depois, sem nunca ter sido julgado.
Nos início dos anos 50, verifica-se um salto qualitativo nos seus métodos de trabalho, com a criação dos Studios Hergé, onde trabalham alguns dos autores que mais tarde se tornarão nomes grandes da BD europeia: Bob de Moor, que o acompanhou até à morte, Jacques Martin, Roger Leloup, Baudoin van den Branden e outros. A par de novas aventuras, inicia-se um ambicioso projecto de reformulação sistemática das aventuras publicadas até então, que se traduz na inclusão da cor e, em muitos casos, numa radical alteração da sua concepção e planificação. Assim nasce o “novo Tintin”, tal como hoje é conhecido em todo o mundo.
É um período de grande actividade, que sofrerá um forte abalo na década de 60, anos de toda a constestação revolucionária. Os meios intelectuais são fortemente abalados — e, em muitas sociedades, serão mesmo os catalizadores desses processos políticos — e Hergé volta a cair em “desgraça”. Sucedem-se as leituras ideológicas das suas obras, que não resistem a uma apreciação política de teor marxizante. Hergé é sentado, à força, no banco dos réus da opinião pública e obrigado a defender-se dos crimes mais abomináveis: racista, xenófobo, anticomunista, reaccionário e anti-semita.
Após a sua morte, manifesta-se um fenómeno de sentido praticamente inverso. A banda desenhada torna-se objecto de estudo universitário e multiplicam-se as teses académicas sobre os quadradinhos e os seus autores. Hergé é um dos autores mais analisados, estudados, dissecados e radiografados. Procuram-se motivações psicanalíticas para os seus impulsos criativos. Especula-se sobre a natureza das relações entre os seus personagens. Equacionam-se as orientações e opções temáticas assumidas ao longo de décadas.
Os brilhantes anos 80 são, por outro lado, a sua “idade de ouro”, embora já póstuma, com o aparecimento do fenómeno estético conhecido por “linha clara”, isto é, de autores que se reivindicam da influência gráfica do artista, entre os quais Swarte, Tardi, Floc’h, Clerc, Pere Joan ou Torres.
É um pouco de tudo isto que estará em foco na exposição “O Mundo de Tintin”, organizada pela Fundação Hergé, uma instituição criada após a morte do artista para gerir o património e os direitos do autor. São quatro pequenas salas dedicadas a outros tantos temas que o visitante abordará como quiser. Será mais agradável se Tintin estiver entre os seus heróis dilectos.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
© 1993 Público/Carlos Pessoa
terça-feira, 14 de setembro de 1993
A voz dos críticos
Benoît Peeters: influências e influências
“A ideia que presidiu à criação da colecção ‘Bibliothèque de Moulinsart’ foi dar a conhecer aspectos muito diversificados da obra de Hergé e tornar públicas abordagens diferentes de um mesmo objecto. A colecção, que começou em 1987, tem uma dezena de títulos já publicados, que incidem, como pode ser comprovado sem dificuldades, sobre múltiplas dimensões das bandas desenhadas criadas pelo artista belga. O facto de terem aparecido, após a morte do artista, tantas obras — e as da colecção que eu dirijo são apenas uma pequena parte do que foi editado até ao momento — demonstra que há um interesse sólido em conhecer a riqueza da obra em questão. E isso é um aspecto a que eu sou particularmente sensível. É claro que há um perigo de saturação com a enorme quantidade de obras editadas, mas, no que nos diz respeito, tivemos sempre uma preocupação muito clara de restringir o número de títulos a uma quantidade razoável, ou seja, a uma média de um por ano. Como a maioria das pessoas, o meu interesse pelas aventuras de Tintin começou na infância, quando lia as peripécias vividas pelo personagem e pelos seu companheiros, e que se prolongou pela adolescência. Hoje, o que mais me impressiona neste processo de aproximação à obra de Hergé é o facto de que, sempre que me debruço sobre ela [Benoît Peeters é o autor de uma obra, publicada na colecção que dirige, intitulada “Le Monde de Hergé”], chego a respostas e constatações diferentes. Mas mais importante do que o meu percurso pessoal, é o de muitos autores que foram influenciados por Hergé. E aí, há que fazer claramente uma distinção entre duas coisas: de um lado estão uma série de desenhadores, do outro aquilo que é conhecido pela designação de ‘linha clara’. Esta última é apenas um dos aspectos em que se traduz a influência de Hergé, nomeadamente no aspecto gráfico. A prova disso está no facto de ter diminuído de importância e de peso com o decorrer dos anos, pois muitos dos autores que encabeçaram esse movimento emigraram para a ilustração, a publicidade, ou a pintura. É o caso de Ted Benoit ou de F’loch, por exemplo, e para apenas citar dois casos muito marcantes. Mas há outra realidade. Por exemplo, eu próprio trabalho com um desenhador chamado Goffin, alguém que está muito directamente marcado pelo estilo de Hergé, mas que conseguiu encontrar uma postura criativa muito pessoal. Mas penso que Hergé conseguiu criar algo de muito profundo que, em todo o caso, está presente na obra daquele artista e que se projecta de uma forma muito menos visível em outros autores contemporâneos que não se reivindicam directamente da influência gráfica de Hergé. Schuiten, com quem também tenho colaborado, ou Tardi, por exemplo.”
Benoît Peeters, ensaísta, crítico e argumentista de banda desenhada, é o director da colecção “Bibliothèque de Moulinsart”, consagrada à publicação de estudos sobre a obra de Hergé.
Henri Filippini: um grande negócio “A comercialização cada vez mais intensa em torno da obra de Hergé é uma das características mais marcantes do período que se seguiu à morte do artista belga. A sua viúva soube explorar admiravelmente a obra do autor — talvez mesmo melhor do que ele próprio — e vimos surgir um número impressionante de estudos, pesquisas, documentos e reedições de todas as formas e feitios das obras de Hergé. Se me perguntarem qual é o significado mais profundo desse fenómeno, diria que ele é, antes de mais, um fenómeno comercial e interrogo-me mesmo se, caso Hergé fosse ainda vivo, aceitaria de bom grado tudo isso. Sobretudo se pensarmos que ele era tão discreto relativamente à sua obra! Atrevo-me mesmo a afirmar que teria posto um ponto final em todo este espectáculo. Isto quer dizer, evidentemente, que a minha atitude face aos herdeiros de Hergé é muito crítica. Curiosamente, à medida que sobe de tom esse movimento comercial, os desenhadores que se inspiram na ‘linha clara’ tornaram-se cada vez menos numerosos. Vejamos: de um lado estão os clássicos, como Bob de Moor, recentemente falecido, Jacques Martin, Vandersten e outros, que são mais discípulos ou colaboradores do que herdeiros de Hergé. Ao fim e ao cabo, eles integram o núcleo dos que trabalharam com ele na revista ‘Tintin’. Por outro lado, há uma nova geração que se inspirou em Hergé para se exprimir na banda desenhada. Essa corrente manifestou-se pela primeira vez nos anos 70 — é o caso de Floc’h, Ted Benoit e outros —, mas hoje esses autores abandonaram na sua maioria a banda desenhada ou então trabalham muito pouco neste registo. Em suma, a ‘linha clara’ é um fenómeno que durou no máximo uma dezena de anos, e tem vindo a apagar-se pouco a pouco. Não sei se se pode dizer que deixou de existir, mas é incontestável que tem menor expressão do que há uma dezena de anos. Quem resta? Daniel Torres, em Espanha, parece-me o autor mais produtivo dentro desse estilo, mas não há novos autores que se tenham manifestado nos tempos mais recentes. Isso prova que se tratou, de facto, de um movimento historicamente datado entre meados da década de 70 e o início dos anos 80. Na minha opinião, a abundância de produtos relacionados com Hergé também contribuiu para matar um pouco as obras integradas na ‘linha clara’, ou que tinham nela a sua referência inspiradora. Aliás, os adeptos desta corrente são hoje em dia muito menos do que se pode pensar. Por outro lado, o volume de negócios gerado pelos produtos derivados de Hergé e do seu universo é muito maior do que aquele que resulta da venda dos próprios álbuns. Esta é, pelo menos, a realidade em França. Os objectos — camisolas, distintivos, bonecos, etc. — tornaram-se mais importantes do que a própria obra. O facto de, em certos períodos do ano, se verem montras repletas de produtos inspirados na obra de Hergé mas entre essa profusão de objectos não se encontrar um único álbum de Tintin fala por si. O que resta hoje é um enorme negócio que dá muito dinheiro a ganhar aos herdeiros de Hergé, e nomeadamente à sua viúva.”
Henri Filippini é crítico e divulgador francês de banda desenhada, chefe de redacção da revista “Vécu” (Éditions Glénat) e autor de várias obras dedicadas à BD, nomeadamente o “Dictionnaire de la Bande Dessinée”.
Thierry Groensteen: o clássico absoluto
“O lugar de Hergé e da sua obra no mundo da banda desenhada é simples de situar: ele faz parte do património cultural do século XX e do imaginário de várias gerações. Esse lugar continua a reforçar-se sem cessar. Hergé tornou-se definitivamente uma espécie de norma de referência do clássico absoluto da banda desenhada europeia. Um arquétipo? Eu não iria tão longe, porque há mil e uma maneiras de fazer banda desenhada, todas elas legítimas. O que ressalta mais em Hergé é, por um lado, uma espécie de universalidade do mundo que ele criou. Algo de espantoso, quando pensamos que é um belga oriundo de um meio muito reaccionário, burguês, católico, trabalhando num jornal quase de extrema-direita, sem uma cultura particular quando começou a desenhar e que só saiu do seu país muito mais tarde, quando já era muito conhecido. É difícil de imaginar que uma pessoa como ele tenha criado uma obra que é lida e apreciada em todo o mundo e por gerações sucessivas. Há em tudo isso uma aura de mistério, que não é mais do que a marca do seu génio. Por outro, o que mais me impressiona na obra de Hergé é a sua dimensão enciclopédica, ou seja, o facto de Tintin ter visitado todos os continentes e de se ver confrontado com todas as situações e objectos característicos da sua época. Mais: eu próprio me vejo frequentemente em situações do quotidiano que me fazem lembrar episódios — devo confessar que conheço todos os álbuns de Tintin como as palmas das minhas mãos —, que se assemelham a esta ou aquela sequência das aventuras do jovem repórter. E o segredo disto está no facto de as obras de Hergé serem, entre todos os álbuns de banda desenhada, aqueles que melhor, mais fácil e frequentemente se deixam ler, com a sua actualidade sempre incólume. “Depois da morte de Hergé, verificou-se um fenómeno — muito sobre-avaliado, aliás — conhecido pela designação de ‘linha clara’, a que se deu uma importância muito exagerada relativamente à realidade e ao interesse que de facto representou. Em termos de qualidade pode, quanto muito, falar-se de dois ou três autores que tinham uma efectiva identidade — é o caso de Swarte, que de resto estava mais próximo do americano McManus que de Hergé. A maioria dos autores que se inseriam naquela corrente eram pessoas que lá chegaram depois de terem experimentado diversos estilos, mas que supriam uma falta de identidade com Hergé no plano estilístico com o recurso a um vocabulário que lhes parecia eficaz para obter uma obra minimamente conseguida. “O problema é que estes seguidores de Hergé reduziram a sua obra apenas à componente gráfica e ainda por cima recorrendo ao Hergé ‘tardio’, ou seja, da fase em que a sua obra é produzida nos estúdios com o seu nome, de forma estandardizada. E o génio gráfico das obras a preto e branco, onde é possível encontrar porventura os mais belos desenhos de Hergé, ou pelo menos os mais livres e suaves? “Ao tratarem o estilo de Hergé como um puro sistema gráfico, os autores da ‘linha clara’ produziram uma obra redutora e, em todo o caso, muito pobre. A prova é que esse movimento não criou nada de muito significativo e está mesmo em vias de se extinguir. Para mim, a verdadeira herança que Hergé deixou não é de natureza gráfica, mas romanesca, narrativa. Ninguém como ele conseguiu introduzir tão harmoniosamente nas suas histórias o real e o imaginário, o ‘suspense’, a acção e o humor, o que é muito raro! Por outro lado, soube construir ao longo dos episódios um universo coerente e mitológico muito peculiar, e que não deixou de se consolidar e ampliar, recuperando constantemente as premissas dos episódios anteriores. Ora, isto são coisas que é muito raro encontrar nos autores contemporâneos de banda desenhada.”
Thierry Groensteen é crítico de banda desenhada e professor da Escola de Belas Artes de Angoulême, colaborando com diversos editores em várias áreas culturais.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
“A ideia que presidiu à criação da colecção ‘Bibliothèque de Moulinsart’ foi dar a conhecer aspectos muito diversificados da obra de Hergé e tornar públicas abordagens diferentes de um mesmo objecto. A colecção, que começou em 1987, tem uma dezena de títulos já publicados, que incidem, como pode ser comprovado sem dificuldades, sobre múltiplas dimensões das bandas desenhadas criadas pelo artista belga. O facto de terem aparecido, após a morte do artista, tantas obras — e as da colecção que eu dirijo são apenas uma pequena parte do que foi editado até ao momento — demonstra que há um interesse sólido em conhecer a riqueza da obra em questão. E isso é um aspecto a que eu sou particularmente sensível. É claro que há um perigo de saturação com a enorme quantidade de obras editadas, mas, no que nos diz respeito, tivemos sempre uma preocupação muito clara de restringir o número de títulos a uma quantidade razoável, ou seja, a uma média de um por ano. Como a maioria das pessoas, o meu interesse pelas aventuras de Tintin começou na infância, quando lia as peripécias vividas pelo personagem e pelos seu companheiros, e que se prolongou pela adolescência. Hoje, o que mais me impressiona neste processo de aproximação à obra de Hergé é o facto de que, sempre que me debruço sobre ela [Benoît Peeters é o autor de uma obra, publicada na colecção que dirige, intitulada “Le Monde de Hergé”], chego a respostas e constatações diferentes. Mas mais importante do que o meu percurso pessoal, é o de muitos autores que foram influenciados por Hergé. E aí, há que fazer claramente uma distinção entre duas coisas: de um lado estão uma série de desenhadores, do outro aquilo que é conhecido pela designação de ‘linha clara’. Esta última é apenas um dos aspectos em que se traduz a influência de Hergé, nomeadamente no aspecto gráfico. A prova disso está no facto de ter diminuído de importância e de peso com o decorrer dos anos, pois muitos dos autores que encabeçaram esse movimento emigraram para a ilustração, a publicidade, ou a pintura. É o caso de Ted Benoit ou de F’loch, por exemplo, e para apenas citar dois casos muito marcantes. Mas há outra realidade. Por exemplo, eu próprio trabalho com um desenhador chamado Goffin, alguém que está muito directamente marcado pelo estilo de Hergé, mas que conseguiu encontrar uma postura criativa muito pessoal. Mas penso que Hergé conseguiu criar algo de muito profundo que, em todo o caso, está presente na obra daquele artista e que se projecta de uma forma muito menos visível em outros autores contemporâneos que não se reivindicam directamente da influência gráfica de Hergé. Schuiten, com quem também tenho colaborado, ou Tardi, por exemplo.”
Benoît Peeters, ensaísta, crítico e argumentista de banda desenhada, é o director da colecção “Bibliothèque de Moulinsart”, consagrada à publicação de estudos sobre a obra de Hergé.
Henri Filippini: um grande negócio “A comercialização cada vez mais intensa em torno da obra de Hergé é uma das características mais marcantes do período que se seguiu à morte do artista belga. A sua viúva soube explorar admiravelmente a obra do autor — talvez mesmo melhor do que ele próprio — e vimos surgir um número impressionante de estudos, pesquisas, documentos e reedições de todas as formas e feitios das obras de Hergé. Se me perguntarem qual é o significado mais profundo desse fenómeno, diria que ele é, antes de mais, um fenómeno comercial e interrogo-me mesmo se, caso Hergé fosse ainda vivo, aceitaria de bom grado tudo isso. Sobretudo se pensarmos que ele era tão discreto relativamente à sua obra! Atrevo-me mesmo a afirmar que teria posto um ponto final em todo este espectáculo. Isto quer dizer, evidentemente, que a minha atitude face aos herdeiros de Hergé é muito crítica. Curiosamente, à medida que sobe de tom esse movimento comercial, os desenhadores que se inspiram na ‘linha clara’ tornaram-se cada vez menos numerosos. Vejamos: de um lado estão os clássicos, como Bob de Moor, recentemente falecido, Jacques Martin, Vandersten e outros, que são mais discípulos ou colaboradores do que herdeiros de Hergé. Ao fim e ao cabo, eles integram o núcleo dos que trabalharam com ele na revista ‘Tintin’. Por outro lado, há uma nova geração que se inspirou em Hergé para se exprimir na banda desenhada. Essa corrente manifestou-se pela primeira vez nos anos 70 — é o caso de Floc’h, Ted Benoit e outros —, mas hoje esses autores abandonaram na sua maioria a banda desenhada ou então trabalham muito pouco neste registo. Em suma, a ‘linha clara’ é um fenómeno que durou no máximo uma dezena de anos, e tem vindo a apagar-se pouco a pouco. Não sei se se pode dizer que deixou de existir, mas é incontestável que tem menor expressão do que há uma dezena de anos. Quem resta? Daniel Torres, em Espanha, parece-me o autor mais produtivo dentro desse estilo, mas não há novos autores que se tenham manifestado nos tempos mais recentes. Isso prova que se tratou, de facto, de um movimento historicamente datado entre meados da década de 70 e o início dos anos 80. Na minha opinião, a abundância de produtos relacionados com Hergé também contribuiu para matar um pouco as obras integradas na ‘linha clara’, ou que tinham nela a sua referência inspiradora. Aliás, os adeptos desta corrente são hoje em dia muito menos do que se pode pensar. Por outro lado, o volume de negócios gerado pelos produtos derivados de Hergé e do seu universo é muito maior do que aquele que resulta da venda dos próprios álbuns. Esta é, pelo menos, a realidade em França. Os objectos — camisolas, distintivos, bonecos, etc. — tornaram-se mais importantes do que a própria obra. O facto de, em certos períodos do ano, se verem montras repletas de produtos inspirados na obra de Hergé mas entre essa profusão de objectos não se encontrar um único álbum de Tintin fala por si. O que resta hoje é um enorme negócio que dá muito dinheiro a ganhar aos herdeiros de Hergé, e nomeadamente à sua viúva.”
Henri Filippini é crítico e divulgador francês de banda desenhada, chefe de redacção da revista “Vécu” (Éditions Glénat) e autor de várias obras dedicadas à BD, nomeadamente o “Dictionnaire de la Bande Dessinée”.
Thierry Groensteen: o clássico absoluto
“O lugar de Hergé e da sua obra no mundo da banda desenhada é simples de situar: ele faz parte do património cultural do século XX e do imaginário de várias gerações. Esse lugar continua a reforçar-se sem cessar. Hergé tornou-se definitivamente uma espécie de norma de referência do clássico absoluto da banda desenhada europeia. Um arquétipo? Eu não iria tão longe, porque há mil e uma maneiras de fazer banda desenhada, todas elas legítimas. O que ressalta mais em Hergé é, por um lado, uma espécie de universalidade do mundo que ele criou. Algo de espantoso, quando pensamos que é um belga oriundo de um meio muito reaccionário, burguês, católico, trabalhando num jornal quase de extrema-direita, sem uma cultura particular quando começou a desenhar e que só saiu do seu país muito mais tarde, quando já era muito conhecido. É difícil de imaginar que uma pessoa como ele tenha criado uma obra que é lida e apreciada em todo o mundo e por gerações sucessivas. Há em tudo isso uma aura de mistério, que não é mais do que a marca do seu génio. Por outro, o que mais me impressiona na obra de Hergé é a sua dimensão enciclopédica, ou seja, o facto de Tintin ter visitado todos os continentes e de se ver confrontado com todas as situações e objectos característicos da sua época. Mais: eu próprio me vejo frequentemente em situações do quotidiano que me fazem lembrar episódios — devo confessar que conheço todos os álbuns de Tintin como as palmas das minhas mãos —, que se assemelham a esta ou aquela sequência das aventuras do jovem repórter. E o segredo disto está no facto de as obras de Hergé serem, entre todos os álbuns de banda desenhada, aqueles que melhor, mais fácil e frequentemente se deixam ler, com a sua actualidade sempre incólume. “Depois da morte de Hergé, verificou-se um fenómeno — muito sobre-avaliado, aliás — conhecido pela designação de ‘linha clara’, a que se deu uma importância muito exagerada relativamente à realidade e ao interesse que de facto representou. Em termos de qualidade pode, quanto muito, falar-se de dois ou três autores que tinham uma efectiva identidade — é o caso de Swarte, que de resto estava mais próximo do americano McManus que de Hergé. A maioria dos autores que se inseriam naquela corrente eram pessoas que lá chegaram depois de terem experimentado diversos estilos, mas que supriam uma falta de identidade com Hergé no plano estilístico com o recurso a um vocabulário que lhes parecia eficaz para obter uma obra minimamente conseguida. “O problema é que estes seguidores de Hergé reduziram a sua obra apenas à componente gráfica e ainda por cima recorrendo ao Hergé ‘tardio’, ou seja, da fase em que a sua obra é produzida nos estúdios com o seu nome, de forma estandardizada. E o génio gráfico das obras a preto e branco, onde é possível encontrar porventura os mais belos desenhos de Hergé, ou pelo menos os mais livres e suaves? “Ao tratarem o estilo de Hergé como um puro sistema gráfico, os autores da ‘linha clara’ produziram uma obra redutora e, em todo o caso, muito pobre. A prova é que esse movimento não criou nada de muito significativo e está mesmo em vias de se extinguir. Para mim, a verdadeira herança que Hergé deixou não é de natureza gráfica, mas romanesca, narrativa. Ninguém como ele conseguiu introduzir tão harmoniosamente nas suas histórias o real e o imaginário, o ‘suspense’, a acção e o humor, o que é muito raro! Por outro lado, soube construir ao longo dos episódios um universo coerente e mitológico muito peculiar, e que não deixou de se consolidar e ampliar, recuperando constantemente as premissas dos episódios anteriores. Ora, isto são coisas que é muito raro encontrar nos autores contemporâneos de banda desenhada.”
Thierry Groensteen é crítico de banda desenhada e professor da Escola de Belas Artes de Angoulême, colaborando com diversos editores em várias áreas culturais.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
segunda-feira, 26 de julho de 1993
Os bons e os maus
Dentro de dois meses, mais dia menos dia, o calendário vai parar numa data: 27 de Setembro de 1966. Hergé já não é jovem, mas as suas histórias sim. Os tempos são adversos, por entre contestações várias, elementares e primárias, recheadas de ideologia e outros rótulos pouco abonatórios.
Todavia, distante está o tempo das polémicas aventuras de Tintin no país dos sovietes, na América, em África. E também o ciclo da aventura — em estado puro e duro — durante a ocupação nazi da Bélgica.
O díptico “As Sete Bolas de Cristal-O Templo do Sol”, “No País do Ouro Negro” e a saga lunar são aventuras que se sucedem com constância. Os personagens de Hergé continuam a correr mundo, na senda dos raptores de Tournesol e também como libertadores dos muçulmanos em peregrinação a Meca. “Tintin no Tibete” é, em seguida, o mais comovente hino à amizade que alguma vez se concebeu em banda desenhada, e “As Jóias de Castafiore” um simples divertimento, um intervalo lúdico que surpreende pelo que não tem: um tema.
Os sinais de misticismo e de sedução dos fenómenos parapsicológicos já vinham de trás, primeiro de forma discreta, depois mais ostensiva. E quem diria que um mero voo para Sidney iria dar lugar a tantas peripécias, algures no mar das Celebes, deixada para trás a cidade de Jacarta? Bem, é assim mesmo a aventura. E não se espera outra coisa de uma história aos quadradinhos.
Os dados estão lançados e os peões nos respectivos lugares. Familiares, Haddock, Tournesol, Xyssa e, evidentemente, Tintin e Milou. Neófitos, o milionário Carreidas, Spalding e alguns malfeitores de segundo plano. Na charneira, um velho aventureiro e conhecido de Tintin e Haddock, Rastapopoulos, em torno de quem tudo se move.
Determinam as regras que nada fique entregue ao acaso: perante a ofensiva adversária, os “heróis positivos” têm que inverter o rumo dos acontecimentos. Eis que mergulhamos em voo picado no campo da aventura clássica, regida por códigos que os criadores conhecem como a palma da mão.
Onde Hergé rompe com os cânones é no apelo à presença de entidades extraterrestres, graças às quais os seus personagens escapam a um fim trágico. Mais um mistério que fica por explicar, excepto para os leitores, a quem Hergé lança uma piscadela cúmplice que só termina no último quadradinho: é o regresso ao aeroporto de Jacarta, na ilha de Bali, onde toda esta história começa e acaba. A rotina e o quotidiano não têm, de facto, lugar na banda desenhada.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
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quarta-feira, 14 de julho de 1993
O correr do tempo, 10 anos da morte
Parece que foi ontem e já lá vão dez anos. Nesse dia 3 de Março de 1983, quando o planeta ainda era apenas o lugar habitado pela humanidade dividida em dois blocos político-militares, todas as atenções se concentraram num acontecimento que não deixou ninguém indiferente: a morte de Hergé, o criador de Tintin.
Um autor de banda desenhada que foi manchete em jornais de todo o mundo? Se havia alguém a quem isso podia acontecer, era Hergé, o criador de Tintin.
Infelizmente, tratava-se da sua morte, aos 76 anos de idade, na sequência de uma prolongada leucemia que lhe minou a saúde nos últimos anos de vida. A sua derradeira obra, “Tintin et l’Alph-Art”, que ficaria apenas na fase de esboço — e foi assim publicada pelo seu editor de sempre, a Casterman —, é o último testemunho de um percurso criativo feito quase sempre no país natal, a Bélgica, de onde só tardiamente saiu para ver mundo, quando o essencial da sua obra já era um êxito mundial. Que Portugal tenha sido um dos primeiros países a publicar aventuras de Tintin, na revista “Papagaio”, é um mero acidente que se deve mais à energia inesgotável e diligente de Adolfo Simões Müller do que ao facto de o nosso país ser uma “potência” no campo da banda desenhada. E não deixa de ser de uma amarga ironia verificar que Portugal é, também, um dos últimos países do mundo onde a obra de Hergé está publicada que teve direito a uma edição própria, encetada nos anos 80 pela Verbo, depois de décadas e décadas de monopólio brasileiro. Contrastes. Mais do que isso, o próprio Hergé foi sempre o centro de apaixonadas — e nem sempre muito esclarecedoras — polémicas entre os seus incondicionais admiradores e os seus radicais detractores. Católico e conservador, Georges Rémi, o verdadeiro nome do criador de Tintin, nunca quis ser mais do que um simples contador de histórias para crianças. E talvez nunca tivesse deixado de o ser, não se desse a circunstância de fazer publicar em 1929 a primeira aventura de um jovem repórter que vai dar a conhecer toda a verdade sobre o “paraíso soviético”. “Tintin au Pays des Soviets”, a única aventura em que o autor nunca mais mexeu, é um violento libelo contra as manipulações políticas e as mistificações de um sistema totalitário e antidemocrático. O desenho é ainda “tosco” e pouco firme, mas as grandes referências temáticas estão lá todas: a aventura, a aventura e ainda a aventura, para lá de todos os pressupostos de ordem ideológica. Nas histórias seguintes procuraria fazer o contraponto, levando o seu herói à América, onde combate os “gangsters”, e ao Congo, onde se comporta como o colonizador ingénuo que os compatriotas belgas talvez não fossem na sua relação com a então colónia. Com os anos, Hergé vai amadurecer o seu estilo, dando fé de uma inteligência narrativa fora do comum. A utilização sistemática do preto e branco, a limpidez da sua narração e os excelentes argumentos são a chave do seu êxito. Popular, na medida em que recorre a um registo acessível para se exprimir. Intelectual, no sentido em que, depois dele, nenhum autor ficará indiferente ao seu contributo para o crescimento da banda desenhada. Para sobreviver, trabalha durante a guerra num jornal de Bruxelas, “Le Soir”, onde publica algumas das mais admiráveis aventuras de Tintin — “A Estrela Misteriosa”, “O Segredo do Licorne”, “O Tesouro de Rackham, o Terrível” —, mas que estarão também no centro da primeira grande polémica que envolve o seu nome. É acusado de colaboracionismo — o jornal era, como todos, aliás, controlado pelos alemães — e chega a ser preso. É liberto pouco depois sem nunca ser acusado de nada. Nas décadas seguintes, já com uma equipa de colaboradores em que se destacam Edgar-Pierre Jacobs, Jacques Martin e Bob de Moor, cria os Studios Hergé, onde se procede à reformulação sistemática dos seus álbuns, agora a cores, considerada uma nova e bem sucedida inovação na arte de fazer banda desenhada. Os “anos de brasa” da contestação esquerdista que culminará no movimento de Maio de 68 em França, e um pouco por toda a Europa, voltam a colocar Hergé no banco dos réus. O libelo acusatório é pesado: reaccionário, anticomunista, racista e anti-semita, entre outros epítetos. Só a sua morte virá aliviar um pouco a pressão. Redescoberto por muitos intelectuais que, na maioria, sempre olharam a obra de Hergé com desconfiança e desprezo, é objecto de um verdadeiro culto, a avaliar pela incontável variedade de estudos analíticos que lhe foram consagrados. Os anos 80 serão, a esse título, e de forma póstuma, a sua “idade de ouro”, que é acompanhada de uma sistemática reedição das suas obras e pelo desenvolvimento de uma estratégia comercial montada pela viúva para transformar os produtos saídos das bandas desenhadas em negócio de milhões. Paralelamente, assiste-se a uma recuperação das suas fórmulas estéticas, consagradas naquele que ficou conhecido como o “movimento da linha clara”, ou seja, os autores que se reivindicavam do estilo gráfico de Hergé. Ao dobrar dos anos 90, novas campanhas anti-Hergé surgem em França, focalizadas sobre aspectos muito pessoais do seu passado que chegam, inclusive, à barra do tribunal (ver “Tintin no tribunal”, PÚBLICO de 13-12-91). A incursão de Tintin no desenho animado, que foi utilizado para popularizar a imagem da personagem e dá-la a conhecer a novas gerações em França, nos Estados Unidos e em outros países, é um dos pomos da discórdia — mas não o único — entre a Fundação Hergé, a viúva do artista e a associação Les Amis de Hergé (Os Amigos de Hergé), sobre a qual ninguém quis pronunciar-se abertamente. O nosso pedido de uma entrevista com Fanny Rémi foi liminarmente rejeitado pela fundação, que invocou, de forma pouco convincente, uma ausência prolongada da viúva fora da Bélgica. Não sendo possível conhecer a versão da pessoa mais directamente envolvida neste muito criticado pendor comercial das actividades relativas a Hergé e Tintin, é o secretário-geral da fundação, Philippe Goddin (ver texto “Perpetuar um nome”), quem, de forma lacónica, explica os motivos do corte de relações com Les Amis de Hergé. “Temos o maior respeito por essa associação, como por todos os que gostam muito de Hergé, mas houve um excesso verbal da parte do presidente de Les Amis de Hergé e, ao termos sido publicamente criticados, não podíamos tomar outra atitude que não fosse a de suspender o nosso apoio à revista que eles editam.” O presidente da associação, por seu lado, limitou-se a fazer uma brevíssima alusão a esse contencioso no decorrer da entrevista que deu ao PÚBLICO, sem citar ninguém em particular. Qualquer que seja a opinião dos leitores, um facto é inegável: Hergé é, como sustenta o analista e crítico Yves Frémion, “o verdadeiro inventor da BD moderna”. Excessivamente modesto e de uma simplicidade tocante, Hergé tornou-se um mito moderno e um dos maiores expoentes da cultura ocidental. Uma situação privilegiada em que poucos autores poderão algum dia ver-se colocados pelos vindouros.
Fundação Hergé - Perpetuar um nome
Com a morte de Hergé, Tintin terminou também a sua vida aventureira. Os Studios Hergé, que tinham sido o espaço de criação e desenvolvimento das histórias do mais conhecido personagem de Hergé, fecharam as portas: o autor manifestara o desejo expresso de não ver o seu herói viver novas aventuras. Que fazer? Criada e presidida pela viúva de Hergé, Fanny Rémi, surgiu em 1987 a Fundação Hergé, uma instituição sem fins lucrativos, com sede em Bruxelas. Não exerce qualquer actividade, tendo como objectivos exclusivos a “protecção da obra de Hergé e torná-la mais conhecida, velando simultaneamente para que o espírito da obra não seja alterado”. A proliferação de iniciativas de natureza comercial envolvendo a imagem de Hergé e das suas obras tem levado muita gente a interrogar-se sobre o papel da Fundação em todo esse processo. Em declarações ao PÚBLICO, Philippe Goddin, secretário-geral daquela instituição, foi formal: “Não exercemos qualquer actividade comercial. Absolutamente nenhuma. Muita gente tem assistido ao aparecimento de diversas iniciativas envolvendo Tintin e pensa que a responsabilidade é nossa. Nada temos a ver com isso.” Do mesmo modo, qualquer autorização para a comercialização de um novo produto está fora da competência da Fundação, como refere o mesmo responsável: “A única autorização necessária é a de Fanny Rémi, viúva e herdeira universal do desenhador, de quem recebeu a totalidade dos direitos. Para os exercer, tomou duas iniciativas no final de 1986: criou a Fundação Hergé e uma sociedade comercial intitulada Moulinsart, para explorar os direitos derivados da obra de Hergé, da qual depende uma outra, com sede em Paris, ambas inteiramente controladas por Fanny Rémi.” A Fundação está, assim, limitada a um papel de controlo das iniciativas que envolvam o nome de Hergé, velando para que a imagem deste último não sofra um desgaste que poderia ser negativo para o futuro. Este papel é particularmente importante, se tivermos em conta o “boom” de estudos, ensaios, produtos comerciais e séries de desenhos animados que inundaram o mercado europeu após a morte do criador de Tintin, ao ponto de haver quem admita estar-se muito perto do ponto de saturação, a partir do qual a imagem do artista começa a sofrer um processo de erosão acentuada. “O ‘merchandising’ relacionado com a obra de Hergé em banda desenhada era relativamente modesto no momento da morte do artista. Depois dessa data, o sucesso de Tintin não deixou de aumentar e ampliar-se. Esse sucesso comercial tem a sua origem na obra de Hergé, mas ultrapassa-a largamente. Assim, parece-nos normal que os produtos comerciais coexistam com os álbuns, embora seja necessário salvaguardar as proporções desse fenómeno. Nisso, está toda a gente de acordo”, sublinha Goddin. Mas o problema que se coloca (ver depoimentos dos críticos de banda desenhada) é o de saber se essa fasquia não foi já ultrapassada. A resposta daquele responsável é negativa: “Quando comparada com outros exemplos, não me parece que a posição de Tintin esteja em perigo, mesmo se há um inegável aumento de produtos nos últimos quatro ou cinco anos.” Permanece, para além de todas essas questões, o trabalho que a Fundação se propõe realizar. Inteiramente financiada pela viúva de Hergé, aquela instituição organizou uma exposição itinerante, “Le Monde de Tintin” (O Mundo de Tintin), que esteve em Janeiro passado exposta em Angoulême, e prepara, para assinalar o 10º aniversário da morte do artista, uma grande exposição temática intitulada “Au Tibet avec Tintin” (literalmente, No Tibete com Tintin), que deverá estar pronta no segundo semestre deste ano.
Hergé: morte e vida de um mito
Há dez anos, que se completaram no passado dia 3 de Março, Hergé falecia em Bruxelas. A sua morte física não o arrastou para o esquecimento. As aventuras dos heróis que criou, com especial relevo para Tintin, continuam vivas e bem vivas. Uma geração de desenhadores pegou na sua herança estética e perpetuou o mito. Alguém lhe deu o nome de “linha clara”, numa mais que justa homenagem ao desenho límpido, nítido e claro que identificou um estilo inconfundível. O que já ninguém poderá jamais fazer é preencher o vazio deixado por um autor polémico e contestado, consensual e idolatrado, que nunca enjeitou a menor parcela do seu passado e soube ser coerente na defesa de valores perenes e imutáveis. Aventura em estado puro, compromisso social e político, defesa dos fracos e oprimidos, elogio da amizade e do amor, eis o que atravessa a obra do mais importante autor europeu de banda desenhada e faz a sua universalidade. Um autor para a eternidade.
“Obra magistral que merecia um fim”
Stéphane Steeman, presidente dos Amigos de Hergé
Sem ocultar a profunda amizade que o ligou a Hergé, o presidente da associação Les Amis de Hergé, Stéphane Steeman, soube manter um núcleo de admiradores incondicionais unidos em torno da sua própria veneração ao autor de Tintin. E defende-o contra tudo e todos, com uma convicção que o PÚBLICO registou. O que faz mover um milhar de fãs de Hergé e da sua obra? Há assim um carisma tão poderoso na postura de Tintin ao ponto de fazer dele uma referência para gerações sucessivas de leitores? Como compreender e qualificar as reiteradas acusações de racismo, colonialismo, anti-semitismo e reaccionarismo que, década sim, década não, impendem sobre o mais universal de todos os autores de banda desenhada. Aproximação a todas estas questões na entrevista que o presidente da associação Les Amis de Hergé deu ao PÚBLICO.
PÚBLICO — Quando faleceu, Hergé já era um autor consagrado ou, se quiser, já tinha muitos amigos. Quem são, de facto, os amigos de Hergé?
STÉPHANE STEEMAN — Sou um coleccionador há mais de 20 anos, conheço Hergé há mais de 40 anos e gosto de Tintin desde há 55 anos, que é quase a minha idade. Aprendi progressivamente a gostar do homem, a conhecer pouco a pouco a sua obra e a tornar-me um especialista desse mundo tão vasto que é o de Hergé. Quando ele morreu, fiquei tão deprimido que pensei em acabar com tudo. Não suportava ver-me rodeado de quanto evocava alguém que não poderia voltar a ver. Mas depois pensei que Hergé ficaria contente se soubesse que eu tinha tomado a decisão de continuar.
Foi nesse momento que nasceu a associação?
Exacto. Recebi uma carta de um polícia que me exprimia a sua convicção de que era necessário fazer alguma coisa para unir os verdadeiros amigos de Hergé, de modo a que pudessem conhecer-se, encontrar-se e dar a conhecer a obra do artista. Começámos por colocar pequenos anúncios a divulgar os nossos objectivos, a organizar uma rede de correspondência, a tratar de todos esses pequenos pormenores burocráticos que fazem as coisas andar. No início éramos umas duas dezenas e hoje somos mais de um milhar, entre canadianos, franceses, espanhóis, irlandeses, portugueses, alemães, belgas, enfim, gente em muitos países do mundo. Editamos uma revista semestral, promovemos uma assembleia geral anual e recebemos uma média de dez cartas por dia de associados de todo o mundo.
Hergé deixou um vazio entre os seus adeptos que é impossível de preencher. Mas a banda desenhada também ficou mais pobre...
Bem, tenho que lhe confessar que não sou um fanático da banda desenhada, o que nem sempre é compreendido por quem me conhece. Sou um amigo de Hergé e é tudo. Claro que admiro alguns desenhadores, mas acima de tudo há a figura de Hergé, um clássico, o Molière do desenho, o Van Gogh da banda desenhada... E devo acrescentar que o melhor presente que ele me deu foi não permitir que as histórias de Tintin fossem continuadas por outro autor. A sua obra é de tal modo magistral, nobre e bela que merecia ter um fim. Existem 23 álbuns em que ninguém pode tocar. Assim, para mim não há, de facto, um vazio e não me sinto triste por Tintin ter deixado de existir com a morte do seu criador.
Isso significa que há uma perenidade da obra de Hergé que está para lá do fim físico do artista? Se for esse o caso, onde está o segredo dessa resistência ao tempo e às modas?
É muito difícil explicar um sucesso. Hergé nunca pensou que aquilo que fazia iria tornar-se um êxito. E se ele pudesse ver o que se faz hoje em torno da sua obra, estou convencido que não teria a menor vontade de regressar. Ele nunca deixou de se manifestar surpreendido com cada êxito obtido. Nessas ocasiões, limitava-se a afirmar que desenhava personagens e histórias para as crianças e nunca imaginou que a sua obra pudesse ser recuperada pelos adultos e pelos intelectuais. Agora é fácil dizê-lo, mas a verdade é que ele conseguiu sempre elaborar um desenho belo e despojado que era, simultaneamente, humorístico e realista, o que fazia com que as suas histórias agradassem tanto às crianças como aos adultos. E depois há um carácter universal em Hergé, que vem do facto de todos os seus álbuns serem o retrato de uma época. São obras que se lêem sempre, e de cada vez que isso acontece podem ser apreciadas de um modo diferente. E isto é válido em todas as épocas e para todos os tipos de leitores. É extraordinário!
Apesar de todas essas qualidades, Hergé foi, como sabe, muito contestado e acusado de reaccionarismo. Após a sua morte, assistimos a uma reabilitação do artista. E agora, no virar da década de 80, vemos de novo Hergé no “banco dos réus”, com acusações de ordem política e pessoal bastante contundentes. Como interpreta estes fenómenos?
Bem, é necessário afirmar claramente que Hergé não foi sempre um homem de direita e que isso não é um crime! Mas agora, com a maneira cada vez mais destorcida com que se vê a política, um personagem de direita é logo acusado de ser de extrema-direita, e este último é automaticamente nazi... Simplifica-se tudo e quanto mais nos afastamos do período da guerra maior é o número de pessoas que, sem ter vivido as situações, elabora juízos categóricos sobre o que não conhece. Hergé conheceu Léon Degrelles em 1930 [fundador do Partido Rexista, a versão belga do Partido Nacional-Socialista alemão de Hitler], o que é do domínio público. Mas não se pode condenar ninguém apenas porque andou com Hitler na escola! Depois, cada um seguiu o seu próprio percurso, após um curto período de trabalho em comum no mesmo jornal [“Le Soir”, em Bruxelas], que, como todos os daquela época, era controlado pelos alemães. Mas limitou-se a fazer desenhos para as crianças e também para sobreviver. Hergé parodiou os judeus? Mas na época toda a gente o fazia, e não é por isso que se pode acusar o autor de Tintin de anti-semitismo! Nunca quis caricaturar mulheres nas suas histórias, à excepção da Castafiore: isso faz dele um misógino? Ao fazer caricaturas dos negros acusaram-no de colonialista, mas todos se esquecem de dizer que, naquela altura, o Congo era uma colónia belga!
Mas não pretende que Hergé foi, afinal, um homem de esquerda?...
Claro que ele nunca foi um homem de esquerda! Mas as coisas ficam por aí. De resto, ele não sofreu a menor condenação. Sabe, é muito fácil atacar Hergé por coisas que toda a gente conhecia. Por que motivo se volta a evocar tudo isso nove anos depois da sua morte? Isso só tem um nome: mesquinhez, maldade e procura de escândalo fácil.
Tintin, difícil de abater
Há dez anos, uma notícia abalava o mundo: Hergé morria, levando com ele o seu personagem maior, Tintin. Era o princípio de uma autêntica “tintinolatria”, que recuperou o mito, dissecou-o de todas as formas e feitios em obras incontáveis e gerou um negócio de milhões em torno dos personagens. Tintin é Hergé ou será o contrário? Em torno de uma questão tão simples de formular como esta, ouviram-se mil respostas ao longo da última década. E tudo porque Hergé, falecido em 3 de Março de 1983 na sequência de uma prolongada e dolorosa doença, deixava para os vindouros uma obra longa e universal, polémica até aos limites da saturação. Odiado e repudiado pelos que viam nele o símbolo do racismo e da xenofobia, idolatrado pelos que sublinhavam os valores positivos da amizade e da tolerância afirmados pelo seu herói maior, Hergé é um daqueles autores que dificilmente será derrotado pela “lei da morte” de que falava o poeta Camões. De facto, a sua vida é um movimento perpétuo entre a perseguição e a consagração, consoante as modas políticas e ideológicas, o evoluir da História e a postura pessoal do artista. Filho de uma família ultra-conservadora, educado em rígidas normas católicas, Georges Rémi, o verdadeiro nome do criador de Tintin, ensaia os primeiros passos na banda desenhada no começo da década de 20, deixando uma singular história, nunca mais retomada, “Les Aventures de Popol et Virginie au Far-West” (1934). Antes, e a partir de 1930, desenvolvera curtas histórias de dois “putos” residentes em Bruxelas, Quick e Flupke (histórias publicadas em Portugal pela Difusão Verbo, que também tem estado a editar as aventuras de Tintin) e, já em 1936, as aventuras de Jo, Zette e Jocko. Todavia, é Tintin quem ficará para a posteridade. Surge em 1929 como um jovem repórter — Hergé admitiu um dia em entrevista ao crítico e ensaísta Numa Sadoul, que “ele era um pouco o irmão mais novo de Totor [outro personagem de Hergé], um Totor que se tornara jornalista mas com uma alma de escuteiro”. O pior que lhe podia ter acontecido, naqueles anos conturbados entre as duas guerras mundiais, foi ter ido em serviço ao País dos Sovietes. Fortemente influenciado pela propaganda anti-comunista da época, o autor-herói traça um retrato muito severo da “democracia proletária”, das realizações do “socialismo” e do modo de vida “feliz” e “abundante” do povo da União Soviética. O estigma desta primeira aventura nunca mais o abandonaria. A história só voltou a aparecer, nas décadas seguintes, e quando a popularidade de Tintin era já uma realidade, em edições pirata, pois Hergé nunca mais autorizou a sua reedição. Ficaria, aliás, como a única não reescrita e redesenhada de todo o período da série a preto e branco. O jovem repórter viaja em seguida por África e vai aos Estados Unidos, prossegue o seu périplo pelo Médio Oriente (“Os Cigarros do Faraó”) e Extremo-Oriente (“O Lótus Azul”), onde trava conhecimento com o jovem Tchang, que salva de morrer afogado. Os Balcãs também não lhe são estranhos: “O Ceptro de Otokar” será a última história a ser inteiramente publicada no jornal “Le Petit Vingtième”, cuja suspensão é contemporânea da invasão alemã da Bélgica. “O Ouro Negro” é a aventura que só conhecerá o seu final já depois da libertação, em 1945. A este período de intenso trabalho sucede-se uma colaboração no jornal “Le Soir”, financiado pelos alemães, onde conhece Léon Degrelles, chefe-de-fila dos nazis belgas. A severa censura desse período comprova-se facilmente pela leitura de “A Estrela Misteriosa, “O Segredo do Licorne” ou “O Tesouro de Rackham, o Terrível”, admiráveis aventuras em “estado puro”, onde qualquer alusão à actualidade envolvente está omissa. O registo escolhido por Hergé, que lhe permitiu sobreviver e aprofundar o seu domínio das regras da narração figurativa, custar-lhe-ia caro após a libertação: preso sem acusação, seria liberto pouco depois sem sequer ser julgado. Segue-se o período áureo da sua carreira, quando funda os “Studios Hergé”, por onde passam nomes mais tarde famosos como Edgar-Pierre Jacobs (criados de Blake e Mortimer), Jacques Martin (Alix) e Bob de Moor (Cori, o Grumete), entre outros. Mas se os anos 50 e seguintes vão encontrar Hergé no auge da sua forma criativa, constituem igualmente um período de forte contestação do autor e da sua obra. A “ofensiva” ideológica que culmina no movimento revolucionário de Maio de 68 em França, e que alastra a toda a Europa desenvolvida, é o contraponto do aparecimento dos movimentos emancipalistas em África, nas colónias portuguesas e de outros países, assim como da revolução cubana e do fenómeno guevarista. Os valores e o ideário hergeniano estão nos antípodas desta “praxis” e dos seus pressupostos político-ideológicos. Não admira, por isso, que ele esteja no âmago de uma “cruzada” anti-racista e anti-imperialista que identifica Tintin com o modelo do herói a abater. Será preciso esperar pela década de 80, e sobretudo pela morte de Hergé, para assistirmos a um processo de reabilitação que é, também, uma moda: nasce a “linha clara”, movimento estético que se reivindica da “pureza” de traço do autor de Tintin, surgem imensas obras de análise e exegese da obra e do autor e, para concluir, um produtivo negócio de “merchandising” que o próprio Hergé, discreto e humilde, nunca vira com muito bons olhos. Mas isso são outras histórias, de que se falará na edição do Magazine do próximo domingo.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
Infelizmente, tratava-se da sua morte, aos 76 anos de idade, na sequência de uma prolongada leucemia que lhe minou a saúde nos últimos anos de vida. A sua derradeira obra, “Tintin et l’Alph-Art”, que ficaria apenas na fase de esboço — e foi assim publicada pelo seu editor de sempre, a Casterman —, é o último testemunho de um percurso criativo feito quase sempre no país natal, a Bélgica, de onde só tardiamente saiu para ver mundo, quando o essencial da sua obra já era um êxito mundial. Que Portugal tenha sido um dos primeiros países a publicar aventuras de Tintin, na revista “Papagaio”, é um mero acidente que se deve mais à energia inesgotável e diligente de Adolfo Simões Müller do que ao facto de o nosso país ser uma “potência” no campo da banda desenhada. E não deixa de ser de uma amarga ironia verificar que Portugal é, também, um dos últimos países do mundo onde a obra de Hergé está publicada que teve direito a uma edição própria, encetada nos anos 80 pela Verbo, depois de décadas e décadas de monopólio brasileiro. Contrastes. Mais do que isso, o próprio Hergé foi sempre o centro de apaixonadas — e nem sempre muito esclarecedoras — polémicas entre os seus incondicionais admiradores e os seus radicais detractores. Católico e conservador, Georges Rémi, o verdadeiro nome do criador de Tintin, nunca quis ser mais do que um simples contador de histórias para crianças. E talvez nunca tivesse deixado de o ser, não se desse a circunstância de fazer publicar em 1929 a primeira aventura de um jovem repórter que vai dar a conhecer toda a verdade sobre o “paraíso soviético”. “Tintin au Pays des Soviets”, a única aventura em que o autor nunca mais mexeu, é um violento libelo contra as manipulações políticas e as mistificações de um sistema totalitário e antidemocrático. O desenho é ainda “tosco” e pouco firme, mas as grandes referências temáticas estão lá todas: a aventura, a aventura e ainda a aventura, para lá de todos os pressupostos de ordem ideológica. Nas histórias seguintes procuraria fazer o contraponto, levando o seu herói à América, onde combate os “gangsters”, e ao Congo, onde se comporta como o colonizador ingénuo que os compatriotas belgas talvez não fossem na sua relação com a então colónia. Com os anos, Hergé vai amadurecer o seu estilo, dando fé de uma inteligência narrativa fora do comum. A utilização sistemática do preto e branco, a limpidez da sua narração e os excelentes argumentos são a chave do seu êxito. Popular, na medida em que recorre a um registo acessível para se exprimir. Intelectual, no sentido em que, depois dele, nenhum autor ficará indiferente ao seu contributo para o crescimento da banda desenhada. Para sobreviver, trabalha durante a guerra num jornal de Bruxelas, “Le Soir”, onde publica algumas das mais admiráveis aventuras de Tintin — “A Estrela Misteriosa”, “O Segredo do Licorne”, “O Tesouro de Rackham, o Terrível” —, mas que estarão também no centro da primeira grande polémica que envolve o seu nome. É acusado de colaboracionismo — o jornal era, como todos, aliás, controlado pelos alemães — e chega a ser preso. É liberto pouco depois sem nunca ser acusado de nada. Nas décadas seguintes, já com uma equipa de colaboradores em que se destacam Edgar-Pierre Jacobs, Jacques Martin e Bob de Moor, cria os Studios Hergé, onde se procede à reformulação sistemática dos seus álbuns, agora a cores, considerada uma nova e bem sucedida inovação na arte de fazer banda desenhada. Os “anos de brasa” da contestação esquerdista que culminará no movimento de Maio de 68 em França, e um pouco por toda a Europa, voltam a colocar Hergé no banco dos réus. O libelo acusatório é pesado: reaccionário, anticomunista, racista e anti-semita, entre outros epítetos. Só a sua morte virá aliviar um pouco a pressão. Redescoberto por muitos intelectuais que, na maioria, sempre olharam a obra de Hergé com desconfiança e desprezo, é objecto de um verdadeiro culto, a avaliar pela incontável variedade de estudos analíticos que lhe foram consagrados. Os anos 80 serão, a esse título, e de forma póstuma, a sua “idade de ouro”, que é acompanhada de uma sistemática reedição das suas obras e pelo desenvolvimento de uma estratégia comercial montada pela viúva para transformar os produtos saídos das bandas desenhadas em negócio de milhões. Paralelamente, assiste-se a uma recuperação das suas fórmulas estéticas, consagradas naquele que ficou conhecido como o “movimento da linha clara”, ou seja, os autores que se reivindicavam do estilo gráfico de Hergé. Ao dobrar dos anos 90, novas campanhas anti-Hergé surgem em França, focalizadas sobre aspectos muito pessoais do seu passado que chegam, inclusive, à barra do tribunal (ver “Tintin no tribunal”, PÚBLICO de 13-12-91). A incursão de Tintin no desenho animado, que foi utilizado para popularizar a imagem da personagem e dá-la a conhecer a novas gerações em França, nos Estados Unidos e em outros países, é um dos pomos da discórdia — mas não o único — entre a Fundação Hergé, a viúva do artista e a associação Les Amis de Hergé (Os Amigos de Hergé), sobre a qual ninguém quis pronunciar-se abertamente. O nosso pedido de uma entrevista com Fanny Rémi foi liminarmente rejeitado pela fundação, que invocou, de forma pouco convincente, uma ausência prolongada da viúva fora da Bélgica. Não sendo possível conhecer a versão da pessoa mais directamente envolvida neste muito criticado pendor comercial das actividades relativas a Hergé e Tintin, é o secretário-geral da fundação, Philippe Goddin (ver texto “Perpetuar um nome”), quem, de forma lacónica, explica os motivos do corte de relações com Les Amis de Hergé. “Temos o maior respeito por essa associação, como por todos os que gostam muito de Hergé, mas houve um excesso verbal da parte do presidente de Les Amis de Hergé e, ao termos sido publicamente criticados, não podíamos tomar outra atitude que não fosse a de suspender o nosso apoio à revista que eles editam.” O presidente da associação, por seu lado, limitou-se a fazer uma brevíssima alusão a esse contencioso no decorrer da entrevista que deu ao PÚBLICO, sem citar ninguém em particular. Qualquer que seja a opinião dos leitores, um facto é inegável: Hergé é, como sustenta o analista e crítico Yves Frémion, “o verdadeiro inventor da BD moderna”. Excessivamente modesto e de uma simplicidade tocante, Hergé tornou-se um mito moderno e um dos maiores expoentes da cultura ocidental. Uma situação privilegiada em que poucos autores poderão algum dia ver-se colocados pelos vindouros.
Fundação Hergé - Perpetuar um nome
Com a morte de Hergé, Tintin terminou também a sua vida aventureira. Os Studios Hergé, que tinham sido o espaço de criação e desenvolvimento das histórias do mais conhecido personagem de Hergé, fecharam as portas: o autor manifestara o desejo expresso de não ver o seu herói viver novas aventuras. Que fazer? Criada e presidida pela viúva de Hergé, Fanny Rémi, surgiu em 1987 a Fundação Hergé, uma instituição sem fins lucrativos, com sede em Bruxelas. Não exerce qualquer actividade, tendo como objectivos exclusivos a “protecção da obra de Hergé e torná-la mais conhecida, velando simultaneamente para que o espírito da obra não seja alterado”. A proliferação de iniciativas de natureza comercial envolvendo a imagem de Hergé e das suas obras tem levado muita gente a interrogar-se sobre o papel da Fundação em todo esse processo. Em declarações ao PÚBLICO, Philippe Goddin, secretário-geral daquela instituição, foi formal: “Não exercemos qualquer actividade comercial. Absolutamente nenhuma. Muita gente tem assistido ao aparecimento de diversas iniciativas envolvendo Tintin e pensa que a responsabilidade é nossa. Nada temos a ver com isso.” Do mesmo modo, qualquer autorização para a comercialização de um novo produto está fora da competência da Fundação, como refere o mesmo responsável: “A única autorização necessária é a de Fanny Rémi, viúva e herdeira universal do desenhador, de quem recebeu a totalidade dos direitos. Para os exercer, tomou duas iniciativas no final de 1986: criou a Fundação Hergé e uma sociedade comercial intitulada Moulinsart, para explorar os direitos derivados da obra de Hergé, da qual depende uma outra, com sede em Paris, ambas inteiramente controladas por Fanny Rémi.” A Fundação está, assim, limitada a um papel de controlo das iniciativas que envolvam o nome de Hergé, velando para que a imagem deste último não sofra um desgaste que poderia ser negativo para o futuro. Este papel é particularmente importante, se tivermos em conta o “boom” de estudos, ensaios, produtos comerciais e séries de desenhos animados que inundaram o mercado europeu após a morte do criador de Tintin, ao ponto de haver quem admita estar-se muito perto do ponto de saturação, a partir do qual a imagem do artista começa a sofrer um processo de erosão acentuada. “O ‘merchandising’ relacionado com a obra de Hergé em banda desenhada era relativamente modesto no momento da morte do artista. Depois dessa data, o sucesso de Tintin não deixou de aumentar e ampliar-se. Esse sucesso comercial tem a sua origem na obra de Hergé, mas ultrapassa-a largamente. Assim, parece-nos normal que os produtos comerciais coexistam com os álbuns, embora seja necessário salvaguardar as proporções desse fenómeno. Nisso, está toda a gente de acordo”, sublinha Goddin. Mas o problema que se coloca (ver depoimentos dos críticos de banda desenhada) é o de saber se essa fasquia não foi já ultrapassada. A resposta daquele responsável é negativa: “Quando comparada com outros exemplos, não me parece que a posição de Tintin esteja em perigo, mesmo se há um inegável aumento de produtos nos últimos quatro ou cinco anos.” Permanece, para além de todas essas questões, o trabalho que a Fundação se propõe realizar. Inteiramente financiada pela viúva de Hergé, aquela instituição organizou uma exposição itinerante, “Le Monde de Tintin” (O Mundo de Tintin), que esteve em Janeiro passado exposta em Angoulême, e prepara, para assinalar o 10º aniversário da morte do artista, uma grande exposição temática intitulada “Au Tibet avec Tintin” (literalmente, No Tibete com Tintin), que deverá estar pronta no segundo semestre deste ano.
Hergé: morte e vida de um mito
Há dez anos, que se completaram no passado dia 3 de Março, Hergé falecia em Bruxelas. A sua morte física não o arrastou para o esquecimento. As aventuras dos heróis que criou, com especial relevo para Tintin, continuam vivas e bem vivas. Uma geração de desenhadores pegou na sua herança estética e perpetuou o mito. Alguém lhe deu o nome de “linha clara”, numa mais que justa homenagem ao desenho límpido, nítido e claro que identificou um estilo inconfundível. O que já ninguém poderá jamais fazer é preencher o vazio deixado por um autor polémico e contestado, consensual e idolatrado, que nunca enjeitou a menor parcela do seu passado e soube ser coerente na defesa de valores perenes e imutáveis. Aventura em estado puro, compromisso social e político, defesa dos fracos e oprimidos, elogio da amizade e do amor, eis o que atravessa a obra do mais importante autor europeu de banda desenhada e faz a sua universalidade. Um autor para a eternidade.
“Obra magistral que merecia um fim”
Stéphane Steeman, presidente dos Amigos de Hergé
Sem ocultar a profunda amizade que o ligou a Hergé, o presidente da associação Les Amis de Hergé, Stéphane Steeman, soube manter um núcleo de admiradores incondicionais unidos em torno da sua própria veneração ao autor de Tintin. E defende-o contra tudo e todos, com uma convicção que o PÚBLICO registou. O que faz mover um milhar de fãs de Hergé e da sua obra? Há assim um carisma tão poderoso na postura de Tintin ao ponto de fazer dele uma referência para gerações sucessivas de leitores? Como compreender e qualificar as reiteradas acusações de racismo, colonialismo, anti-semitismo e reaccionarismo que, década sim, década não, impendem sobre o mais universal de todos os autores de banda desenhada. Aproximação a todas estas questões na entrevista que o presidente da associação Les Amis de Hergé deu ao PÚBLICO.
PÚBLICO — Quando faleceu, Hergé já era um autor consagrado ou, se quiser, já tinha muitos amigos. Quem são, de facto, os amigos de Hergé?
STÉPHANE STEEMAN — Sou um coleccionador há mais de 20 anos, conheço Hergé há mais de 40 anos e gosto de Tintin desde há 55 anos, que é quase a minha idade. Aprendi progressivamente a gostar do homem, a conhecer pouco a pouco a sua obra e a tornar-me um especialista desse mundo tão vasto que é o de Hergé. Quando ele morreu, fiquei tão deprimido que pensei em acabar com tudo. Não suportava ver-me rodeado de quanto evocava alguém que não poderia voltar a ver. Mas depois pensei que Hergé ficaria contente se soubesse que eu tinha tomado a decisão de continuar.
Foi nesse momento que nasceu a associação?
Exacto. Recebi uma carta de um polícia que me exprimia a sua convicção de que era necessário fazer alguma coisa para unir os verdadeiros amigos de Hergé, de modo a que pudessem conhecer-se, encontrar-se e dar a conhecer a obra do artista. Começámos por colocar pequenos anúncios a divulgar os nossos objectivos, a organizar uma rede de correspondência, a tratar de todos esses pequenos pormenores burocráticos que fazem as coisas andar. No início éramos umas duas dezenas e hoje somos mais de um milhar, entre canadianos, franceses, espanhóis, irlandeses, portugueses, alemães, belgas, enfim, gente em muitos países do mundo. Editamos uma revista semestral, promovemos uma assembleia geral anual e recebemos uma média de dez cartas por dia de associados de todo o mundo.
Hergé deixou um vazio entre os seus adeptos que é impossível de preencher. Mas a banda desenhada também ficou mais pobre...
Bem, tenho que lhe confessar que não sou um fanático da banda desenhada, o que nem sempre é compreendido por quem me conhece. Sou um amigo de Hergé e é tudo. Claro que admiro alguns desenhadores, mas acima de tudo há a figura de Hergé, um clássico, o Molière do desenho, o Van Gogh da banda desenhada... E devo acrescentar que o melhor presente que ele me deu foi não permitir que as histórias de Tintin fossem continuadas por outro autor. A sua obra é de tal modo magistral, nobre e bela que merecia ter um fim. Existem 23 álbuns em que ninguém pode tocar. Assim, para mim não há, de facto, um vazio e não me sinto triste por Tintin ter deixado de existir com a morte do seu criador.
Isso significa que há uma perenidade da obra de Hergé que está para lá do fim físico do artista? Se for esse o caso, onde está o segredo dessa resistência ao tempo e às modas?
É muito difícil explicar um sucesso. Hergé nunca pensou que aquilo que fazia iria tornar-se um êxito. E se ele pudesse ver o que se faz hoje em torno da sua obra, estou convencido que não teria a menor vontade de regressar. Ele nunca deixou de se manifestar surpreendido com cada êxito obtido. Nessas ocasiões, limitava-se a afirmar que desenhava personagens e histórias para as crianças e nunca imaginou que a sua obra pudesse ser recuperada pelos adultos e pelos intelectuais. Agora é fácil dizê-lo, mas a verdade é que ele conseguiu sempre elaborar um desenho belo e despojado que era, simultaneamente, humorístico e realista, o que fazia com que as suas histórias agradassem tanto às crianças como aos adultos. E depois há um carácter universal em Hergé, que vem do facto de todos os seus álbuns serem o retrato de uma época. São obras que se lêem sempre, e de cada vez que isso acontece podem ser apreciadas de um modo diferente. E isto é válido em todas as épocas e para todos os tipos de leitores. É extraordinário!
Apesar de todas essas qualidades, Hergé foi, como sabe, muito contestado e acusado de reaccionarismo. Após a sua morte, assistimos a uma reabilitação do artista. E agora, no virar da década de 80, vemos de novo Hergé no “banco dos réus”, com acusações de ordem política e pessoal bastante contundentes. Como interpreta estes fenómenos?
Bem, é necessário afirmar claramente que Hergé não foi sempre um homem de direita e que isso não é um crime! Mas agora, com a maneira cada vez mais destorcida com que se vê a política, um personagem de direita é logo acusado de ser de extrema-direita, e este último é automaticamente nazi... Simplifica-se tudo e quanto mais nos afastamos do período da guerra maior é o número de pessoas que, sem ter vivido as situações, elabora juízos categóricos sobre o que não conhece. Hergé conheceu Léon Degrelles em 1930 [fundador do Partido Rexista, a versão belga do Partido Nacional-Socialista alemão de Hitler], o que é do domínio público. Mas não se pode condenar ninguém apenas porque andou com Hitler na escola! Depois, cada um seguiu o seu próprio percurso, após um curto período de trabalho em comum no mesmo jornal [“Le Soir”, em Bruxelas], que, como todos os daquela época, era controlado pelos alemães. Mas limitou-se a fazer desenhos para as crianças e também para sobreviver. Hergé parodiou os judeus? Mas na época toda a gente o fazia, e não é por isso que se pode acusar o autor de Tintin de anti-semitismo! Nunca quis caricaturar mulheres nas suas histórias, à excepção da Castafiore: isso faz dele um misógino? Ao fazer caricaturas dos negros acusaram-no de colonialista, mas todos se esquecem de dizer que, naquela altura, o Congo era uma colónia belga!
Mas não pretende que Hergé foi, afinal, um homem de esquerda?...
Claro que ele nunca foi um homem de esquerda! Mas as coisas ficam por aí. De resto, ele não sofreu a menor condenação. Sabe, é muito fácil atacar Hergé por coisas que toda a gente conhecia. Por que motivo se volta a evocar tudo isso nove anos depois da sua morte? Isso só tem um nome: mesquinhez, maldade e procura de escândalo fácil.
Tintin, difícil de abater
Há dez anos, uma notícia abalava o mundo: Hergé morria, levando com ele o seu personagem maior, Tintin. Era o princípio de uma autêntica “tintinolatria”, que recuperou o mito, dissecou-o de todas as formas e feitios em obras incontáveis e gerou um negócio de milhões em torno dos personagens. Tintin é Hergé ou será o contrário? Em torno de uma questão tão simples de formular como esta, ouviram-se mil respostas ao longo da última década. E tudo porque Hergé, falecido em 3 de Março de 1983 na sequência de uma prolongada e dolorosa doença, deixava para os vindouros uma obra longa e universal, polémica até aos limites da saturação. Odiado e repudiado pelos que viam nele o símbolo do racismo e da xenofobia, idolatrado pelos que sublinhavam os valores positivos da amizade e da tolerância afirmados pelo seu herói maior, Hergé é um daqueles autores que dificilmente será derrotado pela “lei da morte” de que falava o poeta Camões. De facto, a sua vida é um movimento perpétuo entre a perseguição e a consagração, consoante as modas políticas e ideológicas, o evoluir da História e a postura pessoal do artista. Filho de uma família ultra-conservadora, educado em rígidas normas católicas, Georges Rémi, o verdadeiro nome do criador de Tintin, ensaia os primeiros passos na banda desenhada no começo da década de 20, deixando uma singular história, nunca mais retomada, “Les Aventures de Popol et Virginie au Far-West” (1934). Antes, e a partir de 1930, desenvolvera curtas histórias de dois “putos” residentes em Bruxelas, Quick e Flupke (histórias publicadas em Portugal pela Difusão Verbo, que também tem estado a editar as aventuras de Tintin) e, já em 1936, as aventuras de Jo, Zette e Jocko. Todavia, é Tintin quem ficará para a posteridade. Surge em 1929 como um jovem repórter — Hergé admitiu um dia em entrevista ao crítico e ensaísta Numa Sadoul, que “ele era um pouco o irmão mais novo de Totor [outro personagem de Hergé], um Totor que se tornara jornalista mas com uma alma de escuteiro”. O pior que lhe podia ter acontecido, naqueles anos conturbados entre as duas guerras mundiais, foi ter ido em serviço ao País dos Sovietes. Fortemente influenciado pela propaganda anti-comunista da época, o autor-herói traça um retrato muito severo da “democracia proletária”, das realizações do “socialismo” e do modo de vida “feliz” e “abundante” do povo da União Soviética. O estigma desta primeira aventura nunca mais o abandonaria. A história só voltou a aparecer, nas décadas seguintes, e quando a popularidade de Tintin era já uma realidade, em edições pirata, pois Hergé nunca mais autorizou a sua reedição. Ficaria, aliás, como a única não reescrita e redesenhada de todo o período da série a preto e branco. O jovem repórter viaja em seguida por África e vai aos Estados Unidos, prossegue o seu périplo pelo Médio Oriente (“Os Cigarros do Faraó”) e Extremo-Oriente (“O Lótus Azul”), onde trava conhecimento com o jovem Tchang, que salva de morrer afogado. Os Balcãs também não lhe são estranhos: “O Ceptro de Otokar” será a última história a ser inteiramente publicada no jornal “Le Petit Vingtième”, cuja suspensão é contemporânea da invasão alemã da Bélgica. “O Ouro Negro” é a aventura que só conhecerá o seu final já depois da libertação, em 1945. A este período de intenso trabalho sucede-se uma colaboração no jornal “Le Soir”, financiado pelos alemães, onde conhece Léon Degrelles, chefe-de-fila dos nazis belgas. A severa censura desse período comprova-se facilmente pela leitura de “A Estrela Misteriosa, “O Segredo do Licorne” ou “O Tesouro de Rackham, o Terrível”, admiráveis aventuras em “estado puro”, onde qualquer alusão à actualidade envolvente está omissa. O registo escolhido por Hergé, que lhe permitiu sobreviver e aprofundar o seu domínio das regras da narração figurativa, custar-lhe-ia caro após a libertação: preso sem acusação, seria liberto pouco depois sem sequer ser julgado. Segue-se o período áureo da sua carreira, quando funda os “Studios Hergé”, por onde passam nomes mais tarde famosos como Edgar-Pierre Jacobs (criados de Blake e Mortimer), Jacques Martin (Alix) e Bob de Moor (Cori, o Grumete), entre outros. Mas se os anos 50 e seguintes vão encontrar Hergé no auge da sua forma criativa, constituem igualmente um período de forte contestação do autor e da sua obra. A “ofensiva” ideológica que culmina no movimento revolucionário de Maio de 68 em França, e que alastra a toda a Europa desenvolvida, é o contraponto do aparecimento dos movimentos emancipalistas em África, nas colónias portuguesas e de outros países, assim como da revolução cubana e do fenómeno guevarista. Os valores e o ideário hergeniano estão nos antípodas desta “praxis” e dos seus pressupostos político-ideológicos. Não admira, por isso, que ele esteja no âmago de uma “cruzada” anti-racista e anti-imperialista que identifica Tintin com o modelo do herói a abater. Será preciso esperar pela década de 80, e sobretudo pela morte de Hergé, para assistirmos a um processo de reabilitação que é, também, uma moda: nasce a “linha clara”, movimento estético que se reivindica da “pureza” de traço do autor de Tintin, surgem imensas obras de análise e exegese da obra e do autor e, para concluir, um produtivo negócio de “merchandising” que o próprio Hergé, discreto e humilde, nunca vira com muito bons olhos. Mas isso são outras histórias, de que se falará na edição do Magazine do próximo domingo.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
terça-feira, 16 de março de 1993
Um autor para a eternidade Numa Sadoul, o “mega-entrevistador” de Hergé
Testemunho impressionante e único sobre a vida e a obra do criador de Tintin, “Les Entretiens avec Hergé” constituem um paciente e laborioso trabalho de artesão, que une de forma definitiva os destinos do entrevistado e do entrevistador. Conversa com este último, agora no papel de respondedor...
Do seu contacto com Hergé, Numa Sadoul, durante muitos anos ligado à crítica e divulgação da banda desenhada, guarda as melhores recordações. E, sobretudo, projecta sobre as gerações vindouras uma imagem de coragem, honestidade intelectual e amizade para com um autor que desceu aos infernos da “inquisição” do pós-guerra, atravessou purgatórios vários nos “tempos de brasa” das décadas de 60 e 70 e subiu aos céus nos anos que se seguiram à sua morte. Entre a queda e a reabilitação, permanece um espaço absoluto, aquele que é preenchido pelas magníficas aventuras dos seus personagens, evocadas nesta entrevista telefónica.
PÚBLICO — No prefácio ao seu livro com as entrevistas mantidas com Hergé, refere-se ao facto de ter sido muito penosa a revisão do texto por parte do próprio Hergé, que não só levou muito tempo, como em certos casos alterou completamente o conteúdo do que lhe tinha afirmado. Considera que essa operação de “cosmética” se destinava a esconder alguma coisa... Por exemplo, factos que dessem razão aos que o acusavam, e continuam a acusar, de ser reaccionário?
NUMA SADOUL — Não, não penso que se possa responder de uma forma simples a essa questão. Numas coisas, ele era reaccionário, enquanto em outras era progressista. É verdade que algumas das passagens das entrevistas foram totalmente reescritas, mas isso tem mais a ver com o desejo de ordem, organização e de perfeição que caracterizavam o seu temperamento e o seu modo de trabalhar. Ter levado dois anos a deixar pronto o resultado do nosso trabalho dá uma boa imagem do ponto a que Hergé levava a sério as questões que se prendiam consigo mesmo.
Mas isso permite concluir que Hergé tinha o culto da sua imagem pessoal?
Não, era precisamente o oposto disso. Gostaria que ficasse bem claro que o que ele alterou nas entrevistas não se prendia com o conteúdo das respostas, mas apenas com a forma como as coisas eram apresentadas. As suas entrevistas foram feitas nos anos 70. Nessa altura já existiam alguns indícios do movimento que viria a traduzir-se, na década seguinte, na “linha clara” que integrava os desenhadores que se reivindicavam do seu estilo gráfico?
Ainda não. Na altura, ele era, muito simplesmente, o maior autor de banda desenhada vivo. Nada que se pudesse relacionar com uma hipotética escola, ou um movimento de seguidores, nada!
Mas, apesar desse prestígio de que fala, Hergé era um homem sob a mira da contestação da esquerda... Ora, o seu trabalho constitui, de algum modo, uma postura contra a corrente dessa tendência crítica, dominante na época.
É verdade. Mas é bom recordar que ele foi bastante mais contestado nos anos que seguiram à Segunda Guerra Mundial, do que nos anos 60-70. Os intelectuais de esquerda acusavam-no de reaccionário e eu próprio, na altura, situava-me num campo que estava, de um ponto de vista ideológico, no lado oposto ao de Hergé. Mas não tive o menor escrúpulo em o defender e em demonstrar que todos os que o criticavam estavam enganados!
Quais eram os seus argumentos em defesa de Hergé? Para mim, ele era um grande autor que resistiria e passaria por cima de todas as épocas e modas. Além disso, eu sabia que tinha nele um amigo para toda a vida. Por outro lado, eu estava convicto de que não era nada daquilo que diziam dele. Na sua época, ele era já um histórico e, como em todas as artes, há sempre a tendência para contestar o que surge como institucional e consagrado. E a melhor prova de que isto é assim está no facto de ninguém se atrever hoje, 20 anos depois, a defender as mesmas posições com os argumentos da época. Quem o fizesse assumiria uma atitude completamente ridícula. Desgraçadamente, foi preciso que Hergé morresse para reunir o unanimismo. Mas já se sabe que é sempre assim...
O momento da sua morte é também o primeiro tempo de um processo de deificação...
Ah!, isso era inevitável! ...
E há mesmo uma série de autores que se reivindicam do estilo de Hergé. Na sua opinião, entre todos esses autores, quem está em melhor posição para poder, eventualmente, ser considerado um legítimo herdeiro do “tesouro” do criador de Tintin?
São tantos, que é realmente difícil dar uma resposta simples. O suíço Cosey pode ser integrado nessa lista de “herdeiros”, sem que isso o impeça de ter uma obra original. Noutro quadrante, existe Moebius. Manara, também. A partir de Hergé desenvolveram-se estilos tão diferentes que é muito difícil falar num “herdeiro”. Aliás, com a morte de Hergé, morreu também uma certa forma de banda desenhada, já que ninguém hoje trabalha da maneira que ele o fazia! Os estúdios acabaram, a concepção quase renascentista de criar uma obra de arte — que o artista poderia reivindicar para si —desapareceu também. É tudo muito diferente.
Sendo assim, o que é que resta de Hergé e da sua obra, dez anos passados sobre a sua morte? Resta tudo! A começar pelos seus excelentes álbuns, que têm um valor indiscutível. Mas é necessário deixar poisar a poeira e acalmar os ânimos, porque começa a tornar-se insuportável toda esta loucura em redor do artista, aliás muito bem gerida pela Fundação Hergé, pela viúva, etc.
Você entrevistou Hergé, “dissecou” a sua obra, deixou um testemunho importante. O que está ainda por dizer, ou fazer, relativamente a este autor?
Hum!... Aí está uma boa pergunta, a que é difícil responder. Pela minha parte, não há mais nada a fazer, porque, ao entrevistar Hergé, deixei-o falar, exprimir-se, dizer o que pensava. Outros autores pensarão que ainda têm algo a dizer sobre a obra de Hergé, mas não é o meu caso.
Para si, é um “dossier” definitivamente encerrado? Bem, ainda restam algumas coisas que poderia incluir um dia na versão definitiva da versão definitiva das entrevistas com Hergé (risos)... Mas para mim, é mesmo um caso acabado.
Mas continua ligado à banda desenhada?
Precisamente: não! Desde há uns dois anos que abandonei esta área. O meu trabalho está agora virado para o teatro e a ópera.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
PÚBLICO — No prefácio ao seu livro com as entrevistas mantidas com Hergé, refere-se ao facto de ter sido muito penosa a revisão do texto por parte do próprio Hergé, que não só levou muito tempo, como em certos casos alterou completamente o conteúdo do que lhe tinha afirmado. Considera que essa operação de “cosmética” se destinava a esconder alguma coisa... Por exemplo, factos que dessem razão aos que o acusavam, e continuam a acusar, de ser reaccionário?
NUMA SADOUL — Não, não penso que se possa responder de uma forma simples a essa questão. Numas coisas, ele era reaccionário, enquanto em outras era progressista. É verdade que algumas das passagens das entrevistas foram totalmente reescritas, mas isso tem mais a ver com o desejo de ordem, organização e de perfeição que caracterizavam o seu temperamento e o seu modo de trabalhar. Ter levado dois anos a deixar pronto o resultado do nosso trabalho dá uma boa imagem do ponto a que Hergé levava a sério as questões que se prendiam consigo mesmo.
Mas isso permite concluir que Hergé tinha o culto da sua imagem pessoal?
Não, era precisamente o oposto disso. Gostaria que ficasse bem claro que o que ele alterou nas entrevistas não se prendia com o conteúdo das respostas, mas apenas com a forma como as coisas eram apresentadas. As suas entrevistas foram feitas nos anos 70. Nessa altura já existiam alguns indícios do movimento que viria a traduzir-se, na década seguinte, na “linha clara” que integrava os desenhadores que se reivindicavam do seu estilo gráfico?
Ainda não. Na altura, ele era, muito simplesmente, o maior autor de banda desenhada vivo. Nada que se pudesse relacionar com uma hipotética escola, ou um movimento de seguidores, nada!
Mas, apesar desse prestígio de que fala, Hergé era um homem sob a mira da contestação da esquerda... Ora, o seu trabalho constitui, de algum modo, uma postura contra a corrente dessa tendência crítica, dominante na época.
É verdade. Mas é bom recordar que ele foi bastante mais contestado nos anos que seguiram à Segunda Guerra Mundial, do que nos anos 60-70. Os intelectuais de esquerda acusavam-no de reaccionário e eu próprio, na altura, situava-me num campo que estava, de um ponto de vista ideológico, no lado oposto ao de Hergé. Mas não tive o menor escrúpulo em o defender e em demonstrar que todos os que o criticavam estavam enganados!
Quais eram os seus argumentos em defesa de Hergé? Para mim, ele era um grande autor que resistiria e passaria por cima de todas as épocas e modas. Além disso, eu sabia que tinha nele um amigo para toda a vida. Por outro lado, eu estava convicto de que não era nada daquilo que diziam dele. Na sua época, ele era já um histórico e, como em todas as artes, há sempre a tendência para contestar o que surge como institucional e consagrado. E a melhor prova de que isto é assim está no facto de ninguém se atrever hoje, 20 anos depois, a defender as mesmas posições com os argumentos da época. Quem o fizesse assumiria uma atitude completamente ridícula. Desgraçadamente, foi preciso que Hergé morresse para reunir o unanimismo. Mas já se sabe que é sempre assim...
O momento da sua morte é também o primeiro tempo de um processo de deificação...
Ah!, isso era inevitável! ...
E há mesmo uma série de autores que se reivindicam do estilo de Hergé. Na sua opinião, entre todos esses autores, quem está em melhor posição para poder, eventualmente, ser considerado um legítimo herdeiro do “tesouro” do criador de Tintin?
São tantos, que é realmente difícil dar uma resposta simples. O suíço Cosey pode ser integrado nessa lista de “herdeiros”, sem que isso o impeça de ter uma obra original. Noutro quadrante, existe Moebius. Manara, também. A partir de Hergé desenvolveram-se estilos tão diferentes que é muito difícil falar num “herdeiro”. Aliás, com a morte de Hergé, morreu também uma certa forma de banda desenhada, já que ninguém hoje trabalha da maneira que ele o fazia! Os estúdios acabaram, a concepção quase renascentista de criar uma obra de arte — que o artista poderia reivindicar para si —desapareceu também. É tudo muito diferente.
Sendo assim, o que é que resta de Hergé e da sua obra, dez anos passados sobre a sua morte? Resta tudo! A começar pelos seus excelentes álbuns, que têm um valor indiscutível. Mas é necessário deixar poisar a poeira e acalmar os ânimos, porque começa a tornar-se insuportável toda esta loucura em redor do artista, aliás muito bem gerida pela Fundação Hergé, pela viúva, etc.
Você entrevistou Hergé, “dissecou” a sua obra, deixou um testemunho importante. O que está ainda por dizer, ou fazer, relativamente a este autor?
Hum!... Aí está uma boa pergunta, a que é difícil responder. Pela minha parte, não há mais nada a fazer, porque, ao entrevistar Hergé, deixei-o falar, exprimir-se, dizer o que pensava. Outros autores pensarão que ainda têm algo a dizer sobre a obra de Hergé, mas não é o meu caso.
Para si, é um “dossier” definitivamente encerrado? Bem, ainda restam algumas coisas que poderia incluir um dia na versão definitiva da versão definitiva das entrevistas com Hergé (risos)... Mas para mim, é mesmo um caso acabado.
Mas continua ligado à banda desenhada?
Precisamente: não! Desde há uns dois anos que abandonei esta área. O meu trabalho está agora virado para o teatro e a ópera.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
sábado, 27 de fevereiro de 1993
Tudo sobre Tintin
Uma laranja de Zorrino para quem adivinhar quantos personagens estão registados no “Dictionnaire Tintin ‘D’ Abdallah à Zorrino”, de Cyrille Mozgovine, último título da Bibliothèque de Moulinsart (Casterman).
Se o leitor tivesse dito 326 nomes, teria acertado em cheio. Mas o que é, ao certo, este livro? Integrado numa colecção criada pelo editor francês da obra de Hergé em sua homenagem, o dicionário é uma peça única, construída com o talento das bordadeiras de bilros e a perseverança dos construtores de catedrais. Seres humanos e animais que o autor encontrou em todas as aventuras de Tintin, nem um lhe escapou, apresentados por ordem alfabética, classificados, indexados e analisados com rigor e uma profusão de imagens de apoio. Mas há mais. Duas outras secções propõem quadros de recapitulação que permitem uma pesquisa rápida e eficaz de referências, como os patronímicos das mulheres citadas, das crianças ou dos membros das quadrilhas de Müller e Rastapopoulos, por exemplo. Anexos e complementos da obra enumeram, por outro lado, todos os nomes de personagens que não são específicos das aventuras de Hergé, mas que pertencem à História, à Literatura ou aos textos sagrados, para já não falar dos nomes próprios que atravessam as peripécias de Tintin — locais, tribos, clubes, siglas, marcas comerciais, barcos, jornais, países, nomes de código, etc. São 283 páginas, fruto de um labor persistente e exaustivo de cinco anos, para uso dos tintinólogos, tintinólatras e tintinófilos. E, já agora, indispensável também para quem se ocupa, na imprensa especializada ou de informação geral, a dar a conhecer o que por esse infinito mundo de heróis de papel surge continuamente. A única reserva a pôr a esta obra — sublinhada pelo próprio autor — consiste no facto de “apenas” ter sido considerado o universo dos 22 álbuns a cores publicados, com exclusão de “Tintin au Pays des Soviets” e de “L’Alph-Art”, o primeiro por nunca ter passado da versão a preto e branco, e o segundo por constituir a derradeira e inacabada obra.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
Se o leitor tivesse dito 326 nomes, teria acertado em cheio. Mas o que é, ao certo, este livro? Integrado numa colecção criada pelo editor francês da obra de Hergé em sua homenagem, o dicionário é uma peça única, construída com o talento das bordadeiras de bilros e a perseverança dos construtores de catedrais. Seres humanos e animais que o autor encontrou em todas as aventuras de Tintin, nem um lhe escapou, apresentados por ordem alfabética, classificados, indexados e analisados com rigor e uma profusão de imagens de apoio. Mas há mais. Duas outras secções propõem quadros de recapitulação que permitem uma pesquisa rápida e eficaz de referências, como os patronímicos das mulheres citadas, das crianças ou dos membros das quadrilhas de Müller e Rastapopoulos, por exemplo. Anexos e complementos da obra enumeram, por outro lado, todos os nomes de personagens que não são específicos das aventuras de Hergé, mas que pertencem à História, à Literatura ou aos textos sagrados, para já não falar dos nomes próprios que atravessam as peripécias de Tintin — locais, tribos, clubes, siglas, marcas comerciais, barcos, jornais, países, nomes de código, etc. São 283 páginas, fruto de um labor persistente e exaustivo de cinco anos, para uso dos tintinólogos, tintinólatras e tintinófilos. E, já agora, indispensável também para quem se ocupa, na imprensa especializada ou de informação geral, a dar a conhecer o que por esse infinito mundo de heróis de papel surge continuamente. A única reserva a pôr a esta obra — sublinhada pelo próprio autor — consiste no facto de “apenas” ter sido considerado o universo dos 22 álbuns a cores publicados, com exclusão de “Tintin au Pays des Soviets” e de “L’Alph-Art”, o primeiro por nunca ter passado da versão a preto e branco, e o segundo por constituir a derradeira e inacabada obra.
© 1993 Público/Carlos Pessoa
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